sábado, 6 de abril de 2024

PERSEGUIÇÃO - o fogo amigo das lembranças

Resolvi começar minhas leituras de 2024 descobrindo novos autores (não estou falando de novos talentos, refiro-me a conhecer escritores que ainda não li), por essa razão retirei da fila este professor italiano, nascido em Roma, chamado Alessandro Piperno que, apesar de já ter dois livros traduzidos no Brasil, quase não se encontra nada sobre ele pela internet, pelo menos minhas pesquisas encontraram pouca coisa e quase nenhum leitor disposto a compartilhar suas impressões online.

PERSEGUIÇÃO – o fogo amigo das lembranças conta a história de Léo Pontecorvo, oncologista pediátrico de fama internacional, que acaba sendo acusado de um crime asqueroso contra uma adolescente, condição que muda completamente sua vida até então próspera e feliz. O protagonista vê sua rotina entrar numa espiral de censuras, calúnias, intrigas e intimidações. E tudo se torna ainda mais insuportável, quando sua própria esposa e filhos fazem pacto de silêncio e o ignoram, deixando suspensa uma dúvida sobre se as pessoas que lhe são mais próximas, são as primeiras a não acreditarem em sua inocência.

O livro começa do ponto em que a vida desmorona, precisamente um jantar em que Léo e os demais integrantes da família estão jantando, quando surge no telejornal ligado, a foto de Leo e as acusações que lhe foram atribuídas. Desse ponto em diante, teremos o que o subtítulo sugere: lembranças da história da família Pontecorvo, até sabermos o que originou a famigerada acusação, também para nos apresentar um pouco sobre cada um dos membros da família.

Nesse ponto surge um pequeno problema da leitura: Alessandro Piperno é um autor prolixo, estica a corda até onde dá ao nos oferecer suas personagens. E apesar de sua escrita ser eficiente e pouco truncada, há momentos que inevitavelmente fica cansativa, dando a impressão de que a obra poderia ter pelo menos 100 páginas a menos de suas 430. Chega um ponto, no terço final da obra, quando o autor se alonga demais relatando a vida dos filhos do protagonista, que senti certo enfado na leitura (posteriormente, descobri que os citados dois livros publicados aqui no Brasil fazem parte de uma continuação, na qual justamente os protagonistas serão os filhos de Léo, o que justifica tanto tempo dedicados aos dois na parte final).

Contudo, o leitor acaba presenteado pela perseverança. Piperno narra a história de um homem de sucesso que, de repente, chega ao acerto de contas com seu narciso e demais fragilidades que lhe são características; a trama enfoca no desmoronamento de uma existência bem sucedida, mas que por um descuido infantil, permite que a sociedade, sempre ávida por encontrar um novo pária a ser apedrejado, desça sua mão vingativa e pesada sobre si. Há instantes em que a leitura me fez recordar o filme A CAÇA, de 2013 no qual a personagem vivido pelo ator Mads Mikkelsen, tem sua vida destruída por uma bobagem inventada por uma criança da escola em que ele era professor.

A narração romanesca acompanha fielmente esse ziguezague de memórias que vão descortinando acontecimentos e nos fazendo conhecer um pouco dos envolvidos; um relato revela outro e então um pensamento esclarece algo que nos parecia nublado. E apesar de bem escrito, senti falta de um pouco de incertezas que despertam conjecturas no leitor. Alessandro Piperno narra como faz um biógrafo, e apesar de revelar algumas imperfeições de sua personagem, não deixa dúvidas em relação a sua idoneidade.

PERSEGUIÇÃO – o fogo amigo das lembranças é uma obra bem escrita e que prende a atenção por sua estética que se mescla à funcionalidade. Mas é um pouco extenso e isso pode ser um desafio ao leitor, que somente atravessando sua longa jornada, conseguirá se enternecer com a leitura.

NOTA: 7,9

sábado, 23 de março de 2024

CRÔNICA: RUPTURA

De repente, olho para a estante e lá está o livro requisitado, fazendo-me engolir o orgulho. Há alguns dias, precisei ser contundente, o que me fez pensar sobre quando foi que começou essa necessidade de validar minhas certezas. Seria resultado da ruptura? Ou sempre inspirei pouca credibilidade e, quando se inspira pouca credibilidade é preciso um elemento extra para que sejamos levados em consideração..., muitas vezes esse elemento pode ser um grito.

– Já disse que o livro não está aqui!

Não tenho sono, acho que eu nunca tive. Perambulo pela casa, sem roupas, um silêncio sufocante que permite apenas o tilintar dos gelos no copo. Doses e mais doses de uísque para ajudar a diminuir a melancolia de mais uma noite preenchida pela liberdade que tanto reivindiquei.

Agora tenho as profundezas desse umbral tétrico que é minha casa, exclusivamente para os passeios noturnos e indefinidos, através de cômodos com pouca mobília, os armários vazios, gavetas ocas e leves, nenhum cheiro de loção importada ou creme hidratante; nada de vozes, aparelhos ligados, crianças brincando, tampas de panelas despencando no chão, nada de rastros artificiais, apenas poeira onde antes havia objetos, porta-retratos, vasos de flores, eletrodomésticos...

Mas a estante de livros continua lá e a primeira coisa que vejo, ao acender a luz da sala, é aquele maldito livro. Eu garanti que havia procurado em todo canto, tinha absoluta certeza de que não estava aqui.

– Deve estar no meio dos seus livros – ela sugeriu, coisa que neguei categoricamente. Por que diabos um livro dela estaria no meio dos meus? Eu nem gosto daquele autor. Parecia uma hipótese tão absurda, que sequer me dei ao trabalho de verificar.

Escancarado o meu equívoco, agora pairava a óbvia questão: como o livro favorito dela veio parar na minha estante? Se não tivesse acendido a luz, ele continuaria ali, sorrateiro entre outros miolos enfileirados, talvez não fosse encontrado por anos, eu bem sei que já perdi livros na minha própria estante que foram encontrados somente anos depois, quando já os havia dado como perdidos.

Diferente dela, eu perdia livros no meio dos meus livros. Mas aquela mulher representava a organização que jamais pude ter. Levou consigo sua imensa biblioteca, talvez algo em torno de mil volumes, e apesar de o número soar grandioso, era uma quantidade incapaz de fazer com que ela se esquecesse daquele, talvez por se tratar de um de seus favoritos ou ela teria esquecido de propósito para ter uma desculpa para me ligar. Eu bem sei que não tem nada a ver com favoritismo, ela era como uma pastora dedicada que sabe quando perde uma ovelha de seu vasto rebanho de mil cabeças. Sei que parece uma ideia deífica, mas era assim que ela lidava com suas coleções.

Apanho o celular, abro o aplicativo de mensagem. “Achei seu livro”, eu digito, mas não envio. Fico observando as letras enfileiradas no editor, aguardando um destino. Dou um gole robusto no copo, a bebida desce macia, enquanto na outra mão o dedo polegar pressiona a tecla que vai engolindo letra após letra, até o editor ficar limpo. Desligo o aparelho e o jogo na cama; já que não consigo dormir, que ele o faça por mim.

Não quero dar esse gostinho pra ela. Não quero que saiba, mais uma vez, que estava certa e que seu precioso livro, de fato, estava na minha estante, exatamente como havia cogitado. Ela não está mais aqui para dizer que sabia, com aquele sorriso irritante de quem tem o controle sobre qualquer circunstância, quase que magicamente. Noventa por cento das coisas ela sempre sabia onde estavam, mesmo as mais insignificantes e minúsculas, enquanto as outras dez por cento ela encontrava fazendo uso de uma intuição demoníaca.

Seria isso o que ela tinha de mais insuportável? Aquela organização exagerada, quase uma doença?

Por outro lado, se não avisasse da descoberta do livro, eu teria minha honestidade colocada em perspectiva. Ela sabe que a porcaria do livro está aqui, portanto, deve estar neste momento conjecturando as hipóteses pelas quais eu não o quero devolver. Talvez pense que o escondi para ter alguma coisa dela para guardar comigo; ou quem sabe acredite no meu lado vingativo que surrupia apenas pelo prazer de vê-la desfalcada de algo; ou quem sabe o autor da obra tenha escrito aforismos que me fazem lembrar os tempos em que éramos apaixonados um pelo outro.

Seja como for, é melhor devolver o maldito livro. Amanhã eu faço isso...

Sirvo-me de outra dose cavalar, enquanto a mente traz recordações daquela tarde definitiva, há três meses, quando a grande mudança aconteceu e nós parecíamos tristes e ao mesmo tempo otimistas, dizíamos um para o outro que vai ser melhor assim.

Pois nunca foi melhor, tampouco pior, foi uma mudança sem adjetivo. Gostamos de ter esse olhar dicotômico sobre as coisas, mas na vida quase nada funciona assim. Uma circunstância pode ser boa ou ruim, mas pode também ser diferente, incompreensível, inusitada, morna... contundo, algumas certezas podem ser verificadas.

Por exemplo, quando uma pessoa muito próxima sai da nossa vida, deixa-nos uma sensação de desajuste, como quando se sonha com situações excêntricas sem haver uma justificativa plausível que decifre aquele universo contraditório, e segue-se o desassossego do sonho, onde vivenciamos tudo sem o acalento da procedência. Isso é diferente de quando morre alguém próximo, pois a morte é definitiva demais, não há o consolo da dúvida, nem o afago da esperança..., quando alguém próximo morre, ocorre-nos um vazio que jamais será preenchido, e quanto maior for e tempo de uma vida, mais e mais partes vazias vão se acumulando em nós.

A velhice é uma instância de incontáveis vazios.

Outra certeza é o desconforto que ocorre no reencontro com a pessoa que foi embora. É curioso como poucos dias separados e já se nota mudanças na aparência, no comportamento, no modo de se expressar, nas feições..., a metamorfose acelerada soa quase como uma ofensa, como se o outro houvesse passado por um exorcismo e agora se encontra completamente livre da possessão que representávamos em sua vida.

O cumprimento é esquisito, as epidermes já não se reconhecem mais. Os olhares são evitados como se pairasse no ar o receio da reincidência. A mente não sabe formular assuntos coerentes, restando apenas aquela sucessão de clichês de falar sobre o tempo.

Então chegou o derradeiro dia em que esbarrei com ela passeando de mãos dadas com outro sujeito, e a confirmação de que algo havia mudado de maneira irreversível. Ocorre aquela falsa cordialidade, o cumprimento é cauteloso, escuto ele perguntar quem sou eu e ela dizer resumidamente “meu ex”. Depois o distanciamento dos passos não me permite ouvir mais, se ele fez mais perguntas a meu respeito, se ela se delatou por um gaguejo ou se ele é confiante demais e ignorou minha existência no minuto seguinte...

Não importa.

Volto para o quarto, o silêncio sendo cortado apenas pelo ruído do ventilador que deixei ligado. Resgato o celular sobre a cama e abro o aplicativo de mensagens.

“Encontrei seu livro”.

Dessa vez envio o texto e encerro essa besteira. Esqueci meu copo na estante de livros, então volto para buscá-lo, a noite vai seguir seu curso lento e preciso de mais um pouco de álcool circulando em minha corrente sanguínea para me livrar da melancolia.

Eis outra certeza existente na ruptura: as promessas que são feitas nesse instante da vida, jamais serão cumpridas, como aquela falácia de que sempre seremos amigos. Foi apenas uma promessa, cujo intuito era tornar aquela passagem menos dolorosa.

                                                                             ***

TEXTO PUBLICADO NO SITE RECANTO DAS LETRAS, NO ANO DE 2014

domingo, 10 de março de 2024

RESENHA DE LIVRO – A CAVERNA

No livro VII de A República de Platão, encontra-se o mito da caverna, talvez a alegoria mais conhecida e esmiuçada do filósofo grego, cujo relato narra pessoas que vivem aprisionadas numa caverna, onde as sombras que se projetam do lado externo é tudo o que eles reconhecem e identificam como mundo. Quando um dos presos consegue fugir, descobre que do lado de fora da caverna existe um lugar imenso e infinitamente abundante, jamais imaginado. Então ele retorna para a caverna para convencer os outros prisioneiros a sair da restrita condição de clausura, mas eis que acaba sendo morto pelos próprios presos, que o consideram um agitador e mentiroso.

Sobre essa alegoria, as perguntas que sempre inspiraram pensadores ao longo da história do pensamento é: afinal, quem é que controla as sombras que se projetam nas paredes da caverna? Quem confinou seus prisioneiros de tal forma imutável e definitiva? Qual é o intuito disso? Quem se beneficia com essa noção de inexistência do lado externo?

O escritor português José Saramago, fazendo uso desse romance, cujo título faz referência ao mito de Platão, oferece-nos uma reflexão sobre tais perguntas, dentro de um mundo pós moderno que é bem diferente da antiga sociedade grega, mas que segue o modelo de subordinação do mito da caverna, talvez de forma mais sutil.

Na distopia de Saramago, acompanhamos Cipriano Algor, que vive com a filha e o genro numa humilde olaria, onde o sustento é retirado do barro que usa para fabricar artesanatos, os quais vende para uma megaestrutura moderna denominada Centro; uma espécie de shopping-condomínio, onde grande parte da sociedade vive confinada.

Apesar da vida difícil de muito labor, Cipriano é o arquétipo do artesão comum, que ganha a vida com o próprio esforço e, portanto, encontra nessa existência algum significado; ele representa o oposto do que seria uma vida pautada pelas condições capitalistas de subsistência oferecidas pelo imponente e irrecusável Centro, lugar onde as pessoas vivem pautadas pelo consumo e artificialidade. É neste cenário que pairam as críticas contundentes de Saramago sobre a forma de vida da sociedade moderna, na qual a uniformidade é imposta no coletivo, de modo a massacrar impiedosamente aqueles que se recusarem a aderir seu modo de vida.

A noção de desvalia do artesão Cipriano fica evidente quando seu maior e talvez único cliente, o Centro, comunica-o de que não comprarão mais seus artesanatos, porque os clientes consideram o material muito antiquado, caro e os estão substituindo por utensílios de plástico, mais leves e inquebráveis. Desse ponto, começa-se um conflito na cabeça do protagonista, que não sabe como fará para continuar provendo o sustento da família. A filha de Cipriano, Marta, tem a ideia de fabricar bonecos de barro para oferecer ao Centro, mas apesar de começarem a fabricação dos bonecos, a medida soa como uma solução improvável e fadada ao mesmo destino dos demais artesanatos fabricados anteriormente.

O genro de Cipriano é funcionário do Centro e espera uma promoção de cargo, para então poder levar esposa e o sogro para morar em definitivo num dos condomínios do Centro, ideia que aumenta o desconforto em Cipriano, que o tempo todo sustenta um ceticismo em relação aquele modelo estrutural de vida.

Aquela cidade comercial ignora os afetos e necessidades intrínsecas do ser humano, valorizando o modo de vida industrializada e tecnocrática.

Cipriano é um homem perdido, descaracterizado, passa então a crer que sua profissão não existe mais por evidente impossibilidade de competir com as megaestruturas modernas e impositivas. O sistema de poder totalizante que o Centro representa, devora todo o tipo de mão de obra artesanal e intelectual, condicionando a sociedade à um único caminho possível para se distanciar da miséria: a rendição total às condições substanciais arquitetadas por este Centro.

A complexidade narrativa do livro me parece provocativa e instigante, há em suas entrelinhas uma série de metáforas; embora fora do Centro o cotidiano das pessoas soe como algo precário e difícil, ao mesmo tempo acompanhar o avanço das personagens nos faz pensar que é justamente esse lugar aparentemente miserável, a única possibilidade de encontro com a verdadeira natureza do ser humano, o significado existencial.

Surge então na trama um cachorro na olaria, que sem pedir licença, ocupa a casinha que era do antigo animal, e assume a função de religar o sentido de família daquelas pessoas, que parece ter se perdido.

A Caverna é mais uma excelente obra de Saramago, que escancara o perverso modo de vida artificioso e fácil de pseudoexistência, e aponta para a necessidade de se comungar com a verdadeira humanidade que se perdeu em nós.

NOTA: 8,7

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

RESENHA DE LIVRO – NAS TUAS MÃOS

Na última resenha que postei aqui no blog, mencionei a beleza contida em narrativas que relatam a vida de pessoas simples, mas que causam muita identificação com o leitor, justamente por esta simplicidade. Coincidentemente este NAS TUAS MÃOS é mais um caso de história de pessoas comuns, a escrita de Inês Pedrosa encanta com facilidade, porque seu escopo está nas fragilidades, incertezas, tédios, vaidades e invejas; emoções que também podem aparecer em grandes sagas, mas em obras como as de Inês a coisa é mais crível, pois suas personagens costumam agir na exata medida que eu e você: não sabem bem o que fazer com esses sentimentos.

NAS TUAS MÃOS, romance vencedor do Prêmio Máximo de Literatura (promovido pela revista Máxima), narra a história de três gerações de mulheres, que começa com o diário da matriarca, depois acompanhamos as reflexões extraídas do álbum de fotografias da filha, terminando nas cartas existenciais da neta. Três personalidades distintas vivendo em três períodos diferentes em sua nação, Portugal.

Como é recorrente na literatura de Inês Pedrosa, aqui o foco principal são os relatos íntimos e subjetivos dessas mulheres, suas dores, dúvidas e transformações, detalhes geográficos ou situacionais são secundários. Semelhante ao que ocorre em outras de suas obras, a trama se concentra em nos mostrar a intimidade do olhar das personagens; se você é o tipo de leitor que gosta de autores que dispendem longos e minuciosos parágrafos com narrativas dos aspectos técnicos, físicos e ambientais, esta autora não é pra você.

Desse modo, NAS TUAS MÃOS tece sutilmente um pouco do que foi a vida em Portugal ao longo de um século e as alternâncias de três tempos diferentes, nas vozes da avó, da mãe e da filha, sempre sob a ótica das protagonistas. Acompanhamos períodos que indiretamente direta e interferem no cotidiano, como ditaturas, guerras coloniais e ascensão de estado novo. Porém, o escopo está nas vidas das três mulheres.

A primeira protagonista, Jenny, conta sua história através de memórias de um diário, desde jovem, se casando com um homem homossexual e a imprevisibilidade de ter que dividir sua vida com o amante do marido, e além disso, ainda cuidar de sua filha. Essa personagem revela toda a devoção que sustentou pelo amor inquestionável pelo marido; um amor não correspondido e que, mesmo assim, fez-se existente em dedicação abnegada.

Em seguida, acompanhamos o álbum da filha, Camila e suas impressões sobre um tempo em que foi presa pela opressão ditatorial do país, após ser pega distribuindo panfletos considerados oposicionistas. Cumprido o período de reclusão, ocorre uma drástica mudança na maneira com que Camila reflete sobre o mundo e a própria vida, ela se tornou uma mulher melancólica e desesperançada.

Por fim, vamos de encontro às cartas de Natália e a terceira geração dessa família. Suas cartas são destinadas a avó Jenny, a qual ela demonstra devoção inalterável, o que contrasta com o explícito desdém que sustenta por sua mãe, Camila. Natália soa como a protagonista mais sóbria e resolvida entre as três mulheres, mas há momentos em que seus relatos soam um tanto ressentidos, achei esse o capítulo menos envolvente do livro, o que não necessariamente denota um decréscimo na leitura, digamos apenas que me identifiquei menos com essa personagem.

NAS TUAS MÃOS é uma obra instigante sobre gerações distintas e as dificuldades incutidas em cada uma delas. Reproduz a genialidade de Inês Pedrosa em criar personagens absolutamente diferentes em características, mas que se completam e dialogam entre si. Possivelmente o leitor irá se identificar com uma dessas mulheres comuns, porém, fascinantes em seus modos de interpretação de suas vidas.


NOTA: 8,5

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

RESENHA DE LIVRO – ELIETE: A VIDA NORMAL

Costumeiramente, os autores mais aclamados da literatura são aqueles que escrevem sobre grandes acontecimentos ou narram feitos extraordinários de suas personagens. O tipo de obra que percorre o mundo e encanta os leitores precisa contar com feitos raros, singulares ou extremos. E apesar de também me ver enquadrado dentro dessa universalidade que aprecia grandes sagas, tenho que confessar que me encanto por artistas que estão mais interessados em narrar trivialidade e a nada admirável epopeia de gente como a gente.

É o caso dessa fabulosa portuguesa chamada Dulce Maria Cardoso (uma presença contínua aqui no blog): sua admirável capacidade de direcionar nossa atenção para aquilo que geralmente passaria despercebido; de nos fazer olhar para o objeto de desinteresse, ignorado justamente por ser tão parecido com a nossa realidade.

A Eliete do título é um complemento de outras mulheres que compõem o universo literário dessa autora; são mulheres que levam suas vidas de modo simples, alheias a grandes ambições e até desprovidas de perspectiva quanto ao futuro. Mulheres que vivem cada dia como se o mundo fosse apenas um lugar de espera..., espera pelo fim de mais um dia, pelo término de uma tarefa, espera pela inevitável finitude. E no meio disso tudo há o adversário definitivo de suas vidas: a amofinação.

Eliete é o arquétipo perfeito do subtítulo da obra: o que há de mais evidente numa vida comum. Mulher de meia idade, casada com um homem decente, mãe de duas filhas saudáveis, corretora de imóvel mediana, adquiriu casa, carro e natais em família. Basicamente era a materialização da vida que sempre sonhou.

Contudo, a percepção da personagem sobre a própria vida começa a mudar quando sua avó é acometida de doença e hospitalizada; o diagnóstico recebido é o Alzheimer. Desse modo, a fragilidade de um parente próximo faz com que Eliete volte sua atenção para si própria, e a colocar em perspectivas os eventos do passado e presente, numa inquietante e inusitada autoanálise.

Junte-se a isso outras duas personagens que me parecem centrais na trama: a mãe de Eliete e a já citada avó. Trata-se de três gerações de mulheres que vivem conflitos distintos e são completamente descaracterizadas uma das outras, como se a consanguinidade não fosse algo suficiente para angariar semelhanças.

E apesar de todo esse cenário banal da vida humana, a narrativa de Dulce Maria Cardoso não deve ser subestimada. Aqui encontramos na voz da personagem principal que narra a história, reflexões ricas, alguns fluxos de consciências e o encontro com aspectos que nos parecem óbvios, mas que de alguma forma, não gostamos ou não sabemos verbalizar.

A personagem então vai em busca de sentido, de significado, e como nos é mais típico, procura isso de modo descabido e um pouco desesperado. Ela cria uma conta falsa num aplicativo de encontros amorosos, estabelecendo relações efêmeras advindas das redes sociais de internet, tão comuns na atual modernidade. E através do olhar de sua protagonista, Dulce Maria vai nos aproximando das crises contemporâneas e a complexidade de se sustentar uma vida pública e outra privada.

No livro do Apocalipse da Bíblia, há um agouro sobre Deus que alega: “porque não és quente nem frio, ei de vomitar-te”. Ou seja, uma vida morna e cheia de banalidade é algo categoricamente desprezado pelo criador. Mas no caso deste Eliete: A Vida Normal, aquilo que seria desinteressante é justamente o que há de mais sedutor: a nossa própria identificação perante a contraditória e inescapável banalidade. É um retrato íntimo, pessoal e ao mesmo tempo coletivo, que exibe gerações diferentes de mulheres em conflito constante. Eliete é o reflexo do enfado por uma vida que se realizou na precisão que se buscava, e desse ponto em diante, busca-se desesperadamente uma outra forma de experimentação.

NOTA: 8,7

domingo, 10 de dezembro de 2023

HOMENAGEM – A CRONISTA LISPECTOR

A crônica é um gênero da literatura que costuma fugir do rigor jornalístico, para se aproximar um pouco mais da função de entretenimento e reflexão, trazendo em seu conteúdo personagens que podem ser fictícios ou não, muitas vezes para nos relatar frivolidades que escapam do nosso interesse no dia a dia.

Se o viés do conteúdo da crônica nos parece inútil, podemos concluir que isso nada mais é do que um efeito colateral, pois ao aproximar o leitor de uma identificação própria que o fará reconhecer-se no texto, cria-se a impressão de ao dispensável. E quanto a isso, devo acrescentar que a crônica é possivelmente o gênero que melhor aproxima estes dois indivíduos aparentemente distantes: leitor e escritor.

Gosto desse modelo literário e o leio frequentemente. E apesar de ter a chance de degustar obras estupendas de diversos especialistas em crônica, foi somente quando li Clarice Lispector em sua delicada exposição de emoções pessoais por meio da crônica, que pude enxergar este modelo híbrido de literatura, da forma que aqui exponho. Afinal, é impossível deixar de se identificar com as angústias dessa brilhante autora, seus textos remetem-nos ao desconforto, instabilidade e questionamentos dos mais variados à cerca do cotidiano.

A crônica de Clarice fez com que eu me aproximasse dela, sua liberdade de se expressar com voz própria, libertando-se dos personagens fictícios que permeiam seus romances, além de outros trabalhos que fez usando pseudônimos, foi somente na crônica, por meio de imensa familiaridade humana, que a senhorita Lispector me fez querer saber mais sobre peculiaridades da vida que escapavam de meu olhar equivocado, numa intensa imersão íntima e orgânica.

Não é por acaso que quando sou perguntado sobre por onde começar a ler Clarice, eu indico sem medo de erra, que se comece pelo caminho da cronista, para só então adentrar em seu universo romancista. Sim, pois por meio da crônica, Clarice quebra barreiras metódicas e narra a vida cotidiana sem a impessoalidade da reportagem, acrescido um profundo mergulho psicológico.

Não quero dizer com isso que, em alguns momentos, a crônica de Clarice não esbarre no viés informativo, uma vez que, informação é tudo o que se relata, mesmo aquilo que menos importa. E o olhar para as impressões que se tem perante as frivolidades do cotidiano, do relato puro e simples daquilo que ocorreu dentro da mente, de divagações que se aprofundam conforme se avança na leitura, ou a linguagem acessível sem deixar de ser formosa, é o que segura na mão do leitor e o faz se aproximar de Clarice.

Sem as máscaras de outros gêneros, Clarice Lispector compartilha sentimentos próprios, tira-nos a dúvida quanto a quem pertence aquelas impressões, que sabemos ser fruto da intimidade da autora. Já quando lemos um conto ou um romance, tudo se torna mais nebuloso e impossível a associação do conteúdo ao pensamento do autor, embora seja fato que muito do que vai para as páginas de um livro carregue uma fagulha de influência da vida do escritor.

Através desse gênero composto, a grandiosa Clarice narra corajosamente assuntos que são parte de sua rotina, revelando seu modo de pensar, faz-nos enxergar sua própria rotina; Clarice se utiliza do cotidiano como matéria prima para nos despertar sensibilidade.

Sempre que nos aproximamos da data de seu nascimento (que coincide com a proximidade da data de sua morte), permito-me revisitar alguns de seus textos. Esse ano escolhi A Descoberta do Mundo, um compilado de crônicas que foram publicadas no Jornal do Brasil entre o ano de 1967 a 1973. E o que sempre me intriga nestas releituras é o ineditismo inerente na obra dessa autora; reler Clarice Lispector é como entrar num universo que, apesar de soar familiar, a todo momento se descobre algo novo a se refletir, que parece nos ter escapado em leituras passadas.

Quando Clarice fala de si por meio de sua crônica, exerce um magnetismo que nos puxa para perto dela. E é muito gostoso sabermo-nos tão próximo dessa extraordinária escritora, cuja coragem em entregar sua vida real, é o elemento que fez com que sua obra se tornasse irresistível.

FELIZ ANIVERSÁRIO, QUERIDA CLARICE!

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

RESENHA DE LIVRO – A BESTA HUMANA

Criei este blog no ano de 2011 pensando em estabelecer um espaço autônomo, onde eu pudesse manter uma constância no exercício da escrita, principalmente em tempos os quais me via carente de inspiração. O intuito era não me permitir ficar muitos dias sem praticar, afinal, o elemento fundamental de quem anseia aprimorar o próprio trabalho é a persistência. Quem escreve sabe que o passar dos anos exercendo essa tarefa, inevitavelmente torna a escrita mais enxuta e palatável.

Mas não é determinante que todas as minhas leituras se tornem postagens aqui no blog; o livro precisa despertar alguma emoção, reflexão ou contrariedade. E como já mencionei diversas vezes, também não costumo falar sobre os clássicos da literatura, pois não faz sentido escrever sobre algo que já foi analisado infinitamente e por gente muito mais qualificada do que eu.

Mas às vezes o clássico é justamente a obra que causa grandes emoções, reflexões ou contrariedades, em alguns casos, os três ao mesmo tempo. E até a metade de minha leitura deste A BESTA HUMANA, não sustentava nenhuma intenção de escrever sobre ela. Porém, da metade final, e talvez por ter finalmente me familiarizado com o estilo do autor, o livro me fez pensar bastante e acho que vale dispender alguns parágrafos.

A trama se passa em 1870, um período em que as locomotivas a vapor eram o que de mais moderno existia em tecnologia de transportes. A besta humana do título faz uma analogia entre o ser humano e a máquina (no caso, a locomotiva), numa intersecção na qual criador e criatura trocam de papéis, tornando-se em alternâncias aleatórias, verdadeiras bestas imparáveis; de um lado a violência intrínseca da natureza humana, e do outro a máquina insensível em estado bruto.

No início nos é apresentado Severina e um pouco de sua vida de casada com Roubaud, um homem ciumento e possessivo, que destila na esposa sua insegurança na forma de violência; já nas primeiras páginas cria-se um asco terrível em relação aos acessos furiosos desse personagem. Com o passar da leitura, insere-se outra personagem central: Tiago, sujeito um pouco enrustido, que apesar de atraente, costuma fugir de mulheres por conta de um irrefreável desejo de morte, um impulso obscuro que o faz querer assassinar as mulheres que dele se aproximam.

Outros personagens entram em cena com o avançar dos capítulos, mas creio que a trama fique sobre o arco entre estes três citados, mais a locomotiva, que permeia toda a obra, influenciando diretamente as vidas daquelas pessoas, assim como é também o arquétipo da morte, por sua notória imponência.

Trata-se de uma história contendo diversas facetas da maledicência humana, onde os instintos mais primitivos sobressaem o senso ético em nome de interesses próprios, e quando não sobressai, insere-se uma justificativa simplória que valida a violência como método.

Émile Zola usa de sua escrita para desnudar a natureza do ser humano. Considerado um dos precursores da literatura naturalista, Zola tece essa natureza egocêntrica e asquerosa do humano através das atitudes e visão limitada de mundo de suas personagens, cujos anseios indizíveis estão em todos e em todo lugar, mas disfarçados por meio de máscaras sociais que encobrem suas verdadeiras faces. Este foi o ponto mais elevado da trama e que me fez seguir com a leitura.

Como já mencionei, tive alguma dificuldade na primeira metade do livro, pois leva um tempo até que nos acostumemos ao estilo exageradamente prolixo do autor. Há parágrafos que avançam para além de uma página, muitas vezes para narrar a frivolidade cotidiana. É preciso uma boa dose de persistência para se descobrir a magia da obra.

Outro elemento que incomoda um pouco é que li uma edição de 1982 da editora Hemus, cuja tradução foi feita por Eduardo Nunes Fonseca. Aqui a diagramação está muito comprimida, com letras muito pequenas, sem descanso nas páginas e significativos erros gramaticais.

A BESTA HUMANA é um romance perturbador que desnuda o ser humano em toda sua maldade inerente. Faz parte de um projeto de vinte livros que narra histórias naturais e sociais de um tempo, publicados entre os anos de 1871 e 1893. Leitura um pouco extensa, mas vale pela possibilidade de se testemunhar até onde desejos sórdidos podem levar indivíduos de uma sociedade.

NOTA: 7,2

domingo, 26 de novembro de 2023

CRÔNICA – UMA ÚLTIMA VEZ

Em que momento aquela senhora se sentou do meu lado, eu não saberia dizer. Também não saberia precisar quanto tempo fiquei desacordado. Estava com sono e os olhos cerraram-se com força incessável, o tronco pendeu para o lado, a cabeça tombou e o livro caiu sobre o assento. Nos últimos meses ando tão cansado, que sou tomado por um sono indescritível sempre que estou na praça para fazer minhas leituras..., então quando despertei ela estava bem ali, dividindo comigo o calor e o banco da praça.

Parecia não me notar, sentada cuidadosamente no cantinho, contemplando as frivolidades da praça, em silêncio total, pernas cruzadas, mãos apoiadas sobre o colo, observava tudo com demasiada atenção, mas se algo lhe despertava algum interesse, não demonstrava; nenhuma expressão ou movimento, parecia sequer respirar, como quem receia acordar seu companheiro de assento.

Recompus-me, meio sem jeito. Não é comum que alguém se sente do meu lado, as pessoas geralmente evitam proximidade com gente esquisita que tem tempo para ler livros e usa o banco da praça para cochilar. Ajeitei a gola da camisa, resgatei o livro aberto do assento, disse boa tarde, mas ela não me respondeu.

Permanecia quieta, observando a cidade.

Era uma mulher na casa dos sessenta anos, magra, usava um vestido leve e comprido. Seu rosto era de uma infinita serenidade, rugas desciam por seu pescoço imóvel. Parecia ser uma pessoa gentil, apesar de não ter respondido ao meu cumprimento, talvez por conta de problemas auditivos.

– Não precisa verificar o queixo o tempo todo – disse ela, súbito, sem me olhar diretamente – você não estava babando.

Era exatamente a neurose que me domina, sempre que estou a tirar cochilos, sentado no banco da praça; o receio de algo estar escorrendo da boca, talvez por repudiar pessoas que fazem isso, temo estar a fazer aquilo que condeno.

– Desculpe – falei, sem saber ao certo o que dizer – eu ando meio cansado. Há quanto tempo estou dormindo?

– Uns dez minutos, eu acho.

– Que coisa... Ainda bem que livro não é objeto de interesse de ninguém. Do contrário, eu teria meus livrinhos abreviados todos os dias.

– Na verdade, eu confesso que até verifiquei o título – disse ela, finalmente se virando pra mim – Mas não me interesso por processos.

O título do livro em questão era O Processo, de Franz Kafka. Era uma leitura um pouco confusa, a trama da obra é como estar dentro de um pesadelo estranho e imprevisível. Não era ruim, mas não estava me agradando... E quando não gosto de uma leitura, parece que meu sono se multiplica.

– Então a senhora veio até meu banco para ver se o livro que deixei escapar lhe interessava?

– Não, eu só notei o livro quando me sentei.

Olhei ao redor da praça e uma coisa me deixou intrigado:

– Há outros bancos vazios, por que a senhora veio se sentar aqui?

– Porque você não parece cansado..., parece triste.

Não sei dizer se com todo mundo é assim, mas dificilmente sou notado nos lugares em que estou. Pode ser que esteja sendo injusto comigo mesmo, ou quem sabe minha insignificância seja mais presente quando vou à praça ler, como apenas mais uma parte do cenário, não sou visto por ninguém. De qualquer forma, sinto-me ajustado quando estou lendo na praça, então pode ser que seja exatamente este encaixe que me torna invisível, pois tudo o que é comum, passa despercebido por olhares alheios..., acho que se trata de outra magia da leitura: a capacidade de escapar do momento presente.

– Estou vivendo o luto de uma perda muito grande – respondi, ainda surpreso com aquela observação a meu respeito.

– Quem ou o que você perdeu?

– Meu irmão mais novo – falei, a voz vacilante – passou as últimas três semanas lutando contra um AVC, mas foi derrotado na última sexta-feira.

– Vocês eram muito próximos? – agora ela parecia realmente interessada, aquele olhar calmo e afável me fez continuar.

– Eu diria que sim, tanto no aspecto regional, pois morávamos muito perto, quanto no aspecto emocional..., eu cuidei dele por muito tempo quando era bebê. Tínhamos nossas diferenças, as vezes isso gerava discussões, mas sempre tive uma ligação muito forte com ele.

Ela desviou o olhar para o chão. Havia alguns pombos nos rodeando, curiosos ou esperançosos por um gesto costumeiro que algumas pessoas fazem quando estão sentados na praça. E foi justamente o que a mulher fez, tirou não sei de onde uma sacolinha cheia de migalhas.

– O que você mais gostava no seu irmão? – ela retirou um tanto do conteúdo do saquinho e atirou no chão diante de nós.

– Acho que a coragem que ele tinha – levei um susto com a enorme quantidade de pombos que surgia de todos as direções, pousavam sob nossos pés para disputarem as migalhas – Ele focava no que queria e seguia em frente, não deixava que nenhum revés da vida lhe abalasse. Estava prosperando, realizando seus sonhos, parecia feliz..., então veio o maldito AVC e acabou com tudo.

– Se ele era o caçula, devia ser bem jovem, pois você não me parece muito velho.

– Ele tinha 34 anos..., eu tenho 42.

– O universo é mesmo injusto, não é mesmo? – disse ela, encarando a aglomeração de pombos – Tira-nos pessoas que amamos muito cedo, sem nenhuma fundamentação do ato.

– Só o que existe é a contingência, minha senhora.

– E por isso o ser humano tem tanto medo – ela atirou mais algumas migalhas e se virou para mim – Mas e quanto a Deus?

– Deus? A senhora acredita que existe alguma entidade por aí manipulando a nossa existência, como se fôssemos peões de um infinito jogo de tabuleiro?

– E se houver?

– Então esse Deus é imensamente despótico e cruel.

– Cruel ou não, você não acredita nisso.

– Talvez até exista alguma força soberana por aí, mas ela não quer saber de nós. Somente passou por aqui e foi embora..., acho que estamos sozinhos neste planeta. E acho que o ser humano teme a solidão mais do que a morte.

Fizemos um breve silêncio. A mulher não parecia nem um pouco contrariada com minhas respostas. Até porque eu também não sabia o que ela pensava sobre esses assuntos metafísicos. Mas se ela se sentiu desconfortável com minhas respostas, a culpa era dela. Não foi eu quem começou a falar de Deus! Contudo, era prudente sustentarmos aquele silêncio por algum tempo. Algumas ideias demoram a serem digeridas pela mente.

– Quando foi a última vez que vocês se falaram? – foi ela quem retomou o papo.

– Você quer saber quando eu falei com Deus pela última vez?

– Achei que você não falasse com Deus.

– Converso comigo mesmo, como todo mundo..., acho que se fosse religioso eu acreditaria que estivesse conversando com Deus.

– Eu li em algum lugar que a relação de um ateu com Deus é como a de dois amigos que brigaram e não se falam mais; os dois ainda se amam, mas são orgulhosos demais para ceder.

– Eu não costumo me considerar um ateu.

– E o que você é?

– Não sou nada..., não gosto de rótulos.

– Tudo bem, mas quando eu fiz a pergunta, estava na verdade me referindo ao seu irmão..., quando foi a última vez que vocês dois se falaram?

– Acho que foi numa sexta-feira, eu passei na lanchonete dele e conversamos um pouco – as migalhas acabaram e, devagar, os pombos foram se dispersando. Ao longe, alguns motoristas começaram a buzinar, estressados no trânsito – Como não era incomum, tivemos outra discussão por conta de diferenças e eu usei um tom cheio de ironia para depreciá-lo. No sábado, eu não sai de casa pra nada, passei o dia estudando e no domingo cedo a mulher dele me ligou desesperada. Quando cheguei na casa deles, encontrei-o caído no chão, estava consciente, mas sem movimentos e não falava... aquela era a primeira de três imagens perturbadoras que vivenciaria nos próximos dias.

A confusão no trânsito pareceu se dissipar do mesmo modo que começou: espontaneamente.

– Quais foram as outras duas? – ela quis saber.

– A segunda foi quando o vi no hospital, duas semanas depois do AVC. Tinha sofrido algumas cirurgias, estava debilitado, o crânio muito inchado, inexpressivo, ele quase não se movia, apenas me acompanhava com o olhar. Não foi nada fácil ver um irmão que sempre vi saudável e alegre, arruinado daquela forma. Quando toquei a única mão que ele manifestava algum movimento, seu dedo polegar ficou a acariciar as costas da minha mão, levemente..., um dedo! Era todo o afeto que sua condição permitia demonstrar.

A lembrança daquele dia fez a indignação emergir em meu ser. Achava tudo aquilo muito injusto, como pode uma vida tão jovem e próspera ser abreviada daquele jeito cruel, sem ninguém com quem pudéssemos atribuir alguma responsabilidade? O mesmo ódio incoercível que senti ao ver meu irmão frágil numa cama de UTI estava de volta, ali na praça..., mas afinal, ódio de que? Ódio de quem?

Como a impotência diante da finitude é o elemento mais notório do ser humano, clamamos por vingança! Meu irmão estava morto e a sensação era de impunidade..., Isso me fez pensar que Deus fosse, de fato, uma entidade onipresente, pois assume até mesmo o lugar de réu, porque sabe que precisamos dessa ínfima clemência.

– A terceira imagem aterradora foi vê-lo no caixão, a pele arroxeada, gelada feito mármore. Não era apenas a imagem da morte dele, mas a representação do fim da esperança. A confirmação de que estamos mesmo sozinhos no mundo. Todas as orações e súplicas foram sumariamente ignoradas... Sim, talvez exista um Deus todo poderoso por aí, senhora. Mas ele está cagando pra nós aqui.

O calor ou a raiva começava a fazer meus poros minar. Estávamos sentados naquele banco recebendo um sopro cálido que parecia intencionado em nos expulsar dali. Pra piorar, eu tinha agora uma coisa entalada na garganta, fruto das memórias recentes. Enquanto a mulher do meu lado parecia impassível, o que me fez descartar a hipótese de que ela fosse membro de alguma religião interessada em usar a minha dor como justificativa para arrastar-me ao templo do Deus dela. A menos que fosse alguém exclusivamente interessada em somar mais um dizimista e, portanto, estivesse insensível ao meu sofrimento.

Porém, não parecia ser o caso, a mulher demonstrava interesse apenas quando me fazia perguntas, e então retornava ao modo contemplativo.

– E se você pudesse voltar no tempo? – perguntou ela.

– Como é?

– Se você pudesse estar de volta àquela sexta-feira, exatamente no instante em que chegou na lanchonete do seu irmão?

– Eu..., eu não sei. – Fui pego de surpresa por aquela pergunta, que estranhamente sova como uma proposta – Nunca pensei sobre isso.

– Funciona assim: – ela se virou e assumiu ares instrutivos – você vai devolver seu livro ao assento, exatamente onde ele estava, depois recostar a cabeça de volta no encosto do banco e fechar os olhos. Então você vai dormir novamente... Quando acordar, eu não estarei aqui e será sexta-feira, 29 de setembro. Você vai terminar sua leitura, voltar ao trabalho e no fim da tarde, irá até a lanchonete do seu irmão. Ele estará lá, cuidando das coisas como num dia qualquer.

Ela fez uma pausa, enquanto eu preenchia a mente com a visão dele me recebendo como sempre fazia, um abraço, duas ou três perguntas banais sobre o meu dia, então ofereceria uma cerveja gelada. Se aquilo fosse possível, poder desfrutar de sua presença uma vez mais, então eu estava diante de uma oferta irrecusável. Mas antes que eu dissesse qualquer coisa, a mulher ergueu o indicador em sinal de cautela:

– Só existe uma condição nisso que estou oferecendo a você.

– Que condição?

– Nada do que você fizer poderá mudar o que virá nos próximos dias – estava-me sendo colocado na consciência o paradoxo da escolha – Você terá seu retorno ao passado como se fosse uma chance de despedida da maneira que lhe parecer mais adequada. Contudo, terá que reviver os dias seguintes, que serão estritamente iguais ao que aconteceu; seu irmão sofrerá o acidente vascular cerebral, você será o primeiro a chegar para prestar socorro, ele ficará semanas internado numa UTI, você fará aquela mesma visita e receberá o limitado carinho que ele pôde fazer com o dedo..., então chegará o nefasto dia da morte, o indigesto velório, o enterro lúgubre e o inescapável luto...

Pareceu-me um preço muito alto a se pagar.

Eu não sustento nenhum tipo de remorso em relação à convivência que tive ao lado do meu querido irmão. Mas reconheço que seria muito bom poder voltar a lanchonete e encontrá-lo, uma última vez, ver aquele seu entusiasmo único e confiança inabalável, poder lhe dar um beijo e dizer que o amo..., contudo, viriam os próximos dias, cujas circunstâncias aterradoras causaram estrago incomensurável em minha alma.

Aquilo me fez pensar em contos mitológicos em que os deuses do Olimpo concediam algum desejo ao ser humano, que à priori soava como uma coisa boa, mas sempre havia algo nefasto escondido por trás da realização do desejo. A lição que os gregos queriam passar com esses contos era a de que os homens não sabem antever as consequências daquilo que desejam. Pelo menos quanto a isso eu estava sendo poupado, pois a doce senhora fez a gentileza de me contar o que havia nas entrelinhas de sua proposta. E diante disso, eu só poderia lhe dar uma resposta, fosse aquilo uma metáfora ou não, sei muito bem que não estava preparado para as consequências de reviver o encontro com a morte.

– Eu agradeço por me oferecer essa irresistível possibilidade – respondi, sem muita convicção e, por isso mesmo, torcia para ela não ser persuasiva – mas eu vou recusar sua oferta.

– Não deseja rever seu irmão uma vez mais?

– Desejo muito, senhora. Mas não sei se aguento passar por aquilo tudo novamente.

Ela estava a me olhar daquele jeito, direto, então precisei virar o rosto para evitar que ela me visse enxugando uma lagrima que escapou e desceu pela minha face. Sempre tive vergonha de chorar na presença das pessoas, embora era fato que nas últimas semanas eu andava a chorar copiosamente e em qualquer lugar, como nunca havia chorado antes. Mas naquele momento, ali no banco da praça, voltei a sentir vergonha de chorar.

– A dor vai passar, acredite – disse ela e se levantou – quando passar só restará a saudade. E desse ponto em diante, as lembranças serão prazerosas.

A mulher se afastou em uma direção qualquer, até desaparecer no meio da urbanização. Sozinho no banco da praça, eu senti um estranho arrepio que me fez retirar o telefone do bolso pra verificar a data. O que vi causou-me alívio, pois ainda estava no presente e eu não precisaria passar novamente por aqueles dias sombrios do passado recente.

Sim, eu teria adorado rever meu irmãozinho. Mas como aquela doce senhora garantiu, a dor já vai passar. E quando isso acontecer poderei revê-lo nas minhas lembranças, poder sustentar o melhor dele, sem que para isso eu tenha que vivenciar de novo os piores dias da minha vida...

Li em algum lugar que o mundo se torna mais difícil de se suportar, na medida em que morrem pessoas que gostavam da gente... Agora eu sei que isso é a mais pura verdade.

***

Em memória de meu querido irmão

18/03/1989 - 20/10/2023


sábado, 11 de novembro de 2023

RESENHA DE LIVRO – POSITIVAMENTE IRRACIONAL

Não importa qual o aspecto da vida humana esteja em pauta. A complexidade que nos é tão característico, faz com que qualquer especificidade seja de difícil compreensão. Conclusões racionais definitivamente estão fora de hipóteses quando se pensa no ser humano. Há diversas nuances que interferem ou que influenciam a equação do nosso comportamento. Talvez este seja o elemento mais agradável quando se inicia uma leitura como a desse POSITIVAMENTE IRRACIONAL: uma análise absolutamente convencida dessa complexidade e, portanto, tem por finalidade a espinhosa função de desbancar certezas desse enorme quebra-cabeça chamado humano.

O americano Dan Ariely é professor de psicologia e economia comportamental. Com inesgotável inquietação por compreender a nossa espécie, seus trabalhos são constantemente citados em distintas plataformas. Este aqui é seu segundo livro, que soa como uma espécie de continuação temática. O primeiro chama-se Previsivelmente Irracional. Em ambos a conduta do homem é o escopo essencial do autor.

No primeiro livro, Dan nos mostra implicações de tomadas de decisões aparentemente irracionais do ponto de vista comportamental, mas que fazemos de modo automático ou sem uma devida reflexão. O livro tem como premissas repensar o modo como nós agimos no cotidiano. Já POSIVITAMENTE IRRACIONAL busca responder questões como por que recompensas financeiras nem sempre funcionam? Por que superestimamos o que fazemos? Por que consideramos nossas ideias sempre melhores do que as dos outros?

Uma característica desse autor que aparece no primeiro livro e se repete neste, é para com sua didática experimental do comportamento humano. Dan Ariely se aprofunda em pesquisas da conduta econômica, coleta dados e nos faz um resumo de seu trabalho, usando uma linguagem acessível e às vezes até divertida. Também faz uso de sua própria experiência de vida para fazer associações com outros dados, como uma verdadeira cobaia da vida.

A irracionalidade está incutida em quase todas as nossas decisões de vida, de modo inconsciente. E inevitavelmente, isso reflete nos resultados futuros ou até geram conflitos inéditos e danos irreversíveis. Ter alguma noção de como funciona a mente humana é a premissa, talvez um tanto utópica, a qual o livro reconhece tamanha impossibilidade.

O autor faz parte de uma equipe de colaboradores do notório MIT – Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Os resultados de diversos testes sociológicos feitos pela equipe validam algumas perspectivas de como agimos sob a influência de padrões emotivos de comportamento, e de como tais padrões podem afetar nossa vida a longo prazo.

Também faz parte da análise da obra certos padrões comportamentais que inconscientemente estabelecemos na vida, sem nos darmos conta de que tais comportamentos foram estabelecidos em nossa conduta por um padrão condicional efêmero, como por exemplo, quando agimos tomados por emoções de curto prazo, que acabam se tornando algo normativo e achamos que isso é um aspecto de nossa natureza, em vez de comportamento aprendido.

POSITIVAMENTE IRRACIONAL é um interessante trabalho, inconclusivo por excelência, de linguagem acessível e recheado de curiosidades sobre nossa natureza. Busca compreender um pedacinho da complexidade humana, oferece novas perspectivas e verdades sobre nossas reais motivações na convivência profissional e pessoal e o que torna o ser humano quase inerentemente procrastinador.

NOTA: 9,3

sábado, 28 de outubro de 2023

RESENHA DE LIVRO – QUEIMADA VIVA

Desumanização é o modus operandi aplicado a seres socialmente invisíveis, seja pela indiferença ou preconceito. No cenário capitalista universal o preconceito que gera invisibilidade se estende a tudo o que está fora dos padrões de vida das classes hierarquicamente superiores. Desumanizar é tornar um indivíduo menos humano, abreviar sua individualidade, os aspectos criativos e distintos de sua personalidade. Desumanizar é transformar o outro em coisa; é quando um indivíduo perde seu valor essencial e então passa a se identificar como “objeto”, algo de utilidade finalista, e somente isso, pois coisas não têm iniciativa própria e são totalmente dependentes da vontade dos outros para movê-los.

Exemplo histórico e difundido desse conceito está no período da segunda guerra mundial, em que a Alemanha nazista dispendeu enorme esforço em propaganda no sentido de desumanizar os judeus. Tiveram relativo êxito em transformá-los em sub-raça, então receberam carta branca da sociedade para exterminar milhares de vidas humanas...

Por que eu começo esta resenha falando de desumanização?

Porque tudo isso que você acabou de ler, serve como sinopse desse livro, pois é exatamente disso que a obra trata. No caso de Queimada Viva, um importante e necessário documento histórico, a desumanização cultural leva o nome de patriarcado, uma praga que caiu e ainda cai sobre os ombros das mulheres de diversas regiões do planeta; seres humanos que foram transformados em coisa, para que fosse validado sua condição de escravizadas.

A história de Souad, narrada por ela mesma, começa com descrições do seu cotidiano de condenada por ter nascido mulher e, portanto, ter que viver numa comunidade sem nenhum direito, nenhuma justiça, nenhum tipo de possibilidade de desenvolvimento minimamente aceitável. Souad apenas sobrevive cada dia em que o patriarca de sua família a submete a trabalho forçado, tortura ininterrupta e condições existenciais precárias, enquanto ela sonha com a única possibilidade de anseio permitido à uma mulher: se casar e talvez assim, poder trabalhar um pouco menos, apanhar um pouco menos e subsistir um pouco mais. Mas ela sabe que não será dessa forma, e o desejo emudecido de toda mulher nascida na mesma comunidade da Cisjordânia que Souad nasceu, é casar com um homem cujo chicote arranque menos sangue que o chicote do pai.

“Até onde meu cérebro é capaz de lembrar, eu nunca soube o que é brincar ou ter prazer. Nascer menina na minha aldeia é uma maldição. O único sonho possível de liberdade é o casamento”, (página 10).

Souad nos revela sua vida de infância sofrida até a adolescência em que começam os anseios de um casamento. Mas naquela comunidade a regra é esperar até que as irmãs mais velhas se casem primeiro. Enquanto espera, ela se encanta por um homem, eles se encontram algumas vezes e o inferno se instaura na vida da jovem palestina. Uma mulher naquela cidade não pode ter encontros com um homem antes do casamento, aliás, não pode sequer olhar na direção de um homem. Souad engravida e é condenada por algo asqueroso que por lá chamam de “crime de honra”.

O castigo é o título da obra.

A forma com que nos é apresentado os momentos que antecedem o castigo até o momento em que Souad vai parar num hospital, é tão verossímil que causa desconforto; a sutileza de detalhes narrativos escancara a banalidade do mal com tamanho desalento, que eu precisava fazer pausas na leitura, até que o ar retornasse aos meus pulmões (fazia tempo que não encontrava um livro capaz de me causar tanta aflição). Milagrosamente sobrevive, então a mãe de Souad vai visitá-la no hospital e o leitor pensa: “ela só pode estar com o coração doendo por ver a própria filha completamente queimada”. Doce ilusão que vou deixar para o leitor descobrir o que a mãe foi fazer no hospital onde a filha se encontrava, após receber o castigo do crime de honra...

Souad é uma rara sobrevivente dessa cultura misógina e asquerosa, que de tão primitiva em costumes, se torna difícil de ser assimilada por nossa cultura. Sobreviveu para nos contar não somente sua história, mas a de milhares de mulheres que continuam lá... E sinceramente, não sei mais o que escrever, só peço que leiam este livro. É preciso que saibamos o quão variável e imenso pode ser a maldade humana!

O filósofo Sócrates disse que “a ignorância é o único mal”.

Segundo essa ideia, quem faz o mal, só o faz porque não compreende que está a fazer, portanto, sua ignorância é o que o leva a maledicência. Mas a história de Souad faz com que essa hipótese caia por terra, pois a mensagem que esta necessária obra nos traz é que a verdadeira causa da maldade no mundo não está propriamente na ignorância, mas na falta de empatia.

NOTA: **10**

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

RESENHA DE LIVRO – UM LIVRO EM FUGA

Edgard Telles Ribeiro é um exemplo notório do quanto os brasileiros conhecem pouco a literatura de seu país. O próprio autor disse numa entrevista, já um pouco antiga, que seus livros são bem mais conhecidos no exterior do que aqui no Brasil. Diplomata aposentado, Ribeiro fez uso de sua condição nômade para levar suas obras a outros países e, por consequência, adquiriu certa notoriedade..., contudo, por aqui ele segue como um ilustre desconhecido. 

Talvez por conta do passado como diplomata, este UM LIVRO EM FUGA tenha algo de biográfico, como salientam alguns críticos sobre o quanto é impossível desvencilhar o autor de sua obra por completo. O protagonista aqui é um homem caminhando para a terceira idade, embaixador, segue uma existência meio cosmopolita, seu último abrigo na longínqua e desconhecida Samarkan, no Uzbequistão. Eis que por conta de questões familiares, precisa voltar ao Brasil, onde se hospeda na casa de uma antiga namorada...

Não há muito o que dizer em sinopse, UM LIVRO EM FUGA vai conduzir o leitor através do olhar de um homem que, apesar de parecer gostar de sua vida sem raízes, começa a sentir um incômodo existencial, como se um vazio progressivo estivesse em expansão em sua alma.

Essa noção surge inesperadamente quando, após dias acolhido na casa da antiga namorada, ela confessa que está noiva e prestes a se casar. De modo abrupto, o chão do protagonista desaparece, ele sente o baque de uma porta que considerou estar sempre aberta à sua disposição, de repente será fechada em definitivo.

As reflexões e autoanálise progridem ao longo da narrativa, nosso herói discorre muitas vezes para dentro do passado vivido com a ex esposa, um tempo em que supostamente havia aquilo que atualmente anseia: significado. Também quando se encontra com um velho conhecido e a mera presença de ambos parece suscitar uma época empolgante (ou exageradamente construída pela memória saudosista do narrador), mesmo que parte disso não chega a ser verbalizado à mesa, a noção de desencaixe com o presente é algo quase palpável.

UM LIVRO EM FUGA parece nutrir mais de um significado em seu título. Além de a personagem principal ser escritor (outro aspecto que coincide com o autor da obra) e estar em busca de um norte para seu novo trabalho, aqui as impressões sobre fuga também parecem transitar pela percepção que o protagonista tem a respeito de seu universo: seria algo em fuga de sua realidade ou ele próprio tentando escapar daquilo que se tornou?

Edgard Telles Ribeiro é um escritor minimalista e sensível. Agrada-me o modo com que conduz suas personagens (ou seria as personagens que conduzem o teclado do autor?) cheios de incertezas, para desfechos nem um pouco convencionais e, exatamente por isso, tornam-se deliciosamente críveis.

NOTA: 7,9