quarta-feira, 28 de agosto de 2019

RESENHA DE LIVRO – COM CLARICE


Autores que deixaram um legado literário extraordinário despertam um inevitável interesse nos leitores em conhecer um pouco melhor sobre como funcionava suas mentes sublimes, e Clarice Lispector faz parte desse restrito grupo de gênios que enriqueceram o mundo com inesquecíveis obras-primas.

COM CLARICE é uma obra singular cujo propósito é nos permitir exatamente isso: a possibilidade de darmos mais um passinho em direção ao universo de nossa rainha. Trata-se não somente de um livro sobre Clarice, mas um aglomerado de documentos, análises técnicas de alguns de seus trabalhos e opiniões de gente que conviveu muito perto dela.
Portanto, para os viciados no universo clariciano, como é o meu caso, eis aqui uma obra indispensável e atualmente não muito fácil de encontrar (a minha edição eu achei por acaso num Sebo na cidade de Uberlândia, uma sorte).

Autora plural, Clarice sempre se despiu de conceitos lineares para ir fundo nas agruras da alma humana. Sua literatura de prosa investe muito além dos sentidos e, sobretudo, atiça o pensamento do leitor. Talvez esta seja a autora que melhor me insere na condição de insatisfeito; que me faz querer pensar para além da superfície.

Minha inserção ao universo de Clarice se deu por suas crônicas, caminho que considero ótimo como porta de entrada, pela leveza e praticidade linguística. E desde quando passei a explorar sua literatura, principalmente ao inserir-me nos romances, uma certeza sempre esteve incutida ao longo das leituras: a obra de Clarice Lispector é inesgotável e evolutiva; inesgotável porque nunca se consegue alcançar saciedade; e evolutiva porque nosso discernimento costuma transitar por diferentes formas interpretativas a cada releitura.

E esta opinião parece ser comungada pelos autores desta crítica literária COM CLARICE: o constante sentimento de universo inexplorado e progressivo. Affonso Romano de Sant’anna e Marina Colassanti reuniram aqui parte do legado manancial e intelectual de Clarice, num gesto fragmentado de admiradores que conseguiram nos aproximar um pouco mais da icônica autora.

O livro divide-se em três partes, sendo que a primeira leva o título da obra e talvez seja o momento mais delicioso da leitura: dois textos em que os autores e amigos de Clarice rememoram alguns instantes passados ao lado da escritora. A segunda parte chama-se De Marina para Clarice, em que a narradora nos trás um conto e uma crônica carinhosa de teor clariciano. Finalmente temos a terceira parte, De Affonso para Clarice, momento da leitura em que o autor segue na árdua empreitada de analisar alguns dos trabalhos de Clarice (esta é a parte mais técnica e, por isso, pode incomodar um pouco), e encerra-se com algumas crônicas divertidas e pertinentes.

Há ainda um apêndice em que acompanhamos uma entrevista que Clarice forneceu para os dois autores, realizada no Museu de Imagem e Som do Rio de Janeiro em 1976.
Por essa razão COM CLARICE é uma obra singular e necessária para quem é fã. Uma viagem analítica e apaixonada de amigos que se encantaram e se intrigaram por essa mulher extraordinária; que igualmente a nós, singelos leitores, buscam preencher incessantemente suas constantes insuficiências existenciais.

NOTA: 8,5

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

RESENHA DE LIVRO – MALONE MORRE


Se você costuma usar resenhas de livros como orientação e sugestão de leitura, creio que esta não lhe servirá de nada. Menos ainda atente-se à pessoalidade da nota inserida ao término da mesma. Sim, pois talvez eu tenha cometido o equívoco venial de começar a ler Samuel Beckett por este MALONE MORRE. Trata-se aqui de uma obra subjetiva e multifacetada, que embora eu aprecie bastante o estilo, esta me foi uma leitura demasiado esgotante.

A trama é narrada pela personagem do título; um homem velho, moribundo, aparentemente debilitado e preso a uma cama de um confinamento que pode ser um hospital, manicômio ou similar. O cara possui apenas sua visão limitada do quarto, uma janela com restrita permissão visual, alguns poucos pertences os quais ele usa um lápis para escrever sobre aleatoriedades e, acima de tudo, suas infindáveis incertezas.

Malone não sabe onde se encontra, muito menos sabe dizer qualquer coisa sobre si mesmo com plena convicção. Externaliza seus pensamentos de maneira desordenada e é exatamente isso o que resume a leitura de seus relatos: desordem e mais desordem. Encontrar instantes de coerência ou permissividade aqui é algo incerto, talvez impossível. Samuel Beckett mantém a linguagem hermética por toda a trama, não nos fornecendo nada e encerrando de forma igualmente enigmática.

Por toda a leitura eu tentei alcançar o escopo psicológico do narrador, um homem claramente desprendido de qualquer forma de absolutismo, condição geralmente compreendida por aqueles que se encontram em situações similares a da personagem: o flerte progressivo e determinante da finitude.

Seus relatos começam com certa lógica, mas logo descaem para o absurdo. Quando descreve lugares, pode-se intuir tanto como uma visão distorcida do ambiente como uma mera metáfora. É notório como praticamente tudo e todos são sofríveis, personagens em limites extremos, insanos, feios, excluídos. Outras vezes somos remetidos aos arquétipos propositais do narrador, ou suas lembranças nebulosas e pouco confiáveis, ou estamos mesmo diante da tentativa de se narrar a miséria do ponto de vista de um miserável do modo mais cru que já li na vida.

Por vezes eu tive que fazer pausas por imaginar que havia perdido o foco da atenção. Relia, muitas vezes, páginas inteiras já lidas e a desordem perdurava imponente na minha cabeça. Contudo, durante toda a leitura havia um elemento que jamais se afastava de mim: a noção da indigência do ser. Seja a indigência do próprio narrador, de suas desafortunadas personagens ou de nós leitores, determinados a seguir acompanhando com nossa precária falta de percepção do que nos é mais acessível: a condição da penúria.

Seja lá o que Samuel Beckett quer nos passar com seu MALONE MORRE, a mensagem incutida na obra certamente me escapou. O fato é que em nenhum momento a trama segura na mão do leitor; é como se ela nos dissesse: terás que percorrer sozinho o vale dos indigentes. E faltou-me maturidade para tal.

MALONE MORRE é uma leitura complexa e inclemente que até mesmo a gramática parece querer nos confundir. Não é inacessível, mas carece sobriedade e desprendimento. Difícil de ser recomendada por seu teor sugestivo e impossível de ser resenhada... Enfim, esqueça a minha nota de rodapé.

NOTA: 5,8