Certa feita, eu me atrevi a entrar numa dessas lojas que vendem roupas de
grifes. Sabe aqueles estabelecimentos que lhe oferecem aquilo que de melhor
existe no mercado do vestuário; as indumentárias que te fazem ficar
inteiramente em concordância com o sistema social vigente nas grandes metrópoles,
onde o capital simbólico depende unicamente daquilo que você veste.
Raramente me dou ao trabalho de ir além da porta desse tipo de
loja, porque sustento desconfiança de que quase tudo o que
encontrarei, custará valor substancial que vai muito além do meu senso de
realidade financeira. Em outras palavras, considero praticamente tudo o que se
vende numa loja de grife irracionalmente caro e sem muitos fundamentos
que justifiquem aquele valor.
Infelizmente quase sempre tenho razão.
Mas naquela manhã, eu havia visto uma camisa aparentemente
legal na vitrine. E como sou detentor de certa peculiaridade tosca e restrita,
que faz com que dificilmente eu me sinta atraído por uma peça de roupa, adentrei
para olhar de perto aquela singularidade em malha. Os dedos cruzados para que ela
não custasse o valor equivalente a uma Smart
TV de tela plana.
Pois eis que fui prontamente atendido por uma vendedora
sorridente, simpática e muito solícita. Afinal, cortesia é o mínimo que ela
pode despender, porque se depender unicamente dos valores impressos nas etiquetas
será pouco provável que ela consiga bater sua meta de vendas mensal.
De praxe, eu lhe devolvi a amabilidade e, sorrindo
largamente, disse que só queria dar uma olhadinha na referida camisa.
– Não gostou dela? – perguntou a vendedora, após notar a careta
que eu havia feito quando analisei o produto mais de perto.
– Ela é bonita, sabe... Mas tem uma marca enorme bem aqui –
apontei a região onde havia letras robustas e em alto-relevo, explicitando
enormemente o nome da grife, na parte detrás da roupa.
– Eu tenho esse outro modelo – disse a moça, pensando se
tratar de uma questão geográfica. Ela ergueu diante de mim outra camisa, cuja
estampa com a marca agora estava em horizontal, contrário da que eu havia olhado, de
estampagem na vertical.
─ Não é isso, meu anjo... O problema é que eu não gosto de
marcas infestando toda a dimensão de uma peça de roupa. Sinto-me como se
estivesse usando um macacão da Formula 1.
– Ah, sim... Nós temos outras marcas, vem cá que eu te
mostro.
Deduzi que ela não entendera a piada.
– Desculpe, mas você não entendeu. Eu não disse que não gosto
dessa marca. Quis dizer que não gosto de marcas encobrindo todo o tecido de
minhas camisas.
– Mas acontece que se você quiser comprar roupas de boa
qualidade, só encontrará nas grandes marcas do mercado – ela tentava a todo
custo defender o patrimônio em que trabalhava.
– Eu concordo plenamente com você – disse, enquanto devolvia
gentilmente a camisa ao cabide – Aliás, o tecido dessa camisa aqui tem uma
textura maravilhosa.
– Então vamos levar, ora...
– O que me incomoda é o porquê dessa obsessão de uma grife em
fazer questão de expor seu nome largamente nas roupas, como se elas fossem um outdoor.
– Ah, mas você deve saber muito bem que uma camisa com essa
marca lhe proporcionará muita presença em qualquer lugar que você vá.
Ela se referia ao status. Ao estatuto emblemático que
eventualmente eu iria adquirir caso me tornasse usuário da grife vendida em sua
loja. E a resignada vendedora tinha razão. Porque ela não estava tentando me
vender apenas uma camisa. Na verdade, ela me oferecia a oportunidade de obter
reconhecimento social, coisa que eu só conseguirei se me render aos símbolos
consagrados por nossa sociedade pós moderna.
– Não, obrigado... Eu vou ficar com o caminho mais difícil:
vou tentar se reconhecido por meus méritos e não por minhas escolhas.
– E o que você acha que é isso que está tatuado em seu braço?
– Ainda dentro da loja fui surpreendido por uma questão incomum. A moça não
havia se dado por vencida.
Olhei e vi que ela apontava para minha tatuagem do Metallica. A manga do meu uniforme estava
dobrada, permitindo que partes da tattoo ficassem expostas.
– Ué, isso é uma tatuagem... – tive que dar uma resposta
imbecilizada, porque ainda não sabia o que dizer diante de tão inusitada
afronta.
– Isso é um símbolo! – eu havia tido o azar de ser atendido
pela vendedora mais obstinada de minha cidade – Você carrega no braço o símbolo
de uma marca, que de certa maneira, possui o mesmo efeito que as roupas desta
loja.
– Espere um pouco aí... É claro que uma banda é diferente.
– Diferente como?
É difícil responder quando se está com os dentes soltos na
boca, após lancinante bofetada.
Eu saí da loja de mãos vazias e sem nenhum argumento para
combater o ataque da vendedora contra o meu idealismo fajuto. No entanto,
aquela conversa me fez pensar sobre o assunto... Eu costumo ser assim: às vezes
preciso de algum tempo para discernir sobre o que as pessoas me dizem. E esse
tempo pode levar até anos...
No caso desta crônica, levou apenas alguns dias. Mas quando
finalmente encontrei razões que pudessem convencer a mim e aquela vendedora
insistente de que eu tenho razão, juro que fiquei com vontade de voltar em sua
loja, só para dar continuidade ao nosso embate sobre marcas de grifes.
Mas se há uma coisa benéfica no avançar do tempo, é que a
idade faz com que eu entenda que é melhor deixar disputas conceituais de lado.
Além do mais, a vendedora também poderia ter feito a lição de casa dela, e talvez eu voltasse a sair de sua loja derrotado.
O fato é que aquela mulher vendia produtos que (mesmo que
isso pareça uma ideia irracional) ajudava as pessoas a se sentirem melhores;
mais aceitas. E quando eu optei por fazer uma tatuagem que exibisse o nome de
uma de minhas bandas favoritas, talvez não fosse mesmo uma forma de homenagear,
como eu sempre tentei me convencer...
O que eu queria era exibir minha preferência; mostrar ao
mundo minhas aptidões musicais. E quando uma pessoa se identifica comigo ao ver
o que há estampado no meu braço, inevitavelmente eu me sinto bem, como se
aquilo fosse a constatação do sucesso de minha intenção vaidosa.
Sim, o Metallica é
uma banda que admiro e curto desde os tempos de minha adolescência. No entanto,
eu nunca tatuei no braço o nome do meu livro favorito, a receita do meu prato
predileto ou o nome de minha adorada mãe. E isso talvez signifique que tatuar
uma banda no corpo, mesmo que me doa tal constatação, é sim, fazer propaganda
gratuita, usando a própria pele para isso.
Não me arrependo de ter feito a tattoo do Metallica ou
qualquer outra, de jeito nenhum. Eu o faria de novo se pudesse voltar no tempo.
O que preciso com esta reflexão é pensar sobre a atitude de meu julgamento
preconceituoso, que acusa de idiota alguém que curte sair por aí exibindo marcas
de roupas... Creio que seja esse tipo de conceito fundamentalista um dos grandes
males de nossa sociedade; não conseguimos largar, de uma vez por todas, a mania
de metermos o nossos narizes na vida alheia. Achamos que somos referência, a
medida do que é certo ou errado.
Não, meus amigos... Somos todos iguais, cuidamos somente de
nossa própria vida e precisamos dar parecer apenas a nós sobre ela. Eu notei
meu disparate quando comecei a construir essa crônica, que inicialmente possuía
o viés de ser uma argumentação que defenderia meus ideais em detrimento das
decisões dos outros.
Ainda bem que deu tempo de mudar de rumo e deixar uma
mensagem menos destrutiva para este Dia Mundial
do Rock... Que ele seja festejado sob a bandeira da harmonia; sem que haja
comparações ou distinções ideológicas. Que cada um faça de sua vida o que desejar
desde que seja respeitada a vida do próximo...
Eu vou curtir esse dia tomando minha cerveja
gelada, ao som de “And Justice for All”,
porque se em meu braço assim está escrito, acho que não fará mal nenhum tentar
ser um pouco mais íntegro e ajustado; porque talvez “justiça para todos” seja
exatamente a possibilidade de se viver num lugar onde liberdade seja algo tão
óbvio quanto comprar uma camisa ou fazer aquela tatuagem favorita... E feliz
Dia Mundial do Rock, cheio de esperança de um mundo menos determinista!