Quando nos vemos como a
última instância definidora da própria ação é que estamos condicionados a
sermos gentis ou não. Respeitar a preferência de um idoso na fila do banco não
é ser gentil, mas sim, permitir que alguém em desigualdade social obtenha o seu
lugar, até porque muitas dessas situações cotidianas são garantidas por lei. Ser
gentil de verdade carece da soberania do indivíduo. Ou seja, ajudar um
deficiente a subir os degraus do ônibus coletivo num ponto lotado de pessoas
pode não ser exatamente gentileza, mas simplesmente o medo da censura coletiva.
Somos uma sociedade tão
rudimentar que para que algo incomum como a gentileza possa acontecer, é
preciso que antes ela tenha um arquétipo; um rosto. E que este rosto nos pareça
simpático, ou nos comportaremos da forma que nos é mais costumeira: seremos
rudes.
Em nosso universo
imediatista e egocêntrico, a gentileza se tornou um gesto de subversão e de
resistência. Uma árdua luta contra um coletivo opressor que nos obriga a sermos
rudes e insensíveis. E quando insistimos em aplicar a utopia da gentileza,
então terminamos com uma desconfortável sensação de estarmos sendo trouxas; de
que todos estão nos passando para trás.
A indelicadeza, sentido
contrário do ato gentil, pode ser notada em quase todos os âmbitos da
sociedade, e o trânsito, lugar de disputa acirrada de muitos carros em poucas
ruas para se andar, pode ser tomado como um notório exemplo de espaço tomado
quase que totalmente por gente truculenta. A gentileza entre os motoristas em
geral é quase uma quimera.
O respeito pelo semelhante,
ou a falta do mesmo, talvez seja o defeito menos visível em nossa convivência.
Outro dia, ao parar no posto para calibrar os pneus do meu carro, dois rapazes
chegaram numa motocicleta e perguntaram, com caras de aflição, se eu iria calibrar
os quatro pneus. Eu avisei que, além dos quatros pneus, o estepe também
precisaria ser calibrado. Diante do olhar decepcionado dos rapazes, já
cogitando subirem na moto para procurar outro posto, eu cedi minha vez e deixei
que eles calibrassem primeiro. Mas aqui vale uma pergunta: será que eu teria
dado o meu lugar de bom grado, caso eu estivesse atrasado para algum
compromisso? Ou se em minha intolerância eu os considerasse como sendo dois
folgados que precisam aprender a esperar pela sua vez como todo mundo?
Afinal de contas, parece que
cada vez mais precisamos de leis que nos obriguem a sermos gentis. E foi
sustentando esse pensamento que consegui a incrível façanha de concluir que
estava vivenciando um episódio dificílimo para se aplicar a gentileza: eram
rapazes saudáveis, jovens, prontos para ir a alguma festa e possivelmente
tinham todo o tempo do mundo para esperar. Ou seja, eu estava de posse de deliberar
pela gentileza sem nenhuma instância legal que me obrigasse a fazer isso.