Tudo começa quando o autor, Carlos Heitor Cony, ilustre membro da academia brasileira de
letras, repentinamente recebe um envelope que estava na recepção de um hotel. À
respeito do pequeno embrulho há diversos indícios de que ele fora enviado por
seu pai. O grande problema é que o pai do autor já falecera há dez anos. Começa
aí um livro de memórias, ou como diz o título: de quase memórias, onde Carlos Heitor Cony narra as aventuras
de seu velho genitor, sob o olhar de admiração e respeito, oriundos dele mesmo,
o filho.
A sacada é bem legal, justamente porque ao longo da leitura,
o leitor entende porque de se tratar de um “quase” e não de memórias
categóricas. É que as lembranças do autor misturam-se à mente inventiva do pai,
tornando difícil para ele mesmo, testemunha dos feitos de seu genitor,
distinguir o que era fato da mera ampliação dos ocorridos.
No entanto, não esperem encontrar um livro cheio de estórias fantásticas,
onde a narrativa de um autor que amou incondicionalmente seu pai seja
comprometida por um entusiasmo nostálgico. Não! Neste livro, destila-se o charme
de um conto doce, que não tem a pretensão de identificar o que foi verdade ou puro
esnobismo do herói homenageado.
Ernesto Cony, personagem principal e pai do autor, que foi
jornalista, entre outras ocupações, tem aqui o relato divertido de sua trajetória, ora em formato romancista, e às vezes, numa pegada mais cronista.
De imediato conseguimos sentir a profundidade detalhista do
filho, que tomado por uma imensa estima por seu velho, discorre sobre as
façanhas do pai com tanta eloquência, que nos faz crer que cada instante na
vida daquele homem simples, foi de intensidade profunda. Narrativa que é, acima
de tudo, concebida pelo fruto do amor de um filho.
Carlos Heitor Cony, o filho, se mostra estupefato ao
receber o envelope que teria sido deixado pelo pai. Ele vai para o escritório,
se tranca em sua sala, e começam seus devaneios à cerca das aventuras de seu velho
guerreiro; causos que mesclam emoções e inventividade. Algumas são comoventes,
outras hilárias, mas praticamente todas acentuam o lado obsequioso do filho. Em
nenhum momento conseguimos distinguir onde está a crueza ou as pinceladas
imaginativas do personagem, o pai. O próprio autor explica o título:
“Além da linguagem, os
personagens reais e irreais se misturam, improvavelmente, e, para piorar,
alguns deles com os próprios nomes do registro civil. Uns e outros são
fictícios. Repetindo o anti-herói da história, não existem coincidências, logo,
as semelhanças, por serem coincidências, também não existem”.
A condução literária e o charme do livro começam muito bem e
só vão melhorando. O meio da leitura chega a dar uma leve caída em alguns
capítulos menos brilhantes, mas logo o fôlego é retomado nas partes finais,
terminando de maneira fabulosa (o capitulo dedicado ao roteirista Mario Flores,
o qual é relatado sua dor ao ser sumariamente afastado do jornal por conta da
idade, é de nos levar às lágrimas).
É quase a cereja que se degusta no final do delicioso bolo.
A cumplicidade do narrador, o amor pelo pai, os sentimentos
contraditórios, as dores vividas, a imaginação e otimismo de seu velho... Todas
essas peculiaridades de uma vida compartilhada entre pai e filho resultam nesta
belíssima obra que, acima de tudo, é o relato de amor incondicional.