segunda-feira, 15 de agosto de 2016

RESENHA DE LIVRO – RAZÃO E SENSIBILIDADE


Antes mesmo de iniciar minha leitura de mais este clássico da literatura, constatei que alguns comentários pela internet alertavam a nós, leitores iniciantes em Jane Austen, de que esta não é a sua melhor obra. E mesmo deixando de lado a opinião da maioria dos internautas, devo dizer que eu esperava mais deste RAZÃO E SENSIBILIDADE. Afinal, é possível encontrar até críticos literários comparando as obras da moça com as de Shakespeare. Contudo, se ORGULHO E PRECONCEITO (livro mais famoso da autora) for, de fato, a obra perfeita de Austen, creio que estou no caminho certo, pois penso que todo autor deve ser lido do pior livro para o melhor. Porque começar a ler um autor por seu melhor trabalho pode ofuscar os demais.

A trama de RAZÃO E SENSIBILIDADE conta a história de duas irmãs que representam a dicotomia sugerida pelo título. Temos então duas protagonistas movidas pela intensidade de seus distintos afetos; a mais velha, Elinor, é amplamente sensata e comedida, enquanto Marianne se mostra excessivamente impetuosa e romântica. Jane Austen nos oferece um excelente panorama do mundo regrado das mulheres que viveram em sua época, nos mostra por meio da vivência de suas personagens, uma sociedade completamente submetida a conceitos rígidos no qual as mulheres são tratadas como se fossem mercadorias; meros objetos vazios de conteúdo e importância social, que precisam moldar sua realidade diminuta e desnecessária às imposições patriarcais da época.

Obrigadas a viver dentro de um mundo regido pelo dinheiro, posição social e interesses, as irmãs sofrem por conta de não possuírem fortuna e conexões com a alta burguesia, deixando-as à mercê da sorte, ou puramente fadadas ao incerto destino, que quase nada lhes reserva.

Os pontos altos da obra ficam por conta da bem elaborada personificação da razão em uma das personagens, e da sensibilidade na outra, características que foram muito bem construídas pela autora. Vez ou outra, podemos até cogitar certa inversão sentimental em ambas, mas conforme avançamos na leitura fica claro quem são e quais os sentimentos primordiais em Elinor e Marianne.

Outro ponto que agrada muito é a ambientação georgiana do texto, onde nos deparamos com detalhes enriquecidos daquela regrada época, que vão desde a inserção de ambientes sofisticados, os costumes e trajes formais, e até a linguagem exageradamente cerimoniosa, algo que deixa os textos desse período com um charme agradável.

Mas achei que Jane Austen peca em alguns aspectos. O primeiro deles é a constância. O livro demora muito sem que nada de relevante aconteça, deixando-nos receosos quanto a suas mais de quatrocentos e cinquenta páginas. A trama começa morna e não se eleva em momento algum. Nem mesmo em sua reta final, quando revelações e reviravoltas surgem, não há nada que nos faça delirar. O segmento do livro não chega a decepcionar, mas mantém sempre uma perigosa linha tênue entre o enfado e a mesmice.

Também fiquei um pouco incomodado com a considerável quantidade de coadjuvantes que a autora lança no texto sem esperar o leitor digerir com calma. Muita gente inserida em pouco tempo de leitura, nos deixando com certa dificuldade em nos familiarizar com personagens e suas linhas de importância no enredo. Alguns deles nos são apresentados logo no início, então ficamos com a sensação de que serão peças fundamentais da trama, mas só voltamos a vê-los ocasionalmente, quando já nem nos lembrávamos de seus nomes.

De qualquer forma, estamos falando de uma grande autora, cuja notoriedade não surgiu por acaso. Jane Austen sabe descrever cenários detalhados, é extremamente habilidosa em criar personalidade em seus personagens e consegue nos atrair para perto deles, condição que nos faz amar ou detestar suas particularidades. E embora os leitores online sugiram que comecemos a ler Austen por ORGULHO E PRECONCEITO, penso que vale muito à pena conferir esta obra, dotada de charme peculiar dos tempos georgianos, e de muita riqueza características da complexidade humana.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

CRÔNICA - A SUJEIRA DEFINIDORA


Hoje senti vontade de comer macarrão. Estava bem temperado com alho e, apesar de já se encontrar um pouco frio, o sabor estava muito bom. Ao meu redor o cenário era a praça de alimentação do Shopping Vitória, o tipo de lugar em que adentramos na multidão para nos deparar com o contraste social. E não falo apenas do contraste gustativo, onde a culinária mineira mistura-se ao cheiro do customizados hambúrgueres americanos e o colorido alegre dos sushis enfeitam as louças.

Não. Aqui a mistura cultural tem uma aparência inclusiva benigna, mas que na realidade esconde seu caráter separatista dogmático, que avalia indivíduos pelo capital aquisitivo.

Por todos os lados, pessoas se empanturrando de alimentos com dissimulada sofisticação que justifique seu astronômico preço: a juventude detentora de uma costumeira vontade de ser descolado; executivos encoleirados por aparelhos eletrônicos de última geração; vendedores internos em horários de almoço; famílias que saíram de suas casas para encontrar algo que já se perdera há décadas: o sentido de se estar juntos... Todos dividem o improvável espaço com os funcionários encarregados da limpeza do shopping; reles fantasmas que caminham no meio da gente, sem serem notados, doutrinados a exercer função que é desprezada pelo consumidor contemporâneo: higienizar o ambiente. Trata-se de seres adestrados à submissão, cuja incumbência essencial não é a manutenção do recinto propriamente, mas amaciar o ego dos preguiçosos clientes que infestam nossos parques de diversões modernos.

Afinal, o nosso primoroso sistema capitalista, como se fosse uma madrasta zelosa, nunca se esquece de acolher a cada um de seus filhos, colocando-os em seu devido lugar... E desta ordem criteriosa nasceram os miseráveis.

Sim, eu sou integrante deste sistema moedor de carne humana, e o macarrão também fazia parte da sofisticação alimentar que, mesmo proporcionando considerável prazer, era incapaz de justificar o seu preço abusivo. Estou inserido no grupo dos que se acham pertencentes à uma classe social superior, simplesmente por me encontrar sentado na praça de alimentação, comendo numa bandeja. Em vez de estar em pé, usando vestes excêntricas e passeando por todos os lados portando esfregão e vassoura.

Tal constatação fez com que eu sentisse um pouco de vergonha por estar inserido na classe sedentária que é incapaz de cuidar da própria sujeira. Ou pior: achando que cuidar de uma bandeja vazia e suja é coisa pra gente subalterna fazer.

Enquanto eu refletia sobre tal discrepância, uma moça rudemente uniformizada surgiu em minha frente. Claro, afinal de contas, o uniforme deve sempre ser identificador do tipo de gente que estamos lidando. E o brim grosso, cinzento e inconveniente, estava em plena conformidade para que, tanto clientes quanto os próprios funcionários soubessem que aquele é apenas um prestador de serviços ignóbil e substituível... Um genuíno fantasma. E diante de mim pairava este ser ordinário, prontamente treinado para cuidar da bandeja vazia que eu havia deixado de lado para poder rascunhar este texto.

Um pouco desconfortável por constatar que faço mesmo parte do grupo dos esnobes, eu tentei amenizar a situação agradecendo pela gentileza que a mim fora prestada. Mas a mulher praticamente não notou e, conformada com sua condição de mal necessário, ela recolheu minha bandeja, certamente convicta de que um obrigado era mais do que ela merecia.

Ao meu lado, um grupo de estudantes, terminando de lanchar e olhando ao redor como se o mundo fosse um interminável tédio. Um deles usava uma coroa feita de papel, que ele ganhou de brinde numa lanchonete de nome ostensivo, justamente por ter escolhido o lanche “mais feliz”. Após algum tempo, vossa majestade foi embora, seguido por seus súditos burgueses, sem darem importância ao que será feito dos intermináveis restos espalhados na mesa onde se encontravam.

Enquanto isso, os fantasmas seguiam recolhendo bandejas, limpando mesas, devolvendo a decência ao ambiente para que ele continuasse sendo desfrutado pela classe superior. Eles não são notados pela multidão e talvez assim devesse proceder tal existência, porque a cegueira faz bem e ajuda a não pensarmos em diferenças sociais; serve para manter a ordem vigente, porque a desordem incomoda até mesmo aos que careceriam de serem vistos. Pois quando um dos funcionários reparou o meu exagerado interesse em seus indignos afazeres, logo tratou de assumir uma postura ainda mais serviçal, talvez até suplicante, afinal, imaginavam que eu pudesse ser alguém da administração do shopping, a lhes fiscalizar enquanto trabalhavam...

Dois ou três se uniram, cochicharam entre si, certamente solidarizados à cerca da suposta ameaça que eu agora representava. Então passaram a limpar mesas com maior zelo, sorrindo para os arrogantes clientes, e mantendo a cautela com o suspeito rapaz que inadequadamente os observava e fazia constantes anotações numa folha de papel.

Sim, os fantasmas temiam perder o emprego mais frívolo da sociedade. Sabiam que não lhes restava mais o que fazer no meio de uma comunidade casta e meritocrática, que paga de bom grado alguma esmola que leva o nome de salário, a troco de alguém que lhes limpe o próprio rabo. Porque vivemos numa sociedade em que, olha só, a nossa sujeira e preguiça gera empregos.

Mas os fantasmas da praça de alimentação não são idiotas. Eles aquiescem frente ao menor risco de que mudanças administrativas precisem ser tomadas. Receiam que a logística do shopping perceba o quanto alguns consumidores, os raros mais atentos, sintam-se desconfortáveis ao ter que conviver em meio à gente que cuida da sujeira por eles deixada; o lado social mimado, que precisa de alguém que dê um jeito na imundice, mas que não se sente à vontade vendo quem são essas pessoas. E como um bando de Pilatos pós-modernos, lavam as mãos e sugerem furtivamente que os fantasmas sejam sumariamente substituídos por máquinas inexpressivas, que sejam capaz lidar com a limpeza do consumismo, sem que sua presença ordinária lhes cause culpa...

Essa mudança radical e moderna poderia lhes custar o emprego;

Meu grito interno de revolta ao me deparar com o contraste social poderia desencadear em protestos que lhes custaria o emprego;

Pensar neles como trabalhadores coitadinhos é uma ideia perigosa, que se levada ao pé da letra, pode lhes custar o emprego...

Porque o desenvolvimento científico moderno está aí, espreitando para entrar no cenário e mudar isso tudo. Colocar aqueles que não são capacitados, os que não tiveram as mesmas chances, os miseráveis, exatamente no seu devido lugar: bem longe do consumidor que sabe que seus cartões de crédito ditam o jogo, e ao menor sinal de culpa, solicitarão que alguém tome uma providência.

Esse deve ser o pesadelo dos fantasmas: ver máquinas entrando em cena para lhes surrupiar o emprego. Ou mais distante do provável, nossa educação e polidez se fazer presente em sociedade, então não precisaremos mais que retirem nossa sujeira da mesa, pois nós mesmos o faremos...

E no lugar de assinar contracheque, os fantasmas passearão de um lado para o outro, com a palma de suas mãos viradas para o céu, implorando por alguns trocados. Mas isso eles terão que fazer bem longe da praça de alimentação. Porque ali este tipo de realidade não pode entrar.

Melhor eu deixar esse assunto de lado; melhor me esquecer de toda essa besteira e não mais apontar meu dedo sujo com molho de macarronada para as lacunas sociais; melhor manter distância dos meios urbanos, porque olhar muito de perto para isso faz com que eu sinta o cheiro da podridão...

E viva a sujeira empregatícia deixada pela burguesia gorda e preguiçosa!