segunda-feira, 22 de julho de 2019

RESENHA DE LIVRO – DIA D


Fazendo uso de uma pitada de exagero, é preciso certo cuidado com atrofias na hora de ler esta pesada obra. O volume de conhecimento aqui reunido é gigantesco, e isso pode ser constatado no peso físico do livro (tratam-se de indispensáveis 715 páginas). Segurá-lo aberto por horas de leitura pode se tornar uma desconfortável experiência.

Mas a imersão narrativa, mesclada a uma expansão de detalhes compensam qualquer desafio na hora de encarar a robustez física; DIA D talvez possa ser considerado o trabalho definitivo sobre o maior desembarque de tropas da história militar. E esta opinião não é minha, vem de alguns historiadores e especialistas da Segunda Guerra Mundial.

Temos aqui um trabalho minucioso cuja narrativa se inicia no desembarque dos aliados no litoral da Normandia, em 06 de Junho de 1944, rumo à libertação da França que estava sob o jugo do terceiro Reich. E diferente dos demais trabalhos sobre esse importante período da grande guerra, DIA D é amplamente enriquecido por detalhes dos combates que muitas vezes escapam dos historiadores; um olhar quase em primeira pessoa.

O nível de imparcialidade do autor impressiona. Antony Beevor tece a narrativa na precisa fidelidade de sua pesquisa, e o que carece de levantamentos hipotéticos, ele os sugere em concordância com documentos oriundos de diferentes fontes. O intento jornalístico e a vontade de contar exatamente o que houve é formidável, o autor não puxa sardinha para nenhum lado, apenas analisa suas fontes e entrega um dos textos mais verossímeis que já li sobre a Segunda Guerra Mundial.

Embora a obra se preocupe em relevar alguns termos técnicos, nomes e datas, o brilho fica por conta do aspecto humano de todos os envolvidos: o inabalável empenho das tropas aliadas; o medo generalizado de não saber o que está à espera no país ocupado; a luta desesperada dos alemães em notória minoria; a tragédia da destruição que sempre desaba sobre os civis que lá se encontravam.

Sim, DIA D deve ser considerado um livro indispensável para quem se interessa pelo tema. Contudo, cabem aqui algumas observações:

É preciso certo conhecimento, mesmo que não muito aprofundado, sobre a Segunda Guerra, pois o autor se concentra nos bastidores dos acontecimentos, sem fazer nenhuma apresentação. Os grandes generais, as divisões de destaques, os termos técnicos recheiam a obra por todo o instante sem fazer nenhuma referência (há apenas um glossário de siglas e fontes no final da obra), o que é perfeitamente compreensivo, haja vista que o livro narra um pequeno período da grande guerra que se passa já em tempos finais. Leitores introdutórios devem começar por obras mais genéricas antes de entrar em narrativas específicas.

Outro aspecto singular do livro foi a maneira com que Antony Beevor procura esmiuçar e compreender a mente dos generais de ambos os lados. Minha leitura deste DIA D tornou-me ainda mais admirador do marechal de campo alemão Erwin Rommel. Outras obras e documentários que pude acompanhar sempre o descreveram como um exímio estrategista e líder articulado. Neste volume tais conceitos são ainda mais acentuados, mostrando que, de fato, Rommel era um homem de elevada inteligência militar e principalmente sobriedade ímpar ao deixar de lado o orgulho e aprender com os próprios erros (condição raramente relatada pelos especialistas que pesquisaram o corpo de liderança do Terceiro Reich). Possivelmente as coisas poderiam ter sido menos trágicas para os alemães, caso o vaidoso Hitler tivesse dado ouvidos ao discernimento dos bons generais que tinha no comando de seu exército.

Não sei se em todas as edições estão iguais (a minha é da editora Record, lançada no ano de 2010), mas esta ainda vem com um bônus maravilhoso: muitas fotos do conflitos, imagens de personagens importantes e diversos mapas que nos ajudam a entender a problemática geográfica.

DIA D é um trabalho estupendo cuja imparcialidade e imersão narrativa nos ajuda a compreender que, embora tenha sido uma operação fundamental, o dia D foi um conflito arduamente vivido por ambos os lados, onde erros e acertos são descritos com a honestidade de um autor que soube mostrar aquilo que são os embates militares de nossa história.

NOTA: 9,5

terça-feira, 9 de julho de 2019

RESENHA DE LIVRO – O LOBO DA ESTEPE


Se as mazelas da solidão humana podem ser narradas de algum modo, sem deixar que se escape o equilíbrio entre o desencaixe existencial e a vontade de potência, eu creio ainda não ter lido nenhum autor que o soube esmiuçar isso melhor do que Hermann Hesse.

O LOBO DA ESTEPE é a autoproclamação da personagem que, solitário em sua essência, define-se como tal. Um ser humano em crise, só que provido de lucidez necessária para compreender sua natureza animalesca e desarmônica, tão honesto que quase o remete ao indizível.

Eis diante de nossas mãos a possibilidade de ler poesia em prosa, de teor angustiante no que tange a complexidade humana, mas acima de tudo, tragicamente enriquecida e bela.
Harry Haller é um homem entediado e a primeira parte do livro traz esse sentimento de modo quase indigesto ao leitor. Há neste ponto da narrativa um segmento confessional, auto analítico, de linguagem penitente que costuma causar certo enfado. Mas é proposital, o autor precisa mostrar quem é seu protagonista, ou seja, trata-se aqui de um caminho inescapável ao leitor.

Depois disso, a trama ganha vigor; Harry despe-se em sua dualidade, homem e lobo, então passamos a acompanhar seus confrontos antagônicos quase que insolúveis de alguém cujos preceitos burgueses o desagradam, mas que não consegue se livrar desse mal. A personagem demonstra seu asco social ao mesmo tempo em que se compreende como o arauto da mediocridade.

Sei que esta resenha soa um pouco hermética, mas o caminho é esse mesmo. A beleza de O LOBO DA ESTEPE não está na linearidade, portanto, não cabe fazer uma sinopse aqui. Até porque isso seria desnecessário pelo fato de que estamos falando de um clássico da literatura.

O livro retrata a necessidade de autoconhecimento, do caminho sem volta que é tentar compreender a si mesmo e que, embora mais árduo do que a felicidade obtida através da mera ignorância, Harry precisa angariar meios de escapar de sua cilada existencial para finalmente usufruir dos verdadeiros prazeres da vida, que numa definição epicurista, seria propriamente o prazer por meio daquilo que é mais simples.

O LOBO DA ESTEPE é um livro memorável por sua mensagem. Hermann Hesse espatifa sua personagem para, em seguida, juntar seus cacos enquanto nos cortamos em pequenas pontas. As referências em Mozart, no Teatro Mágico, na analogia do próprio nome do autor com as personagens, tudo aqui possui uma correlação, porém, nem um pouco conclusivo, o autor deixa tudo para a mera reflexão do leitor, o que é maravilhoso. E o faz sem se esquecer de sua observação pessoal, feita já no posfácio, em que Hermann Hesse sugere com humildade invejável, o que sua literatura criou na mente dos leitores da época e a verdadeira mensagem que gostaria de ter lhes passado... Eis uma obra atemporal, que como várias outras, jamais se esgotará em significado.

NOTA: 8,1

quarta-feira, 3 de julho de 2019

RESENHA DE LIVRO – HISTÓRIAS DA MEIA NOITE


Já que o próprio mestre Machado de Assis sugere o lado despretensioso de sua obra ao dizer que são “escritos apenas ao correr da pena”, achei que caberia uma breve explanação sobre este insigne HISTÓRIAS DA MEIA-NOITE, visto que não costumo resenhar grandes clássicos.

Para se ler o mestre nos tempos de hoje é preciso que seja levado em consideração dois aspectos: 1) Machado de Assis é um homem do seu tempo, ou seja, reeditar a linguagem para tornar sua literatura mais acessível certamente aviltaria a essência da linguagem, a qual eu considero fundamental. Adotar o dialeto desusado como desculpa para não ler grandes autores do passado soa-me como falta de gosto pelo esforço... Isso é preguiça mesmo! 2) nunca se deixe enganar pelo teor muitas vezes indiferente adotado pelo autor (sua condução narrativa, vez ou outra, dá-nos a impressão de que o texto não quer chegar a lugar algum). Sempre há por trás da literatura Machadiana uma premissa irônica e sagaz, que descortina a problemática social daquela época.

Feitas as observações, vamos falar do livro:

HISTÓRIAS DA MEIA-NOITE é uma compilação de contos que foram publicados originalmente num jornal que circulou no período de 1863 até 1878. Os seis contos que aqui se encontram reunidos, naquele tempo eram destinados às leitoras, público que ainda estava em ascensão.

Sob um olhar menos imersivo, o livro pode soar meio raso, de contos sem grande relevância. Mas de um ponto de vista mais analítico, a narrativa reunida nesta obra se revela um pouco mais sutil, e apresenta o típico cenário social de um tempo em que vaidade e ganancia pairavam constantes nos costumes, principalmente da famigerada burguesia (ué, mas será que mudou alguma coisa atualmente?).

Caso seja assertivo este último parêntese que fiz, eu poderia sugerir que Machado de Assis segue tão atual quanto em seu longínquo século XIX. Portanto, não se deve subestimar este trabalho que, embora pareça menos sofisticado, aborda temas fundamentais como preconceito e cobiça.

Faço menção aqui ao conto “O Relógio de Ouro”, sobre um marido que encontra no quarto do casal, desconhecido relógio que coloca em sua mente dúvidas quanto a fidelidade da esposa. O final é deliciosamente revelador.

HISTÓRIAS DA MEIA-NOITE (o título também denota ironia) é uma obra que pode servir como porta de entrada para aqueles que desejam começar a ler Machado de Assis. São contos enriquecidos pelo característico charme do mestre, segmentados por narrativa ágil e sutil. Merecem a atenção do leitor brasileiro.

NOTA: 7,7