Sexta-feira, final de
expediente. Vou para o bar que ainda se encontra vazio, escolho uma mesa com
vista privilegiada para as frivolidades da cidade. Peço uma cerveja que, para
meu agrado, está trincando de gelada. Pronto! Agora é só relaxar, enquanto
espero pela chegada de meu melhor amigo e companheiro de copo.
E a mansidão fora rapidamente
superada. Ele logo surge atravessando a rua, ainda de uniforme do trabalho, as
mãos ensebadas nos bolsos denotando aparente descontração e um olhar atento e discreto.
Cumprimentamo-nos e ele sentou na outra extremidade da mesa.
Eu encho o copo que já estava
a sua esperar, brindamos para selar nosso protocolo e, antes que ele desse seu
primeiro gole, algo aconteceu para romper com a costumeira rotina:
– Parceiro... – ele devolveu o
copo à mesa sem ter dado sequer uma bicadinha – Antes que você diga qualquer
palavra, eu tenho que te pedir umas paradas.
Remexi-me na cadeira, nervoso.
O que será que ele tinha pra me dizer que não poderia esperar nem mesmo pelo sagrado
gole de cerveja?
– Eu quero te contar uns
lances sobre meu casamento, mas não começa a pegar no meu pé por causa de
algumas paradas que ficaram sem resolver.
Ainda estupefato, tentei
balbuciar algo, mas ele seguiu com suas recomendações:
– Aliás, eu acho melhor você
não fazer nenhum comentário sobre problemas...
Minha boca permanecia aberta,
porém, nem mesmo o ar escapava dela, totalmente emudecida.
– Aliás, é melhor você não
fazer nenhum tipo de comentário hoje.
E assim, ele foi me dando
detalhes do que havia sido aquela sua árdua sexta-feira de problemas conjugais,
o que logo me fez compreender duas coisas: a eminente fragilidade que o obrigou
a fazer advertências imediatas pelo bem da harmonia; e a certeza de que meu amigo
sabe muito bem com quem divide a mesa do bar.
Sim, pois a inegável realidade
é que sou um genuíno neurótico. E antes que eu pudesse enchê-lo com meus
conselhos toscos e ineficazes, meu amigo já antecipou que era preciso prevenir
o manifesto de uma nova oratória obsessiva, que certamente eu começaria a bombardear
em seus ouvidos.
Portanto, não houve
alternativa de minha parte, senão concordar plenamente com ele, fechar o bico e
tentar desligar o neurosismo, deixando meu ser apenas no modo ouvinte.
Vivo os meus dias tentando
controlar tudo, desde as coisas mais corriqueiras, os acontecimentos diários,
até a vida pessoal daqueles que amo. Tento levar uma vida regrada,
minuciosamente dentro de padrões que acredito ser possuidor de total comando.
Maneirismo que só quem convive mais perto de mim, tem consciência do enorme
chato que sempre fui.
Sei que isso foi o que
desencadeou em observações restritivas de meu já nem tão paciente amigo. Mas sei
que em breve, as poucas pessoas que ainda se atrevem a conviver comigo, certamente
tomarão medidas extremas, como elaborar um guia contendo dez passos para deixar
de se meter na vida alheia para me presentear no natal. Afinal, quem foi que
disse que quando um amigo precisa falar sobre a vida dele, significa que é hora
de dar conselhos? E de onde eu tirei essa ideia de que sou um bom conselheiro?
Neuróticos nunca são bons em recomendações.
Talvez tenha chegado a hora de
me perguntar de onde veio esta minha interminável neuropatia. Será que a
condição de chato irredutível faz parte de minha natureza ou fui acometido por
uma espécie de possessão de uma entidade enfadonha que se recusa a deixar este
corpo?
Objetos fora do lugar me
deixam incomodado, manchas em superfícies que julguei deviam estar limpas,
ciscos nas roupas das pessoas, seus hábitos que considero ruins, o cansaço dos
outros que interpreto como preguiça, o ócio das pessoas que sempre julgo como
mal aproveitado... Tudo me incomoda!
Basta apenas que eu chegue num
ambiente e já começo a olhar pelos cantos, vasculhar coisas, investigar tudo
aquilo que não está como eu acho que deveria. Doutrinar a existência em geral
para que o mundo fique em plena conformidade com os meus auspícios. E quem vive
sob o mesmo teto comigo sofre dobrado:
“Meu
pai! Quem deixou essas coisas jogadas aqui?”;
“Por
que a cama está desarrumada até essa hora?”;
Quem
deixou a válvula do fogão aberta?”;
“Quem
tirou meus livros do lugar?”;
“Onde
está aquela cueca que sempre deixo pra usar no sábado?”;
“Não
é melhor limpar a cozinha primeiro e depois assistirmos o filme?”;
“Por
que têm dois sabonetes abertos?”;
“Alcatra
é carne pra se fazer nos fins de semana!”;
“Quem
pegou o meu chinelo?”;
“Não
consigo descansar em casa suja!”;
Minha voz irritante fica
ressoando dentro da mente dos meus pobres familiares. As pessoas que amo certamente
são seres extraordinariamente perseverantes. A coexistência diária comigo
certamente é provação capaz de valer a entrada no paraíso de qualquer religião.
Sou um insuportável fiscal da natureza humana... Não por acaso morei sozinho
por anos, sei muito bem que não existe altruísta capaz de conviver por muito
tempo comigo. E para aliviar este drama, minto pra mim alegando que gosto de
ter minha independência.
Certa feita, meu irmão mais
velho, recém-separado, pediu para ficar uns tempos em minha casa... Coitado.
Não suportou dividir o mesmo teto comigo nem por uma semana.
E o pior é que não sou um
ranzinza que olha apenas externamente para o que ocorre com a vida alheia. Acima
de tudo, sustento irrefreável comportamento analítico sobre minha própria
existência. Afinal, quem mais sofre a cobrança nesta história toda sou eu
mesmo.
Tornei-me um eterno escravo de
minhas próprias regras. Tenho um itinerário mental para as atividades de meus
dias. E nas raras vezes em que preciso sair deste confinamento militar, sinto
culpa. Como se eu estivesse me tornando um desleixado, incapaz de cumprir com os
deveres ilusórios, existentes apenas dentro da trevosa mente que me pertence.
Minhas camisas são arrumadas
no guarda-roupa de modo a serem usadas em ordem de chegada. Aquelas que
acabaram de sair da máquina de lavar vão para o final da fila, esperar sua vez
de serem usadas;
Leio meus livros em plena concordância
com a ordem em que eles foram comprados, sem jamais antecipar algum que
gostaria de ler primeiro;
Minhas revistas são guardadas
por tipo, e separo aquelas que ainda não li das que já foram devoradas;
Desde a infância que eu deixo
a carne no prato para comer só no final;
Os perfumes possuem datas
específicas. Tenho fragrância para usar no trabalho, durante o dia, nos fins de
semana e aqueles para ocasiões especiais;
Até o cachorro aqui em casa
sofre. Os biscoitos e guloseimas que sempre compro, uso um critério balanceado:
dois bifinhos pela manhã e os ossinhos recheados são para os fins de semana.
Levo uma vida amplamente
pautada pelas regras... Regras que estabeleci e não sei dizer de onde vieram.
No livro “O Poder do Hábito”, o autor Charles
Huhigg diz que quase tudo o que fazemos durante o nosso dia parece ser
oriundo de decisões tomadas com muito cuidado, porém, tudo não passa de um
aglomerado de hábitos. Contudo, creio que no meu caso, a coisa tende a ser um
pouco mais grave, pois além de ter uma série de comportamentos habituais, sei
muito bem que nada disso foi por mim revisado... Tudo foi construído numa
enorme teia de normas que estabeleci, há muito tempo em minha vida sem-graça. E
se isso tem facilitado os meus dias ou não, é algo que não delibero. É que
simplesmente considero infrutífero viver fora dos meus padrões de rotina.
Faço com que minhas normas se
transformem em algo automático, sem que precise ficar pensando em como será meu
dia amanhã. Quando planejo um passeio ou viagem, determino todos os pormenores,
antecipo os pagamentos, vasculho itinerários, procuro minimizar as chances de
que imprevistos aconteçam. No entanto, e este é o grande problema de minha neurose,
os imprevistos acontecem, queira eu controlá-los ou não.
Como eu posso querer dirigir
tudo, sistematicamente, se o tempero básico da vida é o ineditismo?
Pelo menos ainda consigo
suportar minha própria realidade regrada, mas suspeito de que logo estarei a
gastar uma fortuna com terapeutas. No entanto, o propósito desta reflexão não é
deliberar sobre minhas manias em relação a mim mesmo. Na verdade, o que mais
quero é deixar registrado minhas desculpas para todas aquelas corajosas
existências que convivem comigo; gente que faz vista grossa de minhas neuras em
prol de boa harmonia...