Sentado à mesa de uma lanchonete perto de casa, eu vejo minha
visão abrangente do movimento frívolo de uma tarde de sábado, ser bruscamente
bloqueada pela repentina presença de um FIAT
branco, de aparência relativamente
conservada.
O motorista abriu a porta e saiu de sua caixa de metal
ambulante, altivo, como se fosse um genuíno membro da nobreza do século XVIII
que acaba de descer de seu coche. Constatei certa semelhança nos traços de seu
rosto quando, ao passar por mim, fez um leve aceno digno da realeza. Foi em
direção ao balcão do bar e pediu uma Coca-Cola.
Após efetuar o devido pagamento – que ele deve ter achado um insulto a ideia de
que um verdadeiro lorde precise pagar por sua bebida – ele voltou para a
fachada do estabelecimento, onde eu me encontrava visivelmente abrandecido,
pois em instantes, eu me veria livre daquela parede de lata intrometida em
minha frente.
Mas para a infelicidade total deste narrador, o orgulhoso
proprietário do FIAT branco resolveu
apreciar sua Coca-Cola, sentado
precisamente em uma mesa ao meu lado, enquanto admirava com orgulho o seu
artefato de locomoção, que logo imaginei, devia lhe conferir certo ganho de
autoestima.
Comecei um embate interior com meu próprio ser, que pesava os
prós e os contras de continuar ali, sentado, tendo como única possibilidade de
contemplação a lataria branca e ordinária daquele veículo, estacionado
indevidamente – ou quem sabe propositalmente – para o meu minguado deleite.
Se eu fosse embora, estaria livre do FIAT branco em toda sua
intromissão, e só isso já valeria à pena o esforço. Poderia levar umas cervejas
pra casa e, no conforto do lar, eu ainda teria o privilégio de poder escolher
uma boa música. No entanto, eu me veria outra vez confinado, acuado, escondido
dos inevitáveis e inéditos encontros com o mundo do lado de fora do meu portão.
Que embora sejam frustrantes em sua maioria, exatamente como havia sido o encontro
inesperado com o FIAT branco, algumas vezes nos faz escapar do
tédio. Também é válido salientar que a cerveja estupidamente gelada colaborava
com minha impossibilidade de fuga. E a cada novo gole que eu dava, mais o meu
corpo parecia acometer-se por uma redoma de neve, a me abrigar do incessante
calor.
Com o termômetro intuitivo batendo na extremidade do “seja forte e fique no bar mais um pouco, que
o malquisto já deve estar de saída”, uma fagulha de otimismo mental fez seu
trabalho de recordar à cerca da ideia de que a vida algumas vezes nos
surpreende com encontros alegradores... Contudo, eu admito que insistir na
espera destes raros embates prazerosos é ato de gente obstinada e insistente
além do que jamais conseguirei ser. E no meu caso, o resultado desse tipo de
pensamento acaba surtindo efeito contrário de sua pretensão, e eu acabo sustentando
o bordão de que nada é tão ruim que não possa piorar.
Olhei para o lado e vi que o dono do detestável veículo
estava a me devolver o fitar, agora com um sorriso largo e ufano.
Não tardou a puxar conversa comigo, afinal, não havia mais
ninguém por perto para ele importunar. Minha insignificante presença deve ter
lhe servido de consolo, porque quando se há apenas uma única opção, o carecido
se torna menos exigente.
Como de praxe, iniciou suas tolices verbais nos atentando
para o tempo. Afinal, era uma tarde de calor evidente demais para ser
desprezada por uma forçosa conversa de bar.
Quanto a mim, apenas lhe dava respostas em total conformidade
com suas abordagens esquecíveis, tentando dispor do máximo que minha já abalada
paciência permitia. Pois eis que em meio aos comentários sobre o calor
escaldante, o sujeito resolve conduzir nossa enfadonha prosa ao rumo de seu
auspício:
– Sabe de uma coisa: deve fazer até mal sair nesse calor
assim, depois de se estar dentro do ar frio do meu carro.
Tem toda razão! Por que você não volta pra lá e se protege de
uma possível insolação, e ao mesmo tempo, evita que meus ouvidos sejam
bombardeados por seus atentados orais? – por muito pouco e eu teria lhe dado
esta resposta, mas minha polidez irritante acaba sempre por me vencer. E no
lugar de repelir o indesejável, eu apenas concordei com suas imbecilidades.
– É verdade... – respondi, em suspiros profundos, já pensando
em tirar o celular do bolso e fingir atender alguma ligação.
– Comprei esse carro esta semana, sabe... – insistiu ele, com
o peito estufado, feito um pombo, talvez esperando de mim, algum reconhecimento
por sua obtenção material – Achei que nestes tempos de crise seria melhor pagar
à vista. Nunca se sabe, né?
– Pois é... – Eu era um oceano de concordâncias. Mas então,
fui acometido por um sentimento típico dos derrotados: se não dá pra expurgar o
calo, melhor tentar continuar caminhando com ele no pé. Resolvi elaborar uma
piada, fazendo uso de uma frase que havia no para-brisa traseiro do FIAT branco.
– Você comprou mesmo esse carro, ou foi Deus quem lhe deu?
Ele soltou um risinho que me fez lembrar uma hiena abatendo a
carniça. Exibiu uma comissão de frente dentária tão amarela quanto a camisa da
Seleção Brasileira. Olhou para a frase no vidro e pareceu ter gostado da
sugestão que joguei pra ele.
– Claro, claro. Você está certo... Foi mesmo Deus quem me deu
– assentiu ele, do alto de sua religiosidade apalermada.
– Então você acha que Deus lhe concedeu um automóvel como
forma de benção? – fiquei a me perguntar como eram as bênçãos antes da invenção
da roda ou do motor.
– Com certeza! Deus tem provido maravilhas em minha vida!
– Muito bem... – Pela primeira vez, virei-me pra ele,
fingindo estar interessado – Nesse caso, deixe-me ver se compreendi direito
essa história: você está me dizendo que Deus lhe conferiu um bem material que
indiretamente contribui com a devastação dos recursos naturais, que estão cada
vez mais escassos? – deixei que ele pensasse alguns segundos sobre a pergunta –
Isso significa que o seu Deus é totalmente conivente com o aumento da emissão
de CO2 na atmosfera, o que tem sido causa deste catastrófico calor que estamos
enfrentando neste exato momento? – notei que ele se remexia na cadeira,
visivelmente desconfortável com tais indagações – Seu Deus lhe abençoou com o
objeto que melhor simboliza o sistema capitalista vigente, maior causador do
distanciamento entre classes sociais neste mundo materialista? – outra pequena
pausa para ele respirar – O seu altíssimo lhe conferiu um bem que certamente
está lhe proporcionando status social, algo que visivelmente lhe atiça a soberba,
o que aumentará a distância entre você e esse mesmo criador... É isso que está
me dizendo?
Eu não havia me dado conta, mas o FIAT branco deveria estar me incomodado mais do que havia imaginado,
pois fui capaz de proferir aquele questionário sem ao menos gaguejar... E como
eu já esperava, não houve nenhuma resposta imediata, além de uma parcimoniosa
exclamação bovina:
– Hmmmm...
Embora minhas indagações sustentassem requintes de
crueldades, eu não tinha a intenção de me parecer com um ateu fundamentalista
que tenta humilhar a doutrina dos outros... De fato, o meu verdadeiro objetivo
era cessar com o explícito envaidecimento orquestrado por aquele idiota, que
então resolveu que havia se tornado alguém acima dos demais com quem ele
convive neste mundinho de perdedores, e agora era digno de ostentar suas desprezíveis
aquisições materiais.
E para brindar a espiritualidade daquela gloriosa tarde de
calor, ele não me deixou sem resposta, embora tenha sido um tanto evasivo:
– Vou lhe contar uma coisa sobre o nosso pai que está no céu...
– antes, foi até a lixeira, na base do balcão, e jogou a lata vazia fora.
Então, retornou para concluir sua majestosa teoria – Deus é um ser justo,
misericordioso e que nos recompensa na hora certa. O pai sempre é generoso com
seus filhos mais fiéis.
Ele tentou validar sua teoria, lançando-me um olhar
intimista.
– Mas se ele quiser dar um carro para cada um de seus cerca
de seis bilhões de filhos, atuais viventes deste plano, eu acho que não vai ter
recursos naturais no planeta para atender a toda essa demanda – achei essa bem
fácil de replicar.
– Eu sei. Mas Deus atende somente aos justos, os que foram
bons e seguem fielmente a sua palavra.
– O que nos leva à conclusão de que você deva ser parte desse
seleto grupo de filhos prendados que está fazendo exatamente as coisas certas,
não é mesmo?
– É claro... Faço minhas orações todos os dias.
– E podemos também concluir que um desnaturado, feito eu,
deva estar agindo exatamente em oposição aos ditames divinos... Afinal, eu
ainda não fui agraciado com um FIAT branco.
– Pode ser que sim... – ele já estava dentro do carro, porta
fechada, mas o vidro abaixado para cuspir uma última pergunta, que certamente me
derrotaria – Você é um homem religioso?
– Sabe o que eu acho sobre Deus? – ignorei sua pergunta
aliciante, para aproveitar aqueles últimos momentos em sua impoluta presença e
concluir rápido o meu raciocínio – Eu acho que Deus é uma criança com uma
fazenda de formigas. Ele nunca toma nenhum partido. Fica apenas observando, talvez
um tanto entediado, o que nós, suas adoráveis formiguinhas, fazemos dentro de
sua fazendinha de bobagens... Quem sabe até se permitindo rir de algumas
formigas que se acham merecedoras de recompensas tolas, tomadas por elas como
coisas divinas.
Ele ligou o FIAT branco e foi embora. Mas não sem antes concluir
que iria orar para que minha alma perdida encontrasse o caminho da salvação.
Fiquei sentado em minha mesa, agora completamente detentora
de uma visão privilegiada do nada que acontecia no mundo ao redor, imaginando
onde estaria indo aquele sujeito cheio de verdades... Será mesmo que ele
acreditava que uma divindade havia lhe dado um objeto que só serve para exprimir
alguma necessidade mundana? Ou talvez ele usasse o nome de Deus para camuflar
sua vaidade em afirmar aos quatro cantos que não possui capacidades de obtenção
sem o apoio divino?
É difícil saber...
E eu é que não vou me meter no discernimento alheio. Melhor
pensar em coisas menos transcendentais, como a cerveja que eu estava a degustar
e que se encontrava mesmo deliciosamente gelada. E se é errado dizer que minha
bebida seja resultado de meus esforços pela sobrevivência neste mundo
pragmático, então tudo bem... Eu agradeço a Deus, sem nenhum problema, pela
cerveja gelada que ele pôs em minha mesa... Afinal, como dizia Nietzsche:
“A verdade
é um produto da necessidade psicológica de duração”.