Hiperativa
sobre o colo afetivo, a menina brincava, pulava, balbuciava sons indecifráveis
com sua língua ainda virgem de idioma. Ela saltava do colo para o assento no
corredor e de volta para o colo da mãe, que do assento da janela dedicava
cuidados à sua cria com instinto materno e protetor, de mãos afáveis que não se
cansavam de impedir que a pequena massa rechonchuda e buliçosa sofresse uma
queda desastrosa no chão. E quando o colo já lhe parecia tediosamente
aconchegante, a menina sacolejava de volta ao banco vazio.
A mãe era pequena e morena,
quase tão miúda quanto à filha arteira. Os cabelos lisos desciam-lhe para além
dos ombros, ladeando um rosto ossudo e sem maquiagem. Tinha belos lábios
grossos que raramente sorriam. Parecia obstinada e audaz, como quem tenta
convencer a si mesma de que poderá cuidar das coisas, sozinha, com uma força
que ela não sabia bem de onde invocar. Mas aprenderia a ser forte sozinha,
porque sempre que confiou na força de outras pessoas, ela terminou machucada e
triste.
Uma bolsa aparentemente
pesada sob seus pés a delatava: havia dado tempo de pegar o que pôde ou coube
na mala, mas era insignificante se comparado ao que deixara pra trás; estava
fugindo de algo ou de alguém... Mal sabia ela que se estivesse fugindo do mundo
propriamente, achando que uma passagem comprada às presas lhe serviria como
portal de transição existencial, enganava-se. Pois era o mundo o que ela
encontraria quando desembarcasse pela porta do ônibus... Aliás, o ônibus também
era o mundo; os demais passageiros eram mundos; eu a lhe observar era mundo...
Mesmo a filha sapeca era o mundo inflexível e constante a lhe consumir
sutilmente.
Mas ela parecia não se dar
conta disso. E olhava pela janela como quem acredita estar deixando pra trás
mundos velhos e despedaçados, que desapareceriam tão rápido quanto a paisagem
sumia de seu campo de visão. Tentaria se convencer de que mundos destrutivos
que ficaram no passado não poderiam voltar... Só que eles costumam voltar,
infelizmente. No entanto, eu é que não seria indelicado a ponto de lhe
apunhalar com minhas invasivas convicções.
Seus olhos eram tristes,
pareciam enxergar ao inverso, de fora pra dentro. Eram tão túrbidos que
pareciam exalar conformidade quanto a qualquer lugar em que forem deixados no
desembarque, será mais do que eles merecem... Olhos que viram além do que
puderam suportar; que testemunharam mais quedas do que reerguidas.
No antebraço onde agora a
filha dormia, havia um nome gravado. Uma tinta ordinária que marcara a insígnia
do mundo que ficou para trás. Era um nome de caráter bíblico, masculino, porém,
nem um pouco merecedor de tal honraria. Fizera a tatuagem numa época de
certezas ingênuas, de amores escapadiços. Certamente era a definição
existencial da qual ela fugia... Sim, pois se aquele sinal em seu antebraço
fosse algo ansiado, um mundo em que ela estivesse indo ao encontro, certamente
o olhar daquela dama seria menos congelado numa infelicidade que se reproduzia
na janela por onde ela olhava hipnoticamente.
A viagem foi interrompida
para o embarque de passageiros. Um casal muito jovem, que vivia o auge de seus
anos de apogeu, se sentou nos assentos em minha frente. Também traziam no colo
o fruto de sua união. Esta era tímida e preguiçosa; dormia sossegada nos braços
da mãe.
Já estávamos de volta à
estrada, quando o casal olhou despercebidamente para a mulher em fuga, que
devolveu o fitar. Mas logo aquela breve conexão se perdeu, pois constrangida, a
mãe solitária não quis ter sua dor desnudada. Contudo, o casal continuou
mapeando-a. Então o homem perdeu o interesse e adormeceu, só que a mãe não...
A mulher seguiu intrigada,
observando a outra até conseguir atravessar a carapaça fragilizada daquela mãe.
E na proporção em que o olhar perdurava, a mãe recém-chegada foi perdendo o
brilho de esperança que carregou até aquele instante raro que a possibilitou
vislumbrar a materialização de seu próprio porvir. Seus olhos agora eram um
misto de comiseração e ansiedade, resultado de seu encontro com o inevitável.
Talvez, e somente talvez,
numa passado não muito distante, aquela mãe fugitiva também embarcou ao lado de
um homem que, carinhosamente dividia a responsabilidade em zelar pelo pequeno
fruto hiperativo que juntos conceberam; eles sorriam de qualquer coisa,
apaixonados, o discernimento rendido à sutileza da ilusão amorosa, que os fez
ver apenas a existência efêmera do ser.
“Vou tatuar seu nome bem aqui” – disse ela, exalando ternura,
mostrando-lhe o antebraço imaculado. Seus olhos não eram esferas cinzentas e
sôfregas, mas sim, portadores da paixão cálida, a contemplar a própria família
constituída e perfeita, merecedora de uma viagem de férias.
A esposa do casal sentiu
medo. Inquietava-se no assento, pediu água ao marido desacordado. Não queria
mais assistir ao prenúncio de sua ruína; o interior do ônibus a lhe sufocar; o
futuro diante dos olhos a lhe consumir.
O mundo consegue ser ainda
mais cruel quando anuncia, quando antecipa seus métodos implacáveis, quando nos
faz ler a página seguinte sem ter nos dado chance de terminar a página atual...
O mundo sorri de nossa prepotência quando nos fornece o testemunho do provável
amanhã.
A mãe solitária estava
novamente com os olhos no casal. Sua sensibilidade mais do que testada lhe
permitia ver o pânico na outra, entender que sua viagem solitária simbolizava o
medo de toda mulher esperançosa. Ela apertou os lábios, compreensiva.
“Não se preocupe... Vai ficar tudo bem” – mentiu com os olhos,
tentando fazer o que todos fizeram com ela; enganaram-lhe achando que assim
doeria menos.
Ela então se virou, voltando
para o cenário seco e cheio de mundos vazios, que avançava veloz através da
janela.
O casal aquiesceu, aguardou
a trajetória em silêncio formal. Não mais riam, não conversavam, tão pouco se
tocavam. Passavam a criança para o colo do outro, como se fossem soldados
transferindo a vez de zelar pelo estandarte. O homem sabia que a quietude
inesperada era indício de alteração de perspectiva na mente confusa de sua
amada. A mulher torcia para que o consentimento de seu amado não fosse prenúncio
de sua conivência.
O que será deles ao término
daquela viagem rumo ao desconhecido? Continuarão outras viagens sustentando
suas recíprocas condutas de amor e ódio? Serão impotentes expectadores de suas
próprias existências a desabar num lugar qualquer em que se encontrarão
separados, vingados e infelizes?