Hoje senti vontade de comer macarrão. Estava bem temperado
com alho e, apesar de já se encontrar um pouco frio, o sabor estava muito bom.
Ao meu redor o cenário era a praça de alimentação do Shopping Vitória, o tipo
de lugar em que adentramos na multidão para nos deparar com o contraste
social. E não falo apenas do contraste gustativo, onde a culinária mineira
mistura-se ao cheiro do customizados hambúrgueres americanos e o colorido
alegre dos sushis enfeitam as louças.
Não. Aqui a mistura cultural tem uma aparência inclusiva
benigna, mas que na realidade esconde seu caráter separatista dogmático, que
avalia indivíduos pelo capital aquisitivo.
Por todos os lados, pessoas se empanturrando de alimentos com
dissimulada sofisticação que justifique seu astronômico preço: a juventude
detentora de uma costumeira vontade de ser descolado; executivos encoleirados
por aparelhos eletrônicos de última geração; vendedores internos em horários de
almoço; famílias que saíram de suas casas para encontrar algo que já se perdera
há décadas: o sentido de se estar juntos... Todos dividem o improvável espaço
com os funcionários encarregados da limpeza do shopping; reles fantasmas que
caminham no meio da gente, sem serem notados, doutrinados a exercer função que
é desprezada pelo consumidor contemporâneo: higienizar o ambiente. Trata-se de
seres adestrados à submissão, cuja incumbência essencial não é a manutenção do
recinto propriamente, mas amaciar o ego dos preguiçosos clientes que infestam nossos
parques de diversões modernos.
Afinal, o nosso primoroso sistema capitalista, como se fosse uma
madrasta zelosa, nunca se esquece de acolher a cada um de seus filhos,
colocando-os em seu devido lugar... E desta ordem criteriosa nasceram os
miseráveis.
Sim, eu sou integrante deste sistema moedor de carne humana,
e o macarrão também fazia parte da sofisticação alimentar que, mesmo
proporcionando considerável prazer, era incapaz de justificar o seu preço
abusivo. Estou inserido no grupo dos que se acham pertencentes à uma classe
social superior, simplesmente por me encontrar sentado na praça de alimentação,
comendo numa bandeja. Em vez de estar em pé, usando vestes excêntricas e
passeando por todos os lados portando esfregão e vassoura.
Tal constatação fez com que eu sentisse um pouco de vergonha por
estar inserido na classe sedentária que é incapaz de cuidar da própria sujeira.
Ou pior: achando que cuidar de uma bandeja vazia e suja é coisa pra gente subalterna
fazer.
Enquanto eu refletia sobre tal discrepância, uma moça
rudemente uniformizada surgiu em minha frente. Claro, afinal de contas, o
uniforme deve sempre ser identificador do tipo de gente que estamos lidando. E
o brim grosso, cinzento e inconveniente, estava em plena conformidade para que,
tanto clientes quanto os próprios funcionários soubessem que aquele é apenas um
prestador de serviços ignóbil e substituível... Um genuíno fantasma. E diante
de mim pairava este ser ordinário, prontamente treinado para cuidar da bandeja
vazia que eu havia deixado de lado para poder rascunhar este texto.
Um pouco desconfortável por constatar que faço mesmo parte do
grupo dos esnobes, eu tentei amenizar a situação agradecendo pela gentileza que
a mim fora prestada. Mas a mulher praticamente não notou e, conformada com sua condição
de mal necessário, ela recolheu minha bandeja, certamente convicta de que um obrigado era mais
do que ela merecia.
Ao meu lado, um grupo de estudantes, terminando de lanchar e
olhando ao redor como se o mundo fosse um interminável tédio. Um deles usava
uma coroa feita de papel, que ele ganhou de brinde numa lanchonete de nome
ostensivo, justamente por ter escolhido o lanche “mais feliz”. Após algum
tempo, vossa majestade foi embora, seguido por seus súditos burgueses, sem
darem importância ao que será feito dos intermináveis restos espalhados na mesa
onde se encontravam.
Enquanto isso, os fantasmas seguiam recolhendo bandejas,
limpando mesas, devolvendo a decência ao ambiente para que ele continuasse
sendo desfrutado pela classe superior. Eles não são notados pela multidão e
talvez assim devesse proceder tal existência, porque a cegueira faz bem e ajuda
a não pensarmos em diferenças sociais; serve para manter a ordem vigente,
porque a desordem incomoda até mesmo aos que careceriam de serem vistos. Pois
quando um dos funcionários reparou o meu exagerado interesse em seus indignos
afazeres, logo tratou de assumir uma postura ainda mais serviçal, talvez até
suplicante, afinal, imaginavam que eu pudesse ser alguém da administração do
shopping, a lhes fiscalizar enquanto trabalhavam...
Dois ou três se uniram, cochicharam entre si, certamente
solidarizados à cerca da suposta ameaça que eu agora representava. Então passaram
a limpar mesas com maior zelo, sorrindo para os arrogantes clientes, e mantendo
a cautela com o suspeito rapaz que inadequadamente os observava e fazia
constantes anotações numa folha de papel.
Sim, os fantasmas temiam perder o emprego mais frívolo da
sociedade. Sabiam que não lhes restava mais o que fazer no meio de uma comunidade
casta e meritocrática, que paga de bom grado alguma esmola que leva o nome de
salário, a troco de alguém que lhes limpe o próprio rabo. Porque vivemos numa
sociedade em que, olha só, a nossa sujeira e preguiça gera empregos.
Mas os fantasmas da praça de alimentação não são idiotas. Eles
aquiescem frente ao menor risco de que mudanças administrativas precisem ser
tomadas. Receiam que a logística do shopping perceba o quanto alguns consumidores,
os raros mais atentos, sintam-se desconfortáveis ao ter que conviver em meio à
gente que cuida da sujeira por eles deixada; o lado social mimado, que precisa
de alguém que dê um jeito na imundice, mas que não se sente à vontade vendo
quem são essas pessoas. E como um bando de Pilatos pós-modernos, lavam as mãos
e sugerem furtivamente que os fantasmas sejam sumariamente substituídos por
máquinas inexpressivas, que sejam capaz lidar com a limpeza do consumismo, sem
que sua presença ordinária lhes cause culpa...
Essa mudança radical e moderna poderia lhes custar o emprego;
Meu grito interno de revolta ao me deparar com o contraste
social poderia desencadear em protestos que lhes custaria o emprego;
Pensar neles como trabalhadores coitadinhos é uma ideia
perigosa, que se levada ao pé da letra, pode lhes custar o emprego...
Porque o desenvolvimento científico moderno está aí,
espreitando para entrar no cenário e mudar isso tudo. Colocar aqueles que não
são capacitados, os que não tiveram as mesmas chances, os miseráveis,
exatamente no seu devido lugar: bem longe do consumidor que sabe que seus
cartões de crédito ditam o jogo, e ao menor sinal de culpa, solicitarão que
alguém tome uma providência.
Esse deve ser o pesadelo dos fantasmas: ver máquinas entrando em
cena para lhes surrupiar o emprego. Ou mais distante do provável, nossa
educação e polidez se fazer presente em sociedade, então não precisaremos mais
que retirem nossa sujeira da mesa, pois nós mesmos o faremos...
E no lugar de assinar contracheque, os fantasmas passearão de
um lado para o outro, com a palma de suas mãos viradas para o céu, implorando
por alguns trocados. Mas isso eles terão que fazer bem longe da praça de
alimentação. Porque ali este tipo de realidade não pode entrar.
Melhor eu deixar esse assunto de lado; melhor me esquecer de
toda essa besteira e não mais apontar meu dedo sujo com molho de
macarronada para as lacunas sociais; melhor manter distância dos meios urbanos,
porque olhar muito de perto para isso faz com que eu sinta o cheiro da podridão...
E viva a sujeira empregatícia deixada pela
burguesia gorda e preguiçosa!