terça-feira, 25 de julho de 2017

CRÔNICA – NEUROSISMO

Sexta-feira, final de expediente. Vou para o bar que ainda se encontra vazio, escolho uma mesa com vista privilegiada para as frivolidades da cidade. Peço uma cerveja que, para meu agrado, está trincando de gelada. Pronto! Agora é só relaxar, enquanto espero pela chegada de meu melhor amigo e companheiro de copo.

E a mansidão fora rapidamente superada. Ele logo surge atravessando a rua, ainda de uniforme do trabalho, as mãos ensebadas nos bolsos denotando aparente descontração e um olhar atento e discreto. Cumprimentamo-nos e ele sentou na outra extremidade da mesa.

Eu encho o copo que já estava a sua esperar, brindamos para selar nosso protocolo e, antes que ele desse seu primeiro gole, algo aconteceu para romper com a costumeira rotina:

– Parceiro... – ele devolveu o copo à mesa sem ter dado sequer uma bicadinha – Antes que você diga qualquer palavra, eu tenho que te pedir umas paradas.

Remexi-me na cadeira, nervoso. O que será que ele tinha pra me dizer que não poderia esperar nem mesmo pelo sagrado gole de cerveja?

– Eu quero te contar uns lances sobre meu casamento, mas não começa a pegar no meu pé por causa de algumas paradas que ficaram sem resolver.

Ainda estupefato, tentei balbuciar algo, mas ele seguiu com suas recomendações:

– Aliás, eu acho melhor você não fazer nenhum comentário sobre problemas...

Minha boca permanecia aberta, porém, nem mesmo o ar escapava dela, totalmente emudecida.

– Aliás, é melhor você não fazer nenhum tipo de comentário hoje.

E assim, ele foi me dando detalhes do que havia sido aquela sua árdua sexta-feira de problemas conjugais, o que logo me fez compreender duas coisas: a eminente fragilidade que o obrigou a fazer advertências imediatas pelo bem da harmonia; e a certeza de que meu amigo sabe muito bem com quem divide a mesa do bar.

Sim, pois a inegável realidade é que sou um genuíno neurótico. E antes que eu pudesse enchê-lo com meus conselhos toscos e ineficazes, meu amigo já antecipou que era preciso prevenir o manifesto de uma nova oratória obsessiva, que certamente eu começaria a bombardear em seus ouvidos.

Portanto, não houve alternativa de minha parte, senão concordar plenamente com ele, fechar o bico e tentar desligar o neurosismo, deixando meu ser apenas no modo ouvinte.

Vivo os meus dias tentando controlar tudo, desde as coisas mais corriqueiras, os acontecimentos diários, até a vida pessoal daqueles que amo. Tento levar uma vida regrada, minuciosamente dentro de padrões que acredito ser possuidor de total comando. Maneirismo que só quem convive mais perto de mim, tem consciência do enorme chato que sempre fui.

Sei que isso foi o que desencadeou em observações restritivas de meu já nem tão paciente amigo. Mas sei que em breve, as poucas pessoas que ainda se atrevem a conviver comigo, certamente tomarão medidas extremas, como elaborar um guia contendo dez passos para deixar de se meter na vida alheia para me presentear no natal. Afinal, quem foi que disse que quando um amigo precisa falar sobre a vida dele, significa que é hora de dar conselhos? E de onde eu tirei essa ideia de que sou um bom conselheiro?

Neuróticos nunca são bons em recomendações.

Talvez tenha chegado a hora de me perguntar de onde veio esta minha interminável neuropatia. Será que a condição de chato irredutível faz parte de minha natureza ou fui acometido por uma espécie de possessão de uma entidade enfadonha que se recusa a deixar este corpo?

Objetos fora do lugar me deixam incomodado, manchas em superfícies que julguei deviam estar limpas, ciscos nas roupas das pessoas, seus hábitos que considero ruins, o cansaço dos outros que interpreto como preguiça, o ócio das pessoas que sempre julgo como mal aproveitado... Tudo me incomoda!

Basta apenas que eu chegue num ambiente e já começo a olhar pelos cantos, vasculhar coisas, investigar tudo aquilo que não está como eu acho que deveria. Doutrinar a existência em geral para que o mundo fique em plena conformidade com os meus auspícios. E quem vive sob o mesmo teto comigo sofre dobrado:

“Meu pai! Quem deixou essas coisas jogadas aqui?”;

“Por que a cama está desarrumada até essa hora?”;

Quem deixou a válvula do fogão aberta?”;

“Quem tirou meus livros do lugar?”;

“Onde está aquela cueca que sempre deixo pra usar no sábado?”;

“Não é melhor limpar a cozinha primeiro e depois assistirmos o filme?”;

“Por que têm dois sabonetes abertos?”;

“Alcatra é carne pra se fazer nos fins de semana!”;

“Quem pegou o meu chinelo?”;

“Não consigo descansar em casa suja!”;

Minha voz irritante fica ressoando dentro da mente dos meus pobres familiares. As pessoas que amo certamente são seres extraordinariamente perseverantes. A coexistência diária comigo certamente é provação capaz de valer a entrada no paraíso de qualquer religião. Sou um insuportável fiscal da natureza humana... Não por acaso morei sozinho por anos, sei muito bem que não existe altruísta capaz de conviver por muito tempo comigo. E para aliviar este drama, minto pra mim alegando que gosto de ter minha independência.

Certa feita, meu irmão mais velho, recém-separado, pediu para ficar uns tempos em minha casa... Coitado. Não suportou dividir o mesmo teto comigo nem por uma semana.

E o pior é que não sou um ranzinza que olha apenas externamente para o que ocorre com a vida alheia. Acima de tudo, sustento irrefreável comportamento analítico sobre minha própria existência. Afinal, quem mais sofre a cobrança nesta história toda sou eu mesmo.

Tornei-me um eterno escravo de minhas próprias regras. Tenho um itinerário mental para as atividades de meus dias. E nas raras vezes em que preciso sair deste confinamento militar, sinto culpa. Como se eu estivesse me tornando um desleixado, incapaz de cumprir com os deveres ilusórios, existentes apenas dentro da trevosa mente que me pertence.

Minhas camisas são arrumadas no guarda-roupa de modo a serem usadas em ordem de chegada. Aquelas que acabaram de sair da máquina de lavar vão para o final da fila, esperar sua vez de serem usadas;

Leio meus livros em plena concordância com a ordem em que eles foram comprados, sem jamais antecipar algum que gostaria de ler primeiro;

Minhas revistas são guardadas por tipo, e separo aquelas que ainda não li das que já foram devoradas;

Desde a infância que eu deixo a carne no prato para comer só no final;

Os perfumes possuem datas específicas. Tenho fragrância para usar no trabalho, durante o dia, nos fins de semana e aqueles para ocasiões especiais;

Até o cachorro aqui em casa sofre. Os biscoitos e guloseimas que sempre compro, uso um critério balanceado: dois bifinhos pela manhã e os ossinhos recheados são para os fins de semana.

Levo uma vida amplamente pautada pelas regras... Regras que estabeleci e não sei dizer de onde vieram.

No livro “O Poder do Hábito”, o autor Charles Huhigg diz que quase tudo o que fazemos durante o nosso dia parece ser oriundo de decisões tomadas com muito cuidado, porém, tudo não passa de um aglomerado de hábitos. Contudo, creio que no meu caso, a coisa tende a ser um pouco mais grave, pois além de ter uma série de comportamentos habituais, sei muito bem que nada disso foi por mim revisado... Tudo foi construído numa enorme teia de normas que estabeleci, há muito tempo em minha vida sem-graça. E se isso tem facilitado os meus dias ou não, é algo que não delibero. É que simplesmente considero infrutífero viver fora dos meus padrões de rotina.

Faço com que minhas normas se transformem em algo automático, sem que precise ficar pensando em como será meu dia amanhã. Quando planejo um passeio ou viagem, determino todos os pormenores, antecipo os pagamentos, vasculho itinerários, procuro minimizar as chances de que imprevistos aconteçam. No entanto, e este é o grande problema de minha neurose, os imprevistos acontecem, queira eu controlá-los ou não.

Como eu posso querer dirigir tudo, sistematicamente, se o tempero básico da vida é o ineditismo?

Pelo menos ainda consigo suportar minha própria realidade regrada, mas suspeito de que logo estarei a gastar uma fortuna com terapeutas. No entanto, o propósito desta reflexão não é deliberar sobre minhas manias em relação a mim mesmo. Na verdade, o que mais quero é deixar registrado minhas desculpas para todas aquelas corajosas existências que convivem comigo; gente que faz vista grossa de minhas neuras em prol de boa harmonia...

Pessoal, eu não sou assim porque os odeio, mas justamente por saber que são partes fundamentais de minha vida, é que tento colocar vocês dentro dos meus padrões rígidos de disciplina... Porque se estou a pegar no seu pé, saiba que apenas o faço porque gosto de você. Pois do contrário, minha natureza bizarra teria o comportamento que lhe é típico quando não gosta de alguém... Ela simplesmente ignora.

terça-feira, 11 de julho de 2017

RESENHA DE LIVRO – O AVESSO DA LIBERDADE


Será possível pensarmos na ideia de liberdade sem que a palavra soe como mera obviedade existencial? Por que nos prestarmos a pensar sobre tema que permeia a vida comum de forma tão simples e evidente, garoto propaganda de toda a nossa solenidade? O sentido de liberdade seria mesmo algo adquirido ou elemento natural do ser?

Foi pensando em problematizar este tema, que o autor Adauto Novaes organizou esta coletânea enriquecedora, que nos ajuda a pensar sobre o assunto que por demais foi utilizado pela oratória popular. Tanto que hoje a definição de liberdade parece ter se tornado arquétipo identitário dos padrões sociais de conveniência; ídolo de doutrinas materialistas. Liberdade é palavra fácil na boca de muitos, mas o típico caso de termo que de tão desgastado parece ter perdido o sentido.

O conteúdo deste excelente O AVESSO DA LIBERDADE, busca pensar o tema proposto em toda sua diversidade histórica, cultural e afetiva. Analisar as condições particulares e efetivas de seu exercício, compreendendo esta distorção que maquia atos obscuros e aprisiona homens livres. Os autores esmiúçam o assunto, levando em consideração, problemáticas que vão desde a dualidade entre matéria e espírito; passando por elaboração condicional e natureza intrínseca, até chegarmos aos conceitos da liberdade dentro de trabalhos artísticos, aparentemente frutos de situacionismos de seu tempo.

Em cada capítulo, os autores fazem uso de eficientes nomes que pensaram a liberdade ao longo da história do pensamento. Podemos discorrer sobre artigos à luz de Epicuro, Santo Agostinho, Spinoza, Pascal, Hobbes e outros...

Maravilhoso é o artigo do autor Luiz Carlos Villalta, intitulado “Liberdades Imaginárias”, em que trata dos movimentos inconfidentes no Brasil colonial. Ideias de liberdades oriundas de outros países, que inflaram o anseio de brasileiros, desencadeando em lutas armadas (ou não), cuja paixão pela liberdade não passou de sonho desembocado em tragédias.

Precisos e bem articulados também são os artigos que trabalharam a noção de liberdade de inventar, ou seja, a liberdade do artista. Faz-nos questionar se a arte se mostra, e em quais momentos, fruto da pura criação livre, ou ela sempre fora convencionada por limites permissivos. O capítulo do autor Willi Bolle, intitulado “A Liberdade de Pensar” analisa os procedimentos sofisticados do mestre Guimarães Rosa e seu magnífico GRANDE SERTÃO: VEREDAS, na composição precisa da linguagem e do tema, o sertão.

A coletânea deste O AVESSO DA LIBERDADE não segue uma sequência linear; alguns possuem linguagem um pouco mais complexa, outros facilitam com diálogos informais. Alguns artigos aprofundam tanto o assunto que o leitor chega a se perguntar aonde o autor pretende chegar. Mas é justamente esta amplitude temática o motor que faz com que o tópico da liberdade seja analisado de diferentes ângulos e em múltiplas perspectivas.

É um livro para ser relido várias vezes, ou pelo menos os capítulos que nos pareceram mais pertinentes. E que nem mesmo o já longínquo ano de lançamento da obra (2002), não ofusca seu teor discursivo atual, um tema tão rico, ainda que difuso e complexo... E justamente por conta desta complexidade que precisamos deixar a preguiça de lado para dar espaço a trabalhos com esse tipo de premissa: a literatura filosófica em prol da amplificação de mentes bitoladas.