quarta-feira, 9 de setembro de 2015

CONTO: O RASTRO DE ÉOLO


Mas que Droga! Justo agora que eu ia recitar para Éolo uma doce poesia, este resolveu aflar para longe de mim.

Talvez não queira ouvir a minha declamação... Vai ver ele percebeu que eu não tenho nenhum cacoete de poetiza e, portanto, me considera indigna de recitar.

Sem sua presença, restou-me uma manhã ensolarada, quieta, suspensa, estagnada.  As folhas das arvores não se mexem; a poeira assentada e retida, de cor marrom, adorna quase toda a superfície; o capinzal parou de fazer reverência. E tudo isso denota um cenário no qual a natureza fora abreviada, reduzida... Como se tivesse sido expurgada de mim, sufocada por sua acinesia. Porque quando a minha mais nova fonte de veneração resolve repousar, e ele repousa, sua ausência faz com que eu me sinta ainda mais externa à existência.

Aqui sozinha, sinto-me uma simples mobilidade dentro de um molde congelado; uma intrusa desconexa que viola a eternidade quieta... E minha insignificância manifestada neste instante de halos em brasas, sem sopro algum para me acalentar, faz-me sentir confusa. Não sei se esta redução da natureza se trata de punição ou apenas precipitação. Acontece que as minhas transgressões se devem ao fato de que estava a ler poesia esta manhã... Deparei-me com Fernando Pessoa e sua manifestação literária me fora sedutora, atraente demais.

Mas então, eis que sou repentinamente raptada por um sopro envolvente e, pouco depois, deixada na mesma campina de outrora... Queria que Éolo devolvesse o meu livro, mas acho que eu e ele gostamos do mesmo autor.

Deve estar inspirando poesias neste exato instante.

Foi aqui, neste mesmo tronco velho, onde agora sou consumida por um calor amarelo e vicejar, que Éolo me fez perder todo meu senso de comprometimento com o recato social, e menos ainda com o mundo moral vigente. Tomei como meu intento o rumo do seu manifesto, que nesta incrível manhã de frescor se fez vindouro, onipresente em toda sua vastidão e vaidade. E eu, vivente frágil e destinada à concretude, quis cometer o insolente delito de seguir os passos de meu querido Éolo, que sem consentir com meu ato, mas a exibir sorrisos e gentilezas, deu-me de bom grado toda a sua existência, sem dizer nada, sem me esperar... Apenas veio e soprou; atiçou meus cabelos de um jeito que eu pensei jamais pudessem voltar à sua passividade gravitacional... E com sua brutalidade doce, Éolo me levou pelos braços... Eu não me fiz de rogada, apenas me deixei ser conduzida.

No entanto, ele, meu querido amante, não está mais aqui.

Não tenho o acalento suave de seu toque em meu rosto; sua brisa a me inspirar; sua grandiosidade para me encorajar a cometer exageros. Não tenho sua familiaridade que me tornou bailarina a rodopiar no meio da poeira alta. Um instante em que eu, inocentemente obstinada, o seguia de olhos fechados e lábios esticados num sorriso enternecido... Teria ido com ele até as nuvens mais altas e lá, deixaria que consumisse toda a minha carne.

Éolo deve ser o tipo de acompanhante que se permite apenas um encontro; um sedutor que me fez rastejar, dominada pelo aroma de sua hipnose inelutável. Depois me levou aonde quis, apenas para ver até quando eu aguentaria sua envolvência; se cruzaríamos os mares; se desbravaríamos novos mundos; se intrometeríamos nas curvaturas longínquas da Terra.

Onde foi que se meteste meu peregrino malévolo?

Temia que a manhã continuasse enraizada. Mas eis que volto a ouvir a manifestação de um sussurro que não sei se provém de uma realidade escapadiça, ou se é fruto de minha irrefreável imaginação... Já não sei identificar o que é confiável em meu julgamento.

O brado é suave, porém autoritário... Sem saudar-me exigiu explicação.

Sua imposição despótica me causou arrepio. Automaticamente meu ser se converteu num instrumento destinado à obediência covarde. Agora eu só quero concordar, torcer pelo argumento semelhante, mas se não for possível, assentirei de bom grado, afinal, não possuo audácia para defrontar a ira daquele que detém os meus impulsos... Talvez após sua rispidez ele me tome de novo em seus braços.

Mas ignorando completamente minha submissão, o sopro se ergueu opressor. Encheu-se de arrogância e narrou; acusou-me de ter feito tudo errado; que sou uma mulher burra e não deveria seguir aquilo que não entendo... Éolo rodopiou colérico, parecia arrependido de ter me mostrado sua travessia de possibilidades; condenou-me de ter negado o precioso vislumbre que me propôs; disse que eu deixei evidente minha cegueira patológica...

Sentada no tronco velho, eu me vejo no núcleo de um redemoinho cinzento, cheio de folhas e gravetos. Quero dizer algo em minha defesa, mas Éolo está possesso demais... Sei que ele não me escutará.

Por que me seguiste?” – escuto sua indagação arrastada e cheia de eco – “Se tudo o que fizeste foi apenas copiar o meu rastro... Por que eu permitiria tal insolência, se era apenas para ficar a rodopiar pelo ar, como uma pena desprezível que foi expelida da plumagem? Por que não soltaste de minhas amarras e planasse com tua própria coragem, almejando o mundo por outra perspectiva? Por que quiseste juntar-se a mim, se sabia que eu não desviaria de meu caminho ante nenhuma vontade alheia? Achavas mesmo que eu iria evitar minha triunfante trajetória, apenas para poupar teu lar insignificante? Achas que tua vivenda é mais digna do que um formigueiro?”.

Meus cabelos esvoaçando... O que estás dizendo, querido Éolo?

Não o fizeste porque és uma covarde!” – condenou ele, ainda me tendo em seu centro –  “Nasceste presa à um cordão e nele estás arraigada até os dias de hoje. Queres o mundo, mas apenas se for entregues a ti numa bandeja, cozido e cortado em fatias. Foste tão desprezível, que em vez de olhar para a virtude de minha transformação, preferiu a tola busca por minha presença. O que querias encontrar? Meu rosto? Sua tola humana... Saibas que não constituo nenhuma das tuas quimeras; não existo para seu deleite; e em vez de querer o que não podes verificar, por que não aprendes com a ininterrupta manutenção da vida?”.

Tua existência medíocre é a tua máxima!”.

Tua covardia é pesada demais para insinuar-se na gravidade. Como poderá me seguir se és incapaz de arrancar teus próprios escombros e voar? Como poderá ser forte para jornadas longínquas, se com facilidade deixas que atravessem a tua carne? Como poderás alegrar-te se desconhece o valor do risco suave que faço em tua epiderme com meu sopro invisível? Pois saibas que quem semeia vento, colhe tempestade...”.

Então, um repentino silêncio engoliu aquela voz... Éolo se foi;

Expeliu-se no ar, transformando o redemoinho num enorme e infinito nada;

As folhas secas caindo no chão ao meu redor;

A poeira se assentando lentamente sobre as páginas de Fernando Pessoa;

O firmamento voltou a serenidade reluzente do Sol;

E onde antes havia alicerces de minha morada, restaram apenas destroços coloridos;

Eram como confetes emergentes do caos;

Perguntei por minha mãe e meus irmãos. Mas Éolo se fora em definitivo...

Talvez os tenha levado consigo, para perto das nuvens.

sábado, 5 de setembro de 2015

RESENHA DE LIVRO – FACE @ FACE


Estava demorando a que meu recente faro aguçado literário finalmente falhasse. Sim, pois este ano tive uma mão ditosa nas livrarias e praticamente só encontrei livros que mantiveram uma média variando entre bom e ótimo. Pois eis aqui a queda drástica desta realidade.

Face @ Face não possui praticamente nada que possa servir de estímulo à sua leitura. É um livro de roteiro simplista, de situações previsíveis, diálogos ruins, personagens insossos, uma narrativa fadigosa e que não funciona em momento algum, nem como suspense e nem como ação policial.
Que me perdoem aqueles que curtiram a obra.

Sempre levo comigo o ideal motivador de que todo livro vale ao menos pela leitura. Mas sinceramente, este volume poderia até se encaixar neste viés, caso sua história nos fosse contada em no máximo 120 páginas. Contudo, o que você terá pela frente, estimado leitor, é um interminável conto, munido de longínquas 330 páginas. E acredite: Lá pela página 50 já era forte a ânsia por abandonar a leitura. Mas tentei acreditar que o autor Phillip Finch, fosse dar uma extraordinária reviravolta em sua tediosa trama, transformando-a em algo que pudesse ao menos entreter. E quando entrava na reta final, eu, já desacreditado, comecei a torcer pela competência do assassino, simplesmente para que ele matasse logo aquele bando de chatos que infestavam a trama. Então, finalmente lendo o capítulo final, completamente frustrado, eu desejei por ser presenteado com pelo menos um desfecho que fosse minimamente inovador...

Doce ilusão.

A trama conta a história de um serial killer que escolhe suas vítimas por meio de redes sociais, e usa todo o seu conhecimento de informática para abranger seu arsenal maléfico e selecionar seus alvos. E assim que ele compõe seu mosaico macabro, vai ao encontro dos escolhidos e os mata, fazendo uso de sua criatividade tosca.

Visto de fora, o enredo até poderia ter amplitude para montar boas situações assustadoras ou recheadas de adrenalina. Mas quase nada acontece em momento algum. O assassino é apagado, suas vítimas são estúpidas, e ninguém ao longo de toda a trama consegue reluzir, nem ao menos para ajudar o pobre leitor a atravessar algum capítulo sem bocejar.

Talvez a única pegada relativamente bacana é que este trabalho, que foi lançado em 1997, nos trouxe um vislumbre de um tempo no qual a tecnologia da informática ainda engatinhava. Então temos a oportunidade de nos deparar com algumas situações que nos causam nostalgia, como internet de conexão discada, arquivos de imagem carregados lentamente como se fosse uma cortina se abrindo, redes de relacionamento desprovidas de itens básicos como fotos de perfil, e a óbvia ausência de aparelhos móveis como celulares e tablets, tão comuns nos dias atuais. Mas mesmo toda essa naftalinidade não funciona, porque o autor exagera na dose, se concentrando demasiadamente em conteúdos técnicos, deixando de lado seus personagens e a trama; um bando de gente inserida no texto para virar presa de um matador medíocre, que é menos assustador que o Puro Osso; jocoso vilão do simpático anime As Terríveis Aventuras de Billy e Mandy.

Sinceramente não sinto nenhum prazer em avacalhar o trabalho literário de ninguém. E aqui deixo apenas a opinião de um amante de leitura, que sabe reconhecer o quanto é leigo na hora de expressar o que pensa. Mas este Face @ Face simplesmente não agradou em nada; e talvez eu o tenha como um dos piores livros que li nos últimos anos.