Mas que Droga! Justo agora que eu ia recitar para Éolo uma
doce poesia, este resolveu aflar para longe de mim.
Talvez não queira ouvir a minha declamação... Vai ver ele percebeu
que eu não tenho nenhum cacoete de poetiza e, portanto, me considera indigna de
recitar.
Sem sua presença, restou-me uma manhã ensolarada, quieta,
suspensa, estagnada. As folhas das
arvores não se mexem; a poeira assentada e retida, de cor marrom, adorna quase toda
a superfície; o capinzal parou de fazer reverência. E tudo isso denota um
cenário no qual a natureza fora abreviada, reduzida... Como se tivesse sido
expurgada de mim, sufocada por sua acinesia. Porque quando a minha mais nova
fonte de veneração resolve repousar, e ele repousa, sua ausência faz com que eu
me sinta ainda mais externa à existência.
Aqui sozinha, sinto-me uma simples mobilidade dentro de um
molde congelado; uma intrusa desconexa que viola a eternidade quieta... E minha
insignificância manifestada neste instante de halos em brasas, sem sopro algum
para me acalentar, faz-me sentir confusa. Não sei se esta redução da natureza se
trata de punição ou apenas precipitação. Acontece que as minhas transgressões
se devem ao fato de que estava a ler poesia esta manhã... Deparei-me com
Fernando Pessoa e sua manifestação literária me fora sedutora, atraente demais.
Mas então, eis que sou repentinamente raptada por um sopro
envolvente e, pouco depois, deixada na mesma campina de outrora... Queria que
Éolo devolvesse o meu livro, mas acho que eu e ele gostamos do mesmo autor.
Deve estar inspirando poesias neste exato instante.
Foi aqui, neste mesmo tronco velho, onde agora sou consumida
por um calor amarelo e vicejar, que Éolo me fez perder todo meu senso de
comprometimento com o recato social, e menos ainda com o mundo moral vigente. Tomei
como meu intento o rumo do seu manifesto, que nesta incrível manhã de frescor se
fez vindouro, onipresente em toda sua vastidão e vaidade. E eu, vivente frágil
e destinada à concretude, quis cometer o insolente delito de seguir os passos
de meu querido Éolo, que sem consentir com meu ato, mas a exibir sorrisos e
gentilezas, deu-me de bom grado toda a sua existência, sem dizer nada, sem me esperar...
Apenas veio e soprou; atiçou meus cabelos de um jeito que eu pensei jamais
pudessem voltar à sua passividade gravitacional... E com sua brutalidade doce,
Éolo me levou pelos braços... Eu não me fiz de rogada, apenas me deixei ser
conduzida.
No entanto, ele, meu querido amante, não está mais aqui.
Não tenho o acalento suave de seu toque em meu rosto; sua
brisa a me inspirar; sua grandiosidade para me encorajar a cometer exageros.
Não tenho sua familiaridade que me tornou bailarina a rodopiar no meio da
poeira alta. Um instante em que eu, inocentemente obstinada, o seguia de olhos
fechados e lábios esticados num sorriso enternecido... Teria ido com ele até as
nuvens mais altas e lá, deixaria que consumisse toda a minha carne.
Éolo deve ser o tipo de acompanhante que se permite apenas um
encontro; um sedutor que me fez rastejar, dominada pelo aroma de sua hipnose inelutável.
Depois me levou aonde quis, apenas para ver até quando eu aguentaria sua
envolvência; se cruzaríamos os mares; se desbravaríamos novos mundos; se
intrometeríamos nas curvaturas longínquas da Terra.
Onde foi que se meteste meu peregrino malévolo?
Temia que a manhã continuasse enraizada. Mas eis que volto a ouvir
a manifestação de um sussurro que não sei se provém de uma realidade
escapadiça, ou se é fruto de minha irrefreável imaginação... Já não sei identificar
o que é confiável em meu julgamento.
O brado é suave, porém autoritário... Sem saudar-me exigiu
explicação.
Sua imposição despótica me causou arrepio. Automaticamente
meu ser se converteu num instrumento destinado à obediência covarde. Agora eu
só quero concordar, torcer pelo argumento semelhante, mas se não for possível,
assentirei de bom grado, afinal, não possuo audácia para defrontar a ira daquele
que detém os meus impulsos... Talvez após sua rispidez ele me tome de novo em
seus braços.
Mas ignorando completamente minha submissão, o sopro se ergueu
opressor. Encheu-se de arrogância e narrou; acusou-me de ter feito tudo errado;
que sou uma mulher burra e não deveria seguir aquilo que não entendo... Éolo
rodopiou colérico, parecia arrependido de ter me mostrado sua travessia de
possibilidades; condenou-me de ter negado o precioso vislumbre que me propôs; disse
que eu deixei evidente minha cegueira patológica...
Sentada no tronco velho, eu me vejo no núcleo de um redemoinho
cinzento, cheio de folhas e gravetos. Quero dizer algo em minha defesa, mas
Éolo está possesso demais... Sei que ele não me escutará.
“Por que me seguiste?”
– escuto sua indagação arrastada e cheia de eco – “Se tudo o que fizeste foi apenas copiar o meu rastro... Por que eu
permitiria tal insolência, se era apenas para ficar a rodopiar pelo ar, como uma
pena desprezível que foi expelida da plumagem? Por que não soltaste de minhas
amarras e planasse com tua própria coragem, almejando o mundo por outra
perspectiva? Por que quiseste juntar-se a mim, se sabia que eu não desviaria de
meu caminho ante nenhuma vontade alheia? Achavas mesmo que eu iria evitar minha
triunfante trajetória, apenas para poupar teu lar insignificante? Achas que tua
vivenda é mais digna do que um formigueiro?”.
Meus cabelos esvoaçando... O que estás dizendo, querido Éolo?
“Não o fizeste porque
és uma covarde!” – condenou ele, ainda me tendo em seu centro – “Nasceste
presa à um cordão e nele estás arraigada até os dias de hoje. Queres o mundo,
mas apenas se for entregues a ti numa bandeja, cozido e cortado em fatias. Foste
tão desprezível, que em vez de olhar para a virtude de minha transformação,
preferiu a tola busca por minha presença. O que querias encontrar? Meu rosto?
Sua tola humana... Saibas que não constituo nenhuma das tuas quimeras; não
existo para seu deleite; e em vez de querer o que não podes verificar, por que não
aprendes com a ininterrupta manutenção da vida?”.
“Tua existência
medíocre é a tua máxima!”.
“Tua covardia é pesada
demais para insinuar-se na gravidade. Como poderá me seguir se és incapaz de
arrancar teus próprios escombros e voar? Como poderá ser forte para jornadas
longínquas, se com facilidade deixas que atravessem a tua carne? Como poderás
alegrar-te se desconhece o valor do risco suave que faço em tua epiderme com
meu sopro invisível? Pois saibas que
quem semeia vento, colhe tempestade...”.
Então, um repentino silêncio engoliu aquela voz... Éolo se
foi;
Expeliu-se no ar, transformando o redemoinho num enorme e
infinito nada;
As folhas secas caindo no chão ao meu redor;
A poeira se assentando lentamente sobre as páginas de
Fernando Pessoa;
O firmamento voltou a serenidade reluzente do Sol;
E onde antes havia alicerces de minha morada, restaram apenas
destroços coloridos;
Eram como confetes emergentes do caos;
Perguntei por minha mãe e meus irmãos. Mas Éolo se fora em
definitivo...