sábado, 27 de fevereiro de 2016

RESENHA DE LIVRO – GUERRAS ESTÚPIDAS


Ao ler o título inusitado deste livro, a primeira coisa que pensei foi na obviedade de sua afirmação. Á meu ver, toda e qualquer guerra declarada, talvez com raríssimas exceções, já é por si um ato estúpido.

E mesmo que você seja amante do pacifismo como eu, e esteja plenamente de acordo com a ideia de que toda violência, não importa a forma de sua manifestação, é uma estupidez descabida, este livro merece sua atenção, pois se trata de uma espécie de catálogo contendo as maiores imbecilidades humanas, que só poderiam resultar em mortes, destruições e perdas. E não apenas pelo triste fato de que numa guerra não há vencedores, mas também porque as razões que desencadearam os conflitos aqui reunidos são simplesmente bestiais e incompreensíveis. É um livro que traz à tona a realidade jamais revelada pela didática escolar de história: a ignorância humana e seus resultados catastróficos.

Desde os tempos das infundadas cruzadas, passando por Hitler e sua corja de egocêntricos, até chegarmos à famigerada guerra fria, a história retratada aqui possui uma ótica distinta, na qual o foco de reflexão aponta para os arquitetos dos grandes conflitos e os motivos que desencadearam os confrontos por eles arquitetados; quase todos forjados por ideias soberbas, conceitos banais e decisões irrisórias...

Os autores procuraram fugir dos conceitos tacanhos que geralmente permeiam os livros de história, quase sempre escritos para exaltar os “heróis” vencedores dos conflitos ou simplesmente para denotar que houve em determinado tempo uma guerra entre fulano contra ciclano. Sendo assim, Ed Strosser e Michael Prince, montaram um guia que reconstrói a história das guerras, golpes e revoluções, a partir de uma visão imparcial. E o resultado não poderia ser mais óbvio: praticamente todos os conflitos mundanos não passam de deliberações idiotas que só resultaram em perdas humanas.

Estes minuciosos autores, além de relatar os grandes centros do mundo, também não se esqueceram deste cantinho latino do planeta. A obra se envereda pela América do Sul, onde descobriremos o que parece ser o lado mais esdrúxulo dos conflitos armados. E é nesta canja de imbecilidade coletiva, que finalmente encontramos o nosso querido Brasil, que também teve sua dose de estupidez, ao participar, entre outros conflitos não citados, da Guerra da Tríplice Coroa.

Um aspecto que me incomodou um pouco durante a leitura, foi o leve teor cômico que os autores optaram em usar na condução textual da obra. Achei que a tentativa de fazer com que as situações narradas se tornassem hilárias não deu muito certo. No entanto, este resultado falho pode ter sido oriundo de uma tradução pouco eficiente. Mas mesmo este pequeno problema não chega a incomodar muito.

O livro possui um eficiente grau de detalhes históricos, aprofunda onde pouco se falou em outros livros, e é assertivo quanto a ideia de retratar o lado mais imbecil dos homens: fazer guerras para solucionar questões que poderiam facilmente ser resolvidas de maneira menos dolorosa. Afinal, se guerras fossem a resposta para o bem comum da humanidade, certamente nós já teríamos erradicado a dor e o sofrimento deste mundo conflituoso.

É leitura indispensável, pois talvez se aprendermos a nos tornar conhecedores de nossa ignorância, poderemos ser menos estúpidos ao tomarmos decisões.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

CRÔNICA: INEVITÁVEL EVOLUÇÃO


Em meio a uma desordenada multidão de corpos andantes, eu tentava encontrar o portão de embarque do meu voo, quando de repente, sou abordado por uma voz metálica, cujas doses de estáticas se assemelhavam a brinquedos eletrônicos que me faziam delirar na infância. Bem no meio do salão principal do Aeroporto Santos Dumont, eu me assustei perante inusitada recepção, feita por uma máquina ambulante de mais ou menos um metro e meio de altura. Era sorridente e, para meu completo desespero, totalmente solícita.

Inteiramente intimidado por aquela coisa – que imaginei se tratar de um totem de atendimento que conseguiu escapar de sua tomada e saiu perambulando pelo salão do aeroporto, como se entidades sobrenaturais o tivessem possuído – eu cambaleei tentando desviar de seu caminho. E num gesto tipicamente humano, minha covarde massa corpórea conseguiu fugir de sua investida, afinal, modernidades tecnológicas frequentemente me assustam... Sem cessar os passos, eu olhei para trás e dei uma receosa olhadela para o objeto solícito, que embora não viera em meu encalço, continuava a me saudar com seu sorriso largo em cores, provindo de uma tela onde se lia: “Posso Ajudar?”.

Se no lugar daquela máquina houvesse um ser humano desempenhando sua tarefa de abordagem, amparado por uma carteira de trabalho e benefícios previdenciários, certamente ele já teria ido se queixar junto ao departamento de RH à cerca da forte rejeição que seu trabalho lhe proporciona. Talvez até fosse submetido a intensas sessões de terapia para conseguir se livrar dos constantes traumas sofridos em sua ingrata profissão.

Mas não era uma pessoa... Era um robô! E alguns minutos depois, já sob a improvável segurança dos bancos de espera no meu portão de embarque, eu pude conferir com mais atenção o que, de fato, fazia aquele frigobar sorridente.

Era um simpático robozinho a passear de um lado para o outro, abordando as pessoas e oferecendo sua tela em forma de rosto, onde um discreto menu exibia uma série de auxílios aos passageiros, e dessa forma, aliviar dos ombros humanos o tedioso fardo de correr pelas necessidades alheias dos muitos passageiros que por ali transitavam.

Cheguei a pensar que não teria sido ruim se ele se encarregasse de levar minhas malas, mas logo suspeitei de que as tarefas que o intrépido androide oferecia eram escassas demais para dar conta da bagagem dos preguiçosos. Limitava-se a consultas em sua alegre tela facial dos horários dos próximos voos, um mapa instrutivo para localização dos serviços no interior do recinto, informações sobre transportes coletivos, previsão do tempo e esclarecimentos sobre o funcionamento do aeroporto.

No entanto, mesmo carente de sofisticados recursos, aquele fliperama com rodas, passeando no meio do salão do aeroporto, fez com que eu me sentisse inserido numa realidade insólita de ficção científica, bem ao estilo Isaac Asimov.

Se um singelo robozinho que carrega uma tela quase inexpressiva, abordando pessoas sem a necessidade de uma supervisão humana, me causou estupefação, o que dizer então do fabuloso Eugene? A primeira máquina na história da inteligência artificial a passar no teste de Turing...

O computador batizado de Eugene foi criado pelos programadores Vladimir Veselov, Eugene Demchenko e Sergey Ulasen. O teste de Turing é constituído por um júri preparado para testar as habilidades da inteligência artificial. Eugene deveria imitar um adolescente com tal perfeição que os juízes não pudessem perceber que estavam falando com uma máquina. E o próspero Eugene conseguiu convencer nada menos que 33% dos jurados.

O teste de Turing visa estabelecer um critério que determine o que ou quem pode ser considerado um ser pensante. Basicamente este teste considerava que a característica distintiva dos seres humanos é a linguagem, e por isso, o teste sempre se baseou em critérios linguísticos.

Eugene foi capaz de enganar um terço dos jurados de Turing. E embora este seja um número considerado insuficiente por alguns pesquisadores, este nos prova que estamos no inevitável caminho de uma realidade não muito distante. Um futuro no qual algumas vezes o cinema nos faz ter algum vislumbre, com lágrimas nos olhos. E embora meu inusitado encontro com aquela geladeira sorridente tivesse sido menos emocionante do que alguns personagens da telona, eu pude ter um vislumbre da inevitável evolução... Falo de um futuro não muito distante, que foi belamente retratado num filme de 2013, o qual eu assisti recentemente, intitulado “Ela” (Her – de Spike Jonze).

A trama desta fabulosa comédia dramática gira em torno de Theodore, que inusitadamente acaba se apaixonando por seu novo sistema operacional de alta tecnologia – talvez uma espécie de versão definitiva de Eugene – Um sistema capaz de compreender o universo à sua volta e se comunicar com seu dono, usando todo um arsenal de anseios, desejos, cacoetes e até mesmo a fragilidade sentimental de um verdadeiro humano.

Confesso que conforme o filme avançava, eu também me vi algumas vezes apaixonado pela doce voz que rouba o coração do personagem vivido pelo ator Joaquin Phoenix. Um trabalho que trás a tona, mesmo que de maneira um pouco contraditória, a complexidade na relação entre homem e inteligência artificial.

Certamente as mentes por trás da indústria desenvolvedora de tecnologia inteligente já notaram o quanto irão encher ainda mais os seus cofres, caso coloquem suas mãos em tamanho avanço tecnocientífico, como mostrado neste belo filme. Porém, este futuro, temivelmente não muito distante, talvez precise ser analisado com um pouco mais de cautela.

Se as consequências dessa realidade vindoura já podem ser sentidas nos dias atuais, o que dizer em algumas décadas, quando de fato, eu tiver as minhas malas gentilmente carregadas por um simpático androide, que me recepcionará com um cumprimento de mãos caloroso e cordialidade fluente?

Se os nossos atuais celulares e smartphones já são sedutores o suficiente para fazer com que os andantes das grandes cidades percam total atenção à urbanização existente ao seu redor; aparelhinhos que fazem com que nos comportemos feito altistas tecnológicos que caminham com suas cabeças baixas, fixadas numa telinha que cabe na palma da mão, o que dizer do tempo em que poderemos ter diálogos complexos e profundos, com objetos artificiais que imitam o real no seu comportamento, capazes de nos aproximar do tato com um humanismo jamais alcançado em anos de entrosamento com outros seres humanos? Exatamente como nos provoca o filme citado acima.

O pobre Theodore teve sua carência e solidão amainada por uma placa de circuitos. E além de não o condenar, eu sou capaz de confessar que também poderia me ver vitimado pelo mesmo mal, frente à tamanha sedução de uma voz que, mesmo oriunda de um sistema operacional, seu encanto nos leva à cegueira da sanidade... Ou será que o filme nos faz o retrato de um futuro improvável?

Á meu ver, tem sido cada vez mais difícil duvidar da evolução tecnológica.

Imaginem os consultórios terapêuticos do futuro, lotados de gente em busca de ajuda para superar aquele relacionamento que terminou de forma trágica com um sistema operacional. “Leve-o na loja de informática do Zé, e mande trocar a placa mãe por outra que seja mais próxima do seu temperamento apegado”, dirá o terapeuta, que, aliás, será um circunspecto robô, de feições imparciais e usando jaleco branco.

Tomemos outro exemplo cinematográfico que gosto muito de trazer à tona para pensarmos sobre o que estamos fazendo de nós mesmo, ou melhor, o que a tecnologia está fazendo conosco: o filme de 2008 Wall-e (Wall-e – de Andrew Stanton) nos mostra uma sociedade que passou a viver em colônias espaciais por conta da elevada destruição da Terra. Mas o ponto que quero atentar é quanto ao padrão desta sociedade; pessoas obesas que se locomovem por meio de cadeiras flutuantes, onde uma grande tela fixada bem próxima à face humana atrai 100% da atenção do cadeirante. Neste mundo imaginário da ficção – ou seria visionário? – O ser humano se tornou definitivamente um escravo tecnológico, incapaz de se relacionar com coisas triviais, como vislumbrar os detalhes do lugar em que vive (isso nos é mostrado numa rápida cena em que um humano cai de sua cadeira voadora e, pela primeira vez, se vê encantado com a grandeza ao seu redor, a qual ele jamais havia reparado).

Notou certa familiaridade com nosso mundo atual, caro leitor? Se sua resposta for não, basta olhar com mais atenção para os ambientes sociais: transporte coletivo, bares noturnos, escolas, e certamente você irá se deparar com uma sociedade literalmente adormecida por uma telinha que cabe na palma da mão. No entanto, se você é incapaz de notar isso, talvez seja tarde e você já esteja devidamente inserido nesta sociedade altista, que bestialmente fora dominada pela tecnologia.

Outro dia, eu perguntei a uma moça que subia as escadas do prédio onde trabalho, como ela conseguia subir degraus e digitar no celular ao mesmo tempo. Por breves dois segundos, ela desviou a atenção da tela para me dizer que já estava acostumada.

Pois é... Estamos nos acostumando à domesticação social; a vivermos feito escravos pós-modernos. E o que é pior: a obviedade deste nosso umbroso presente parece ter desabado sobre nossas cabeças.

Talvez o grande problema não seja a chegada dessa tecnologia assustadoramente sedutora, mas sim, a nossa própria alienação. Porque não sei ao certo se sou antiquado demais para este mundo moderno, ou se tem sido cada vez mais comum me deparar com mesas de bar lotadas de pessoas interagindo umas com as outras pelo celular; seres reais que estão perdendo o interesse no mundo físico que lhes rodeiam, para continuar vivendo dentro de uma rede social editável, onde podemos nos vestir de deuses majestosos, felizes e belos, camuflando assim a nossa realidade ordinária e menos atraente.

Estamos enfim, diante de uma assustadora evolução? Pode ser que sim, mas talvez, ela não seja tão desastrosa como nos mostra o imaginário cinematográfico. Contudo, o grande aprendizado que infelizmente ainda nos escapa, é a eficiência de dominarmos as nossas admiráveis máquinas, antes que sejamos dominados por elas... Mas será que ainda há tempo?

Parece que nosso atual encantamento diante dos recursos tecnológicos tem deixado bem claro que já é tarde demais para a humanidade, emburrecida por sua própria criação... Mas agora chega dessa conversa de evolução tecnológica, porque já passou da hora de eu dar uma checada em meu estimulante e irresistível perfil online.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

CONTO: DESPREZÍVEIS MIGALHAS


Eu compreendo todo o meu medo de seguir em frente, porque sei que acabará chegando um momento em que não poderei mais parar. Também temo pela ideia de parar, justamente porque seguir em frente é o que me livra da aflição.

Conceitos contraditórios...

Sempre achei bacana a ideia de poder voltar. O regresso pressupõe humildade e não é sempre que dispendemos desse atributo. Mas talvez por pura covardia de meu ser, eu nunca consegui voltar... No entanto, eu acho que nunca voltei nessa vida, porque de fato, eu nunca fui.

Os arrependimentos estão sempre ao meu lado. Sentam-se comigo no banco da praça e esperam, pacientemente, por alguma solução, respostas... Muitas vezes esta dor toma emprestado um avatar, então ela adquire forma e sua aparência se torna ainda mais angustiante. Nesta tarde cinzenta e onerosa, a dor está vestida de menino. Têm seis anos de idade, a pele branca como a areia que cerca o nosso banco, os cabelos lisos cortados bem curtos, bochechas avermelhadas de ternura, os olhos amendoados que ele coça constantemente, talvez por conta da poeira sem gravidade a respingar em nossa face. Ou pode ser apenas um tique nervoso que antecipa os acontecimentos que estão por vir.

O menino não da muita importância para a minha presença ao seu lado. Prefere observar os pombos, que perambulam sob nossos pés. Um deles estaciona bem em nossa frente. Seu pescoço hiperativo pende de um lado para o outro, questionando-nos à cerca de onde estão as migalhas.

Eu as jogo para ele, que degusta avidamente, usando a ponta do bico para destilar seus modos formais de ave submissa. Passado alguns minutos, eu me dou conta de que não posso estar jogando migalhas, simplesmente porque eu não tenho nenhuma em que esteja pronta a me desfazer... O pobre pombo também não demora a compreender que seu bico só encontra aquilo que eu não joguei.

A realidade é uma brincadeira sarcástica e cruel.

Sei que sou um ser constituído de sobras e farrapos, mas não tenho nem mesmo isso a oferecer. Ou talvez minhas migalhas sejam tão desprezíveis que não sirvam nem mesmo para saciar a fome de um pequeno pombo.

O garotinho se cansa da ave faminta e finalmente olha para mim. Talvez me reprovando por eu não ter feito nada pela fome do pobre animal alado. Condena-me por deixar que a pomba vá à procura de outros bancos onde outros seres talvez tenham migalhas degustáveis.

As minhas são amargas demais para servir de alimento.

– Vamos pra casa agora? – o menino quer saber.

Eu balanço a cabeça negando. Evito o brilho de expectativa em seus olhos.

Desvio o olhar rápido para não ver a dor. Eu sei o que o termo “casa” quer dizer para aquela pequena vida; sei o significado de sua pergunta aflitiva; sei também que a mochila pendurada em suas costas pode responder melhor do que eu àquela pergunta.

Mas inevitavelmente sou traída pelo meu silêncio. Ele é a transparência que eu tento evitar...
Um homem idoso se aproxima de nós. Ele arrasta com certa dificuldade um carrinho pela alça, mas acho que de certa maneira, é o carrinho que o puxa pelas mãos.

– Você quer um picolé? – Pergunto ao menino, quando o velho claudicante para em nossa frente e sugere que a tarde é quente e propícia a uma iguaria gelada.

Dessa vez é o garoto quem balança a cabeça negando. Outra vez eu não me atrevo a olhá-lo por completo. Mas meio de canto, eu vejo que ele está emburrado.

Quer voltar pra casa, eu entendo. Mas como posso levá-lo para um lugar que eu não sei onde fica? Pelo menos nunca encontrei no mundo um lugar onde me sentisse abrigada; um lugar em que eu pudesse chamar de lar.

O velho também se afasta carrancudo. Para ele deve ser inaceitável o fato de que um moleque de seis anos acabara de recusar um de seus deliciosos picolés... No fim das contas, parece que todos nós queremos alguma coisa.

A pomba quer migalhas;
O garotinho quer ir pra casa;
O velho quer que as pessoas consumam;
E eu quero que tudo termine logo...

Foi aqui, neste mesmo banco de praça, de assento desconfortável, áspero e rachado pelo tempo, que fui confrontada por uma das questões mais difíceis que alguém já me fez na vida:

– Por que você sempre se senta neste banco? – Perguntou Lucinda, uma amiga dos tempos de escola. Naquele dia, ela parecia distraída, como se não direcionasse sua questão a mim.

– O que? – eu tentei ganhar tempo. Dizem que responder com outra pergunta denota que não temos resposta e, por isso, tentamos delongar. E eu costumo fazer isso quando sou questionada à cerca de algo sobre mim que nunca parei para refletir – Como assim?

– Ué, sempre que vem nesta praça, você se senta aqui.

– Isso não é verdade – Respondi categórica. O que Lucinda queria dizer com aquilo? Que eu era previsível? Neurótica? Que eu era incapaz de sair da minha regrada rotina?

– Bom, eu sempre vejo você sentada aqui – reforçou ela, convicta.

– É porque eu gosto de me sentar neste banco. Mas se ele não estiver disponível, eu me sento noutro, sem nenhum problema.

Ela não quis combater o meu argumento, mas acho que era porque sabia que eu não conseguiria lhe convencer de nada. Permaneceu sentada ao meu lado, observando uma formiga passear pelo seu braço. Perseguia o inseto que dava voltas em seu cotovelo, como se aquilo fosse ato mais coerente do que minha defesa.

– Era aqui que você se sentava pra dar uns pegas no Edgar; e quando ele te deu um pé na bunda, você veio pra cá e ficou chorando... Sempre que saímos da escola a gente se senta aqui.

– Achei que era você quem escolhia este lugar – Tive que mentir, porque aquelas constatações estavam me deixando nervosa. Era claro que eu já havia me sentado noutros bancos!

– Eu apenas te seguia – completou Lucinda, com ar de indiferença – Mas depois de um tempo, passei a fazer isso no automático, porque entendi que você só fica relaxada quando está neste banco...

Fiquei em silêncio, tentando pensar numa única vez em que eu pudesse ter me sentado em outro lugar... Só consegui me Recordar de uma manhã chuvosa na qual eu insisti em me sentar no mesmo local pelo qual sou acusada de fidelidade, mesmo estando ele molhado e escorregadio. Nas raras vezes em que encontrava alguém aqui, eu me sentia desconfortável, ficava rodando pela praça, feito uma tonta, e acabava indo embora. Acho que até as pessoas que ocasionalmente frequentavam a praça já haviam aprendido que este banco me pertencia. Porque tem sido cada vez mais raro encontrar alguém sentado nele.

A maioria das pessoas evita automaticamente aquilo que foi proclamado por alguém...

E a incapacidade de encontrar justificativa para tamanha obviedade me consumiu por toda a vida.
A complexidade em responder certas questões pressupõe a fragilidade da existência. Talvez este banco velho seja, de fato, o único lugar do mundo onde eu consegui me sentir aconchegada, protegida...

Minha armadura particular.

Mas aquela questão me fez pensar, e do alto de meu amedrontamento, eu procurei justificação. E a cada novo pretexto formulado, uma nova rachadura se fazia em meu concreto quebradiço e frágil. Eu era o meu próprio banco de pedra, o qual eu recusava a aceitar sua majestade ordinária e explícita. Inquietantes e suspeitas eram as minhas conclusões, o que dizer então de meus atos medíocres? De como eu me arrumava toda, sob a alegação de que iria sair para curtir a noite. E no lugar de fazer isso, eu vinha pra cá, me sentar no banco; dos instantes de descontrole porque alguém havia derramado alguma coisa gosmenta no assento e eu tive que ir embora, pensando em voltar com água para lavar o meu minguado pedaço de mundo; dos dias em que eu esperava de longe e em pé, até que os intrusos levantassem e fossem embora, para eu finalmente poder me sentar.

Era estranho pensar no quanto aquele pedaço velho de concreto era presente em minha existência. No quanto eu me encontrava obcecada por isso, e o pior, o quanto as pessoas já haviam notado; comentavam pelas minhas costas...

Eu era a maluca do banco da praça. E talvez temendo que eu os enxotasse ninguém se sentava mais aqui.

Lucinda foi a única que tentou me avisar sobre minha paranoia. Devia ser mesmo uma grande amiga, pois mesmo diante da imensa dificuldade em relatar algo constrangedor, ela foi corajosa e tentou fazê-lo. Focou sua atenção numa formiguinha para fazer parecer que aquela abordagem não era nada demais; que era só uma pergunta sem importância.

Mas o banco da praça era a minha teimosia; o meu hábito pecaminoso...

E outra vez eu estou sentada nele, pois somente aqui sou capaz de resolver questões cruciais de minha desprezível existência. Ou pelo menos, porque eu preciso pensar em como dar algum significado à vida de alguém. E já que eu não sei voltar de nenhum lugar por jamais ter ido, acho que tal ideia acabou se tornando um acalento, porque sou alguém que desconhece o caminho do regresso, e isso me impede de dar espaço ao arrependimento.

O casal que eu aguardo surge ao longe. Adentram timidamente na praça e não precisam procurar por mim, pois sabem em qual banco eu estou sentada.

Os passos dos dois se tornam imprecisos conforme se aproximam. A mulher caminha grudada ao homem; está usando saia longa e blusa de manga curta. Apoia-se com as duas mãos no braço do marido, num gesto que denota toda a sua apreensão. Ele está usando calça social e camisa de manga longa; trajes formais demais para um passeio na praça.

– Estamos no horário – disse o homem, mas eu não soube interpretar se aquilo foi uma pergunta ou se ele está só exaltando sua pontualidade. Sorriu para o garotinho ao meu lado e o cumprimentou, fazendo uma tosca vozinha de criança.

– Nós trouxemos o seu dinheiro – disse a mulher, sem fazer cerimônias. Parece cada vez mais desconfortável. Cada segundo ali, perto de mim, faz aumentar a angústia em seu olhar. Ela teme que eu possa desistir.

– Não, eu não quero mais o dinheiro de vocês.

– Como assim você não quer? – indagou o homem – Nós já havíamos combinado tudo... Quer que aumentemos a oferta?

– Esse dinheiro é sujo. Não é certo receber por uma vida...
– Você vai desistir, não vai? – perguntou a mulher, melindrada. As mãos a apertar cada vez mais o braço do marido.
– Não. Eu não vou voltar atrás... Não sei como fazer isso.

Os olhos dela são duas bolas redondas e brilhantes. Parecem bestificados por testemunhar minhas constatações, ao mesmo tempo em que se sentem aliviados por eu ser louca. Um segundo de lucidez e eu estragaria todos os sonhos de maternidade daquela pobre mulher... Sonhos que foram depositados numa realidade que teme a manifestação da salubridade.

Eu devia mesmo me parecer com uma louca desvairada. Mas contraditoriamente, minha loucura se fez necessária para a felicidade daquele casal.

– Se você quiser podemos fazer um depósito – insistiu o homem, certamente convicto de que importâncias monetárias lhe serviriam como uma espécie de garantia; um seguro contra possíveis arrependimentos – Talvez você não esteja à vontade em pegar o dinheiro assim, dessa maneira.

Assim, dessa maneira... Que maneira ele se referia? Escrota? Vulgar? Canalha?

– Se você me oferecer isso mais uma vez, eu pego o garoto e sumo daqui para sempre!

– Desculpa – ele resolve assumir uma postura submissa, chegou até a baixar a cabeça... Mas eu sei que toda essa encenação é só pra me humilhar; pra fazer transparecer o lixo de ser humano que eu sou; que ele jamais seria alguém capaz de fazer o que eu estou fazendo; seu gesto é pra mostrar o quanto ele se considera melhor do que eu – Por favor, me desculpa. Eu só achei que você estivesse desconfort...

– Já terminamos o que viemos fazer aqui! – ignoro seu apelo e ergo a voz, talvez sejam resquícios do orgulho que ainda me resta. Concentro meu foco nos olhos daquela vindoura mãe, para que ela entenda o que está acontecendo.

Corajosamente, ela permanece firme, encarando-me. Parece conseguir ler tudo o que meu silêncio quer lhe dizer. E seus olhos me retornam respostas que me ajudam a concluir com o ato final:

Sei que o que está fazendo não é culpa sua... Pelo menos, não é somente culpa sua. Sei que mulher é sinônimo de dor. Sei que o fardo sempre fica por nossa conta... Deixe-me te ajudar a carregar este fardo. Prometo que darei a ele tudo o que você tentou e não conseguiu, mas sempre o lembrarei de sua enorme coragem”.

O casal foi embora, levando aquela pequena vida no colo. O pai lhe retirou a mochila para aliviar o peso de suas costas, enquanto a mãe o envolvia em seus braços com terna firmeza... Ninguém olhou para trás e isso é um bom final.

Ao meu entendimento, significa que agora eles são uma família que seguirá sempre em frente. Mesmo quando o adiante não lhes parecer tão nítido.

Por que eu sempre me sento aqui neste banco?

Dizem que cada um tem da vida aquilo que merece. Talvez eu não mereça mais do que um banquinho trincado e velho, cuja estrutura desgastada assemelha-se ao meu coração...

Um lugar cimentado, feio e endurecido.