CONTOS - SUSPENSE

Neste espaço estarei postando alguns dos textos que escrevi ao longo dos anos.


A TESTEMUNHA DO MEU SUICÍDIO




E a arma insinuante em meu colo, erguida firmemente por minhas mãos até minha cabeça, precisamente um pouco acima da orelha.
Os dedos estavam tremeluzentes, e o indicador escorregou levemente pelo gatilho.

Mas ainda não houve o disparo. Era necessário um pouco mais de força.
Uma força que eu não tinha naquele momento. Então, convencido de minha própria fraqueza devolvi a arma para o colo, enquanto uma lágrima escapava de meus olhos, fazendo a gota percorrer pelo rosto até se espatifar no jeans que  estava usando.
Era sempre o mesmo ritual: eu colocava a mesma roupa, uma calça desbotada que eu insistia em usar, e uma camisa preta de banda de rock. Depois entrava no quarto sozinho, me sentava na cama próximo da janela, e ficava ali, aguardando a coragem escondida em algum canto dentro de mim.

E fora assim durante meses.

Até aquele momento em que eu novamente chorava com raiva de minha própria covardia, que inesperadamente ele apareceu na janela do meu quarto. Era um homem belo, o rosto fino, quase afeminado, os cabelos compridos e encaracolados. Ele me fitou com seus olhos cinzetos, como quem olha para alguém cheio de dúvidas.

Pensei que fosse um fruto de minha imaginação, ou quem sabe algum maluco que houvesse visto o portão do quintal aberto e entrado.
Mas a certeza que tive naquela hora, olhando para o estranho, era de que, assim como qualquer idiota que aparecesse no momento de meu limite, este também iria tentar me impedir; iria se sentir na obrigação de tentar me convencer á não me matar.

Eu estava redondamente enganado.

O homem sorriu de maneira meio travessa, e perguntou-me:
- Por que você não puxa logo esse maldito gatilho e acaba logo com isso?
Olhei para ele um pouco surpreso com seu inesperado comentário, e sentindo-me um pouco confuso, disse á ele que não conseguia.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos, depois voltou a falar:

- Imaginei que não!

Aquela certeza dele deixou-me maluco. Eu odeio quando as pessoas pensam que me conhecem. Voltei-me para ele, com a voz alterada:

- E quem é você? O que você ta fazendo aqui?

Novamente com uma aparência calma e confiante, ele dirigiu-se á mim, mas com um sorriso menos amistoso:

-Sabe, Audrey. Eu geralmente não costumo visitar pessoas que estão com uma arma na cabeça, afirmando pra si mesmas que irão se matar. Elas geralmente são covardes e não o fazem. Mas achei que com você seria diferente. Você não tem nenhuma razão pra desejar a morte, você simplesmente a quer.

Depois do que ele disse, eu fiquei um pouco mais curioso á respeito daquele sujeito. Ele falava com calma, parecia um bom homem, tinha um rosto honesto.

- Me desculpa, cara. Mas você não respondeu a minha pergunta. E á propósito, como você sabe o meu nome?

O homem fitava o interior do meu quarto, deixando claro que minhas dúvidas pouco lhe interessavam. Ele parecia disposto a decifrar-me atravéz da bagunça que era o interior de minha casa.
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- Você se chama Audrey Celleny, - começou ele- você tem trinta e dois anos, trabalha no ramo administrativo, adora ouvi músicas deprimentes, e possui uma enorme vontade em acabar com a própria vida. Esse último item em especial foi que me trouxe aqui.  

- E por quê? - perguntei.

- Como eu lhe disse, pessoas no mundo inteiro pensam em dar fim em suas vidas por diversas razões e problemas causados por elas mesmas. Traição, desilusão, drogas, baixa estima, perdas de coisas que julgavam ser especiais... Mas você - finalmente ele me encarou demoradamente - não tem nenhum problema. É um homem sadio, de boa aparência, não usa drogas, não teve nenhuma perda significante, não se importa com questões sociais, e tem dinheiro o suficiente. Então eu pensei comigo: essa eu quero ver.

Fiquei intricado. Por um momento, eu me esqueci do revolver no meu colo. Minhas lágrimas não rolavam mais. Quem Diabos era aquele sujeito na minha janela, parecendo estar interessado apenas em minha morte.

- Me diz quem é você! - voltei a perguntar.
- O nome do mensageiro nunca é importante. - ele devolveu.
- É claro que é importante! Você quer me ver morto, não quer? Então eu vou precisar saber o seu nome, pra poder assimilar em outra vida que você provavelmente foi algum tipo de jornalista interessado em assistir com exclusividade ao meu suicídio. Eu já posso até imaginar a manchete: "Homem dá tiro na própria cabeça, e repórter acompanha tudo de perto". - eu argumentava com firmeza, numa jogada para descobrir o que ele queria.

- Não sou repórter. - limitou-se ele em dizer.

Ja era muito tarde, passava da meia noite, e o homem aparentava ter todo o tempo do mundo. Comecei a me encher da cara dele, então resolvi adotar medidas um pouco mais drásticas:

- Quer saber, colega. Eu acho que não quero mais atirar na minha cabeça. Eu to começando a sentir uma vontade crescendo de meter uma bala é na sua cabeça... Ou me diz quem você é, ou não me responsabilizo pelos meus atos.

- Eu sou apenas um mensageiro.
- Que porra de mensageiro é você, meu chapa? Isso é alguma pegadinha? Me diz o seu nome agora, ou eu estouro seus miolos! - falei, a arma apontada na direção de sua cabeça. Ele continuou calmo feito um gatinho em frente á uma vasilha de leite:

- Por que você não experimenta apertar o gatilho, Audrey? Mas devo avisá-lo que as conseqüências poderão tirar toda a sua coragem pelo resto da vida. Eu só espero que depois você não me culpe por isso.

Não entendi exatamente o que ele quis dizer, mas fiquei preocupado com suas estranhas palavras. Mais ainda com a tranqüilidade com que ele lidava com a situação. Qualquer ser humano em sã consciência ficaria no mínimo hesitante com um revolver apontado para a cabeça, principalmente se o cara não for um maluco suicida. E ele não parecia nada com um.
Antes que eu pudesse voltar a dizer qualquer coisa, foi ele quem voltou a falar, ainda com o mesmo jeito tranqüilo que me deixava cada vez mais desconfortável:

- Se é tão importante assim pra você, eu direi.
Ufa! Finalmente, pensei.
- Meu nome é Asmodeus. Sou o mensageiro do submundo. Estou aqui pra lhe trazer uma mensagem, mas como você está preste á se matar, eu acho que a mensagem pouco importa agora não é mesmo? Então por que você não para de rodeios, faz um favor pra nós dois, e atira logo nessa sua cabeça?
- Asmodeus? Que porra de nome é esse?

Ele não disse nada. Ficou parado me olhando, calmo, sereno, como o expectador de um concerto.
Um concerto de morte.

Eu abaixei a arma novamente e olhei para ela. Era um revolver calíbre trinta e oito, prateado. O cabo de madeira impecavelmente lustrado, o metal reluzia. Um objeto digno de um colecionador. Não percebi o tempo que fiquei vendo a arma, nem o quanto aquele cara era ágil. Mas de repente, eu levei um enorme susto ao perceber que ele agora estava sentado bem do meu lado.
Me fitando com seus olhos da cor de uma tarde nublada.
Seu olhar sussurrando em minha mente:
"Atira! Vamos, cara. Atira!"

Meu corpo tremia de cima até embaixo, percorrendo por toda a espinha. Meu cabelo ficou todo arrepiado, e não sei nem se ele percebeu. Mas de uma hora pra outra sua presença me causou medo, angústia, parecia que eu estava queimando por dentro. Eu o ouvia fazer sugestões dentro da minha mente, mas a boca dele permanecia fechada.

- Pelo amor de Deus! Vá embora! - eu disse, não conseguindo esconder meu espanto.

"Quero ver você atirar primeiro!"

Ele fez um leve gesto erguendo a mão direita com a palma virada pra cima. Sem precisar me tocar eu senti uma força como a de um imã puxando minha mão com a arma até parar na altura de minhas têmporas. Eu senti o frio do metal encostar-se à pele do meu rosto. A pólvora do cano tinha cheiro de morte.

"agora aperta o gatilho, Audrey. Eu sei que você consegue."

Fiz um esforço enorme tentando manter a sanidade. Um nó sufocante se formou em minha garganta. O peito saltitando.
Pela primeira vez na vida, eu senti medo de morrer. E Asmodeus parecia a própria morte tentando cobrar de mim a alma que eu insistia em oferecer a ela. Foi nesse instante que eu me lembrei das palavras que ele havia dito. Então lutei contra o nó na garganta, e perguntei:

- Você disse que tinha uma mensagem pra mim. Diz-me qual é a mensagem, e depois eu atiro.

O homem hesitou por um momento. Depois sorriu. Tive a sensação de que havia acabado de me enfiar num beco sem saída com tal promessa:

- Eu tenho sua palavra? - ele perguntou.
- Sim, eu prometo. - eu disse. A arma pressionada contra o meu cérebro, sem que eu conseguisse abaixá-la.

Instantaneamente, meu quarto ficou quente, muito quente. Como se a casa estivesse cercada por labaredas gigantes de fogo. Comecei a sentir um cheiro estranho. Após alguns segundos imaginei que aquele cheiro fosse enxofre. Asmodeus ainda estava do meu lado, seus olhos não estavam mais cinzentos, e sim vermelhos como o inferno.

- Você foi esperto, Audrey. Pedindo para ouvir a mensagem que eu trouxe. Esse é o meu trabalho, como já disse. Portanto, você não precisava fazer um acordo comigo pra que eu te dissesse. Bastava apenas me pedir... Pois esse foi seu grande erro.

Eu estava sem palavras. Meu corpo estava suado, minha camisa colada ao corpo. Eu quis chorar novamente, e as lágrimas como a esperança fugiram de mim, recusando-se a descer. E satisfeito, ele começou a cumprir com sua parte em nosso acordo:

- Eu sou Asmodeus. Sou primogênito do inferno. O mensageiro da morte...

Eu não queria mais ouvir nada.
A arma colada em meu crânio.
Asmodeus continuou falando:

_ E para que a morte favoreça ao inferno, meu trabalho baseia-se em avisar aqueles que querem a morte, que ao se consumar o suicídio, sua alma passa á nos pertencer eternamente - ele se levantou e virou as costas, em desprezo - Eu teria lhe dito, mas você não quis sabe...

Notei de relance seu sorriso vitorioso. Havia ganho a alma de mais um idiota. Ele estava aqui para me alertar; cumprir com sua função. E eu, em minha grande ignorância, deixei-me levar por sentimentos impróprios que me deixaram indefesos. Deixei-me seduzir pela beleza encantadora daquele homem. Deixe-me cegar pela aparência.
Não percebi o óbvio...
Agora estava feito.
O quarto voltou a temperatura normal.
Um estrondo enorme se fez cortando o silêncio.
E o projétil parou sua viagem mortal no concreto da parede, após atravessar minha cabeça.
Talvez eu queime pra sempre no inferno, não sei...
E talvez o barulho... Tenha acordado os vizinhos.    
 
(Michel)



 
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O ÚLTIMO EXORCISMO




   (03 de setembro de 1980)


A bengala seguia na frente como se possuísse faro provocando certa sutileza no andar lento e desajeitado de Diácomo Lenny. Seus pés descalços percorriam o solo sagrado em busca de renovação, em busca de reencontrar-se com um tanto de sua fé á muito perdida...
Sua mente imaginava o quão deveriam ser maravilhosos aqueles vitrais decorados que um dia alguém que assistia a celebração ao seu lado, comentou serem perfeitos. Ou mesmo as belíssimas esculturas feitas de mármore que seus ouvidos atentos sempre captavam de bocas de pessoas estranhas sentadas ao seu lado, afirmando com veemência, maravilhadas diante de tamanha riqueza.
Mas para Lenny, visitar a catedral metropolitana de Vitória era algo além de apenas um simples vislumbre visual. A enorme igreja era o lugar aonde ele gostava de ir á procura de respostas.
Suas pernas cansadas finalmente encontraram algum repouso na primeira fileira de bancos vazios bem próximo á imagem de Jesus Cristo, a mesma imagem que um dia ele certificou de ter visto em um sonho. E Lenny soube disso após tocá-la demoradamente.

Os dedos sujos de Diácomo Lenny eram seus olhos, uma caracteristica bem diferente do sacerdote que um dia o expulsou da igreja temendo que ele fosse derrubar a imagem de nosso senhor. Lenny estava certo de que Cristo era o único que entendia perfeitamente de onde provinha sua visão. Não havia o porquê julgar um sacerdote que imaginava que seu Deus atenderia somente aos de visão perfeita...
Havia velas acesas no altar, ele soube disso, porque seu aguçado olfato servia-lhe como complemento para sua peculiar e diferente forma de enxergar o mundo. O cheiro da parafina derretida era inconfundível.

– Desculpe minha demora, chefe. – disse ele, olhando para o teto, os globos oculares completamente cinzentos e sem vida – É que tem dias em que não é fácil encontrar uma boa alma disposta em ajudar um cego á locomover-se pelas ruas.

A visão de Lenny era completamente embaçada. Ele conseguia apenas perceber formas distorcidas, manchas deformadas, borrões amarelados em locais muito claros, e negrume total em lugares sombrios...
Naquele instante ele via dois pequenos focos de luz descendo do teto em forma de cone. Provavelmente era a luz do Sol penetrando através dos vitrais. Mas Lenny preferia os interpretar como se fossem os olhos de seu “chefe”, voltados para si.

– Não posso demorar muito, chefe. O senhor sabe que não gostam de mim aqui dentro. E embora todos digam que a casa é do senhor, eles insistem que minhas roupas não são muito adequadas. Meus pés... Sabe... Eu gosto deles descalços, mas isso costuma incomodar as pessoas...

Certa vez, outro sacerdote da igreja expulsou Lenny da celebração das sete da manhã. Sim, porque seus pés tocavam o mármore do chão, e as pessoas não estavam á vontade com sua esfarrapada presença.
O velho Lenny tentou argumentar. Contou ao homem de Deus a verdade. Disse que seus pés eram partes de sua visão. Que para saber onde estava, era preciso sentir o lugar onde pisa, e fazer isso com os pés calçados era muito difícil...

– Por que você me chamou aqui, chefe? – perguntou Lenny, olhando fixamente para as duas manchas amareladas em forma de cone.

Nesse momento, os fachos de luz pareceram aumentar a intensidade. Uma ventania forte invadiu os corredores vazios da igreja. Lenny sentiu um cheiro de queimado, e deduziu que as velas haviam se apagado por conta da brisa forte.

Ele aguardou pacientemente pelo cessar do vento. Depois de alguns minutos, balançou a cabeça em sinal positivo, e afirmou com a mesma calma de seus gestos, em direção á luz amarela:

– Eu imaginei que ele houvesse retornado, chefe. Perdoe-me por ser grosseiro, mas o senhor sabe que eu fiz tudo o que estava ao meu alcance.

Súbito, a bengala levemente apoiada no assento escorregou e caiu no chão da catedral provocando um enorme eco no interior do recinto. Talvez fosse um sinal, pensou Lenny. Mas ele continuou firme com sua opinião contraditória:

– Ele é forte demais pra mim, chefe. O senhor sabe. Foi ele quem levou minha visão, ele arrancou de mim tudo o que eu tinha...

Uma pomba voou alvoroçada próximo á cabeça de Lenny. Ele ficou em silêncio ouvindo os estalos do bater de suas asas até o som desaparecer por completo porta afora.


– Eu tenho medo, chefe... o senhor sabe disso.

 


                (03 de setembro de 1980)


A leveza das pancadas do relógio de parede cortava o silêncio á cada segundo que se passava ao mesmo tempo em que torturavam os ouvidos de Arturo.
Ele estava sentado no sofá da sala, com os cotovelos apoiados nas pernas, os dedos apertando nervosamente uma cinta de couro em suas mãos.
No sofá de frente para ele, seus dois irmãos aguardavam junto consigo, igualmente impacientes.
Todos olhavam para o relógio de minuto em minuto, e em seguida voltavam a observar as escadas que levam para os dormitórios da residência dos Trumanns.

– Por que será que estão demorando tanto? – perguntou Arturo, agora passando uma das mãos sobre a testa para limpar o suor que minava insistente.
– Acalme-se Art. – respondeu o irmão mais novo – Os enfermeiros estão cuidando dela.

De repente, uma enfermeira surge descendo as escadas apressada, segurando uma bacia de água nas mãos. Ao notarem a presença da mulher, todos os três se levantaram de onde estavam sentados, ao mesmo tempo. Eles olhavam sua figura açodada, com olhares ansiosos, e expressões ávidas por noticias:

– Como ela está, moça? – questionou Arturo impaciente, percebendo que a mulher os ignoraria.
– Sua mulher se cortou de novo, senhor. Vamos ter que amarrá-la novamente, e aplicar outro sedativo. – concluiu a enfermeira, desaparecendo pela porta da cozinha.

– Eu vou subir. – disse Arturo.
– Fica calmo, cara! O Dr Saens disse que não queria familiares na presença dela. Pode afetar seu emocional, você sabe...
– Foda-se! Eu não vou ficar aqui esperando que minha mulher morra, enquanto um bando de médicos incompetentes fica andando de um lado pro outro e...
– Esse bando de incompetentes está tentando salvar a vida da sua esposa, Sr Trumann. – era a voz da enfermeira que retornava da cozinha – o senhor tem que permanecer aqui. Sua presença pode prejudicar ainda mais o estado emocional dela.
– O que vocês vão fazer?
– Já disse. Nós vamos sedá-la novamente. Sua esposa precisa voltar pro hospital.

A enfermeira apanhou algumas cintas de couro que estavam em cima do assento do sofá, e depois tomou a que estava nas mãos de Arturo. Em seguida, ela subiu de volta em direção aos dormitórios.
Assim que a mulher adentrou no quarto, as luzes de todos os cômodos começaram a enfraquecer...
Houve estranhos ruídos de pancadas pelas paredes...
Como se coisas se quebrassem pelo chão...
Então, uma voz grave começou a gritar palavras incompreensíveis...
Não era uma voz feminina, era rouca e rouca, mas Arturo teve a certeza de estar ouvindo sua esposa.

As luzes ficaram ainda mais fracas praticamente apagadas...
A voz começou a gritar obscenidades, xingava sempre aos berros...
Um cheiro de enxofre invadiu toda a casa...
A empregada da residência, que havia se prontificado á ajudar, surgiu enlouquecida saltando desajeitada pelos degraus da escada...

– Eu tenho que sair dessa casa!! Eu preciso sair daqui!!!
– Senhora Muggens! O que está acontecendo? – perguntou Arturo.

A mulher passou pelos homens aflitos na sala, e saiu pela porta gritando, e repetindo as mesmas palavras: que tinha que sair da casa onde trabalhou por doze anos.
Ambos ficaram por alguns segundos observando a loucura da empregada que desapareceu no meio da chuva.
Havia um cão parado próximo da porta agora escancarada...
Um animal enorme e negro...
Sentado sobre as patas traseiras...
Olhando dentro dos olhos de Arturo...

– Pra mim chega! Eu vou subir! – disse ele.

Antes que Arturo pudesse começar a subir, seus dois irmãos lhe agarraram pelos braços. E o conduziram de volta ao seu confinamento no sofá.

– Me soltem!!

Os gritos continuavam vindos lá de cima...
Arturo tentava se livrar do abraço de seus dois irmãos...
Subitamente os gritos graves tornaram-se finos e leves como uma valsa, e Arturo reconheceu a voz de sua esposa:

– Amor!! Socorro, amor! Ajude-me...
– Deixem-me ajudá-la!! – gritava o homem para seus irmãos lhe soltarem.
No mesmo instante, a voz voltou ao timbre grave e rouco. E falou precisamente alto e claro:
– Ela vai morrer, Arturo. Venha até aqui, ou vamos matá-la...

Arturo lutava para se levantar...
As vozes continuavam gritando e implorando...
A luz fraca...
O cão na porta começou a rosnar...
Os irmãos de Arturo assustados seguravam-no de todas as formas...
O barulho de objetos se quebrando no quarto...
 A voz de uma enfermeira em pânico foi ouvida pelos homens, dizendo que também queria sair de lá, que aquilo tudo era assustador...
Parecia o cume de uma interminável insanidade. Um revelar de atividades sobrenaturais, ou mesmo sem uma explicação plausível. E Arturo preso nos braços de seus irmãos, berrou com o timbre mais alto que sua garganta podia lhe permitir, enquanto uma lágrima rolava em seu rosto suado:

– Me soltem!!! È minha esposa que está lá!!!!!!  

 

                (Quatro dias depois)



– O Sr, fuma? Eu posso pagar-lhe um maço de cigarr...
– Odeio cigarros.
– Talvez o senhor esteja com fome. Nós podemos ir á uma lanchonete. Comeremos alguma coisa enquanto conversamos.
– O que o senhor quer exatamente?
– Meu nome é Arturo W. Trumann. Eu sou advogado. – disse o homem alto e elegante, erguendo a mão para o homem sentado na calçada. – me informaram que eu poderia encontrar o senhor Diácomo Lenny por essas redondezas. É o senhor, não é?
– Desculpe minha arrogância. Mas o que um advogado aparentemente bem sucedido como o senhor, pode estar precisando de um mendigo, Sr Trumann?

Arturo observou por alguns instantes os olhos cinzentos do mendigo. Pensou ser impossível haver a menor chance de visão neles.

– O que o faz pensar que sou bem sucedido?
– Sua colônia importada não mente tão bem quanto o senhor. E sua mão é fina e macia. Sinais de que você não tem muito contato com serviços braçais.

Arturo ficou impressionado com tamanho senso de análise do mendigo. Jamais imaginaria encontrar valores morais em uma pessoa que vive nas ruas.

– Fale francamente Sr Trumann; o que você quer de mim?
– É que...bem...é uma historia complicada. Eu gostaria que o senhor viesse comigo até minha casa pra que pudéssemos convers...
– Pois, como o senhor mesmo pôde notar, já está em minha casa, senhor. Portanto, fale o que quer...

Arturo olhou em sua volta. A calçada estava movimentada. As pessoas andando apressadas usando seus trajes de trabalho. Elas lançavam olhares rápidos com curiosidade em sua direção, provavelmente imaginando o tamanho da bondade de Arturo que só poderia estar ali com o intuito de ajudar um necessitado.

– É a minha esposa. – finalmente respondeu o homem usando terno, cabisbaixo. – ela está muito doente, senhor. Disseram-me que você poderia ajudar.
– Desculpe. Não entendo de medicina. Acho que o senhor sabe o caminho até o hospital mais próximo...
– Eu sei disso, Sr Lenny. Não estou precisando de um médico. Eu soube que o senhor possui qualidades... Especiais.
– O senhor andou ouvindo muita coisa á meu respeito, não é mesmo, Sr Trumann?
– O senhor é mais famoso do que aparenta, Sr Lenny.
– Qual é a natureza do problema de sua esposa?

Falar sobre assuntos nos quais não acreditamos é sempre algo muito difícil. E Arturo sentia-se ridículo todas as vezes que essa pergunta era feita. Mesmo diante de muitas provações que havia passado nos últimos dias, Arturo melindrava um certo incômodo ao precisar responder tal questão.
– Minha esposa – começou, ele, de forma acanhada. Um outro mendigo que estava na calçada próximo de Lenny, também aguardava atento pela resposta. Fato este que deixou Arturo ainda mais constrangido – precisa de um exorcismo. – concluiu finalmente, esperando que ambos os desafortunados começassem a rir descontroladamente.
O que não aconteceu...
Lenny manteve-se calado, o rosto pálido e entristecido. Seu companheiro também não riu. Este, talvez estivesse bêbado demais para entender a situação.

– Desculpe, Sr Trumann. – determinou, Lenny – Eu entendo a sua dor. Mas infelizmente não posso ajudar.



         (Dois dias depois)


  Dentro do quarto, um assistente observava pela última vez as gotas de chuva atingirem o vidro da janela, antes de abri-la em seguida, cumprindo assim as ordens de seu chefe. Um outro assistente permanecera próximo da cama onde uma mulher encontrava-se amarrada pelos pulsos e calcanhares. Na outra extremidade do quarto, sentado em uma cadeira, o padre Rosenberg parecia exausto. Seus cabelos estavam bagunçados, sua camisa completamente suada, e a respiração ofegante.
A mulher sobre a cama forçava as amarras em seus punhos e calcanhares como se quisesse escapar delas. Seus olhos estavam em brasa, sem a íris. Sua boca exalava uma fumaça estranha que cheirava a enxofre.

– Eu te expulso imediatamente, espírito maligno! – disse um dos assistentes, com a palma da mão erguida em direção á mulher.
Enquanto isso, o padre voltou a recitar algumas passagens em voz alta, com a bíblia nas mãos: 

– Esperei ansiosamente pela vinda do Senhor, Ele se inclinou para mim e ouviu o meu grito – lia, Rosenberg, sentindo dificuldades para falar. – Agora teu poder reina sobre mim!
– Padre. – gaguejou um dos assistentes – eu não sei o que o senhor pensa, mas o problema dessa mulher é algo que parece ir além de nossos esforços.
– Sua mãe está aqui conosco, Curti. A carne dela queima lentamente no inferno todos os dias – falou a mulher olhando para o rapaz. Sua voz era grave e parecia estar duplicada.
– Não dê atenção ao maligno, Curti. – interveio o padre – nosso senhor pede que você seja forte. Não preste atenção á esse que é o pai da mentira!
– E como você sugere que eu faça isso, padre? – questionou o rapaz – eu estou apavorado, senhor!!

Súbito, a mulher olhou fixamente para alguém que acabara de entrar pela porta.
– Eu vim ajudar, padre – era a figura um tanto assustada de Arturo, preocupado com o estado de sua esposa.
– Sua fé é bem vinda aqui, Sr. Trumann.
– Obrigado, padre. Eu pensei em unirmos nossas orações em busc...

A luz voltou a enfraquecer.
A mulher começou a se bater incessantemente...
Curti e o padre, agarraram-na pelos braços, tentando contê-la.
O marido parecia congelado ao se deparar com a visão tenebrosa de sua mulher...
– Não é nenhum de vocês que nós queremos!! – gritou a mulher com a voz ainda mais rouca, e ao mesmo tempo arrastada, ainda como se houvesse duas vozes falando ao mesmo tempo.
De repente, o criado da cabeceira começou a tremer violentamente...
Alguns objetos pequenos erguerem-se no ar...
O vidro da janela explodiu em milhares de caquinhos brilhantes...
Ambos os assistentes começaram a gritar desesperados...
Um dos braços da mulher soltou-se das amarras...
Ela agarrou o pescoço do padre com extremo vigor e força... – Não queremos vocês!! – repetiu a voz dupla da mulher, soltando saliva e bafo que atingiram o rosto do padre – traga-nos o cego! Ou não iremos embora!!

Ela cuspiu no rosto do padre...
Os objetos no ar, que se debatiam por todos os lados, caíram ao chão...
A luz voltou ao normal...
A mulher finalmente adormeceu...

             
 (Manhã do dia seguinte)



A nevoa branca que cercava os arredores da mansão dos Trumanns era intensa, e tinha cheiro de morte. Parado em frente ao portão principal, Diácomo Lenny não podia enxergá-la, mas a familiaridade do cheiro pútrido das trevas era inconfundível. Ele teve a certeza de ter ido ao lugar certo.
Em passos apressados, um serviçal veio até o encontro de Lenny, cumprimentou-o num aperto de mãos forte, depois o conduziu até o interior da mansão.

– O cão que está lá fora é de vocês? – perguntou Lenny, por conta de um rosnado feroz que ouvira quando passaram pelo jardim.
– Não, senhor. – disse o homem – Ele apareceu á alguns dias, mais ou menos quando a senhora Trumann adoeceu.
– Ele é um animal grande e negro?
– Sim... – assentiu o serviçal, achando estranho o comentário de Lenny sobre as características do cachorro, uma vez que suas ordens eram de ajudar á um velho recém chegado, a locomover-se pela casa em razão de sua cegueira.
– Você deveria dar um tiro nele. – sugeriu o velho – Não é um cachorro como outro qualquer.
– Sabemos disso, senhor. Meu patrão pediu a mesma coisa. Eu mesmo encarreguei-me de dar-lhe três tiros de espingarda. Mas parece que essa criatura não morre tão facilmente. A água que o padre jogou nele ontem surtiu mais efeito do que os meus tiros. Felizmente ele não atacou ninguém até agora. Fica o dia inteiro sentado em frente a casa, como se estivesse aguardando alguma coisa.
Lenny ouviu o relato do serviçal com a mesma postura calma e tranqüila de sempre. Como se já previsse tudo o que encontraria quando chegasse á casa dos Trumann.

– Ele estava aguardando a minha chegada. – falou o cego.   

– O senhor é nossa última esperança, Sr Lenny. O Sr Trumann está o aguardando em seus aposentos. – disse o serviçal, numa tentativa de mudar de assunto. O cachorro no jardim da casa de seu patrão era outra das muitas coisas estranhas que andavam acontecendo recentemente. E todos aqueles fatos sombrios o deixavam nervoso.

O velho tropeçou desajeitado enquanto subia a escada principal, uma queda certeira fora evitada graças ao serviçal que segurava firme em seu braço tentando o conduzir até o local onde seu patrão aguardava.
Lenny teve a sensação de estar entrando em um sarcófago tamanha era sua dificuldade em respirar. O ar parecia estar diminuindo a cada degrau em direção aos dormitórios da residência. E ele sabia o que teria que enfrentar quando chegasse ao seu destino...
Lenny estava prestes a confrontar com um antigo inimigo. Um adversário perigoso, o único mal capaz de abalar sua fé quase infalível...
O mal está lá...
Depois daquela porta...
E o velho Diácomo Lenny iria ter com ele...
Assim que o serviçal soltasse o seu braço...
E ele adentrasse sozinho no quarto maldito...
Na metade do corredor, Lenny ouviu o som de uma voz familiar. A mesma voz que o procurou dias atrás no centro da cidade.

– Graças a Deus!! – era Arturo, surgindo do outro lado do corredor com seus olhos brilhando num pequeno fio de esperança que ainda lhe restava – Muito obrigado por vir, Sr Lenny. O senhor é muitíssimo bem-vindo á esta casa!!
– Onde está sua esposa, Sr Trumann?
– E-ela está em nosso quarto.
– Leve-me até ela.


                                    
(O confronto)



Arturo estava novamente boquiaberto ao se deparar com a imagem da própria mulher em sua frente. Era simplesmente impossível, acostumar-se com aquela imagem funesta.
Ela parecia estar a cada minuto mais envelhecida. Estava de pé em cima da cama. Seus braços esticados para frente, e sua coluna estranhamente envergada para trás. Os olhos arregalados e o pescoço contorcido para o lado. Ela parecia estar paralisada. Dura como uma pedra.

– Abra as janelas. Exigiu, Lenny, ao notar a escuridão do local. – precisamos do máximo possível de claridade dentro do quarto.
– As janelas se quebraram ontem. Eu tive que pregar algumas tábuas no lugar.
– Então as retire.

Sem questionar, Arturo fez o que o velho lhe ordenou. Arrancou todas as tábuas que estavam pregadas na janela, em seguida foi até a cômoda, apanhou um terço, e uma bíblia, e os segurou firmes em suas mãos.

– O que aconteceu com o padre Rosenberg? – perguntou, Lenny, de pé, próximo da cama.
– Como sabe que Rosenberg esteve aqui?
– Ele me procurou ontem. Queria os meus conselhos antes de vir até sua casa.
– Minha mulh... quer dizer; essa coisa o atirou contra a parede. Ele está em um hospital. Seu estado é crítico. – Arturo pensou no quanto Diácomo Lenny deveria ser um homem entendido em assuntos sobrenaturais. Sua fama era aparentemente tão grande, que até mesmo padres, procuravam por seus conselhos.

Lenny ficou alguns minutos em silêncio. Ele parecia estar entrando em uma espécie de estado de meditação.

– Ela está em pé – disse Arturo – bem na sua frente, Sr Lenn...
– Fique em silêncio, Sr Trumann! Você poderá rezar caso seja um homem de muita fé. Do contrário, fique calado!
– Er... Desculpe. – indagou, Arturo. Ciente de sua inutilidade.

Lenny permaneceu imóvel por algum tempo...
Depois, ele começou a proferir algumas palavras, mas, em voz muito baixa, impossibilitando Arturo de compreendê-las.

– Agora deite-se, maldito! – disse Lenny, colocando a mão sobre a cabeça da mulher.
Lentamente, o corpo dela voltou a uma postura normal, deitando-se na cama em seguida.

Nesse momento, a atenção dela se virou na direção do cego. Ela o agarrou fortemente pelo braço, e o puxou até que ele ficasse á poucos centímetros de seu nariz.

– Você esteve se escondendo esse tempo todo, não é mesmo, seu velho covarde? – disse a mulher, a estranha voz grave havia retornado.
– Você vai soltar o meu braço agora, demônio!
– Você é o mendigo mais presunçoso da humanidade, Lenny. – disse a mulher, sorridente.
– Eu vim até aqui pra mandar você de volta para o inferno, seu maldito!! – desafiou, o velho.

Uma gargalhada aguda foi ouvida por todos os corredores da casa. A mulher manteve seu sorriso sarcástico, enquanto aceitava o desafio de seu adversário:

– É mesmo, Lenny? Isso é o que veremos!!

Ela soltou o braço do velho, e começou a se contorcer violentamente sobre a cama. Vários objetos voavam novamente por todos os lados. A porta do quarto se abriu, em seguida, fechou-se com força, se chocando contra o marco. Então ela voltou a se abrir, para depois bater com violência, outra, e mais outra vez...
Arturo completamente bestificado, despertou repentinamente para contemplar a bíblia, completamente em chamas em suas mãos. Assustado, ele a jogou para longe.

A mulher gritava como uma criatura horrenda...
Lenny retirou um pequeno pedaço de papel de seu bolso...
Ele segurou firme a testa da mulher...
E começou a ler algumas palavras em uma linguagem desconhecida...

Os objetos que voavam pelo ar, começaram a ser jogados de encontro ao corpo dos dois homens no quarto. As pancadas eram fortes e causavam ferimentos nos locais que atingiam.
A mulher também devolveu algumas palavras estranhas com seus urros violentos. Lenny foi erguido no ar como se alguma força o levitasse, depois foi fortemente arremessado contra a parede. Ali ele ficou preso, como se estivesse pregado. Os braços abertos, o corpo reto, próximo do teto, como um crucifixo humano.
A mulher olhou para ele, pregado na parede. Seus olhos á transmitirem trevas mordazes.

– Sabe por que você está aqui, Lenny? – perguntou a mulher, sentando-se na cama. – você está aqui para ajudar aquele que foi sua verdadeira desgraça.

O rosto de Lenny estava amassado, como se uma força estivesse prensando-o contra a parede.
– Mas você é cego, não é mesmo? – continuou a voz de dentro dela – não pode ver a quem está colaborando com esses seus métodos pré-históricos. Permita-me ajudá-lo com este pequeno detalhe.

Súbito, um rápido sopro bateu no rosto de Diácomo Lenny, fazendo com que sua visão retornasse num piscar de olhos.
O cenário foi lentamente se desenhando perante a visão ressuscitada de Lenny. O velho ficou embevecido, tamanha era a lugubridade, o deixando totalmente entorpecido.
Objetos quebrando-se por todos os lados...
Paredes completamente sujas e descascadas...
Uma criatura deformada em cima da cama. Quase não lhe restara traços que a identificasse como uma mulher...
E no canto do quarto...
Lenny pôde pela primeira vez, olhar nos olhos encolhidos de um homem apavorado. A quem ele estava ajudando...

– Você pode ver agora, Lenny? – falou a mulher – Olhe bem para os olhos daquele que você tem misericórdia.
– Eu me lembro de você. – disse o velho – É o advogado que minha esposa procurou alguns meses antes dela morrer.

Arturo observava Lenny preso junto á parede assustado. Ele permaneceu em silêncio, sem confirmar ou desaprovar o recém comentário.
– Pelo menos sua memória ainda funciona, velho. – disse a mulher com um sorriso sarcástico no rosto – vamos, Arturo. Conte-nos uma história. Diga-nos o que aconteceu na noite em que Ângela Lenny morreu carbonizada dentro do seu escritório.

Lenny mudou sua expressão de espanto. Ele agora olhava para Arturo com expectativa e curiosidade.

– E-eu não sei do q-que você está falando... – disse Arturo, hesitante.
– Diga a ele, Arturo. – insistiu a mulher – Conte tudo o que você sabe. Ou não iremos embora desse corpo.
– O que você está tentando fazer, espírito maligno?? – gritou, Lenny. Certo de que aquilo tudo não passava de uma armadilha do demônio.
– Eu quero testar sua capacidade de perdoar, Lenny. – trovejou a voz da mulher – Você se acha um soldado de Deus? Veremos se você é digno deste título...
– Por favor!! – gritou, Arturo, os ferimentos causados pelos objetos arremessados contra seu corpo cada vez mais intensos – Faça parar!!
– Fale toda a verdade, Arturo! – exigiu a mulher – Ela vos libertará! Faça isso, ou não deixaremos sua esposa!

Nesse instante, a mulher travou novamente como se estivesse petrificada. Os objetos no ar cessaram. Lenny caiu no chão enfraquecido, estava cego outra vez. Arturo desabou em pranto, descontroladamente.

– O que você sabe sobre a morte da minha esposa, Arturo?
– Sua mulher e eu – meio soluçante, Arturo começou a contar – éramos amantes. Ela havia recebido a noticia de uma antiga herança, e nós combinamos de fugir quando ela recebesse o dinheiro...

Lenny ficou boquiaberto enquanto escutava coisas horríveis sobre o passado de sua falecida esposa. Não era fácil para Lenny crer que sua doce mulher tivesse tido um amante, e tão jovem. A senhora Lenny sempre fora vista pela sociedade como uma mulher de respeito. Se fosse em outras circunstâncias, talvez ele sequer acreditaria naquelas revelações devastadoras.

– Acontece que eu sempre amei minha esposa. – continuou, Arturo. – mas Ângela estava ficando cada vez mais obcecada em nosso relacionamento. Ela era muito insegura por ser bem mais velha do que eu. Começou a fazer-me ameaças, dizendo que revelaria tudo para minha esposa se eu desistisse de nosso caso. Com medo disso, eu agüentei por mais algum tempo. Na manhã em que conseguimos a liberação da herança na justiça, eu a convenci de depositar todo o dinheiro em uma conta que abrimos fora do país. Na noite daquele mesmo dia, paguei alguns vagabundos para colocarem fogo no meu escritório, com ela amarrada dentro dele...

O mundo de Diácomo Lenny desabara. Suas forças estavam sendo minadas á cada palavra de saia da boca do homem que ele tentava ajudar. Revelações que Arturo pensou estarem enterradas pra sempre junto com a alma de Ângela Lenny, voltavam para assombrar sua mente, enquanto numa estranha ironia, Lenny parecia estar sendo ajudado pelo próprio demônio... E naquele momento, o velho cego não saberia mais definir quem era o demônio de verdade.

Ele permaneceu em silêncio, como se tentasse digerir aquele golpe doloroso...
A mulher possessa mantinha-se imóvel sobre os lençóis rasgados...
Nos olhos de Lenny, apenas escuridão em forma de manchas...
O clique de um revolver sendo engatilhado foi ouvido pelo velho...
Arturo balbuciou com sua voz trêmula e hesitante em seguida:

– Eu sinto muito que as coisas tenham que terminar dessa forma, Lenny. Mas eu prometo que isso tudo acaba agora. Eu só tenho mais uma vida pra tirar...

O disparo foi alto e seu eco pôde ser ouvido por todos os cantos da casa...
O serviçal invadiu o recinto ás pressas...
Sobre a cama, uma mulher cujo rosto retornava lentamente á sua bela forma natural...
No chão do quarto, de um lado da cama havia uma alma parecendo confusa e perdida. Do outro, um corpo jazia sem vida com o crânio perfurado...

           



                              (Duas semana depois)



    O barulho das ondas se quebrando na orla da praia penetrava deliciosamente até chegar ao íntimo de Suzana Trumann. Seus pés descalços afundavam levemente na areia fresca do fim da tarde.
Os cabelos loiros e volumosos da mulher alvoroçavam-se com o vento, proporcionando ao homem que caminhava ao seu lado, um delicioso cheiro de orquídeas. Apoiado em seu braço ele percebia a maciez e frescor da pele dela em contato com a sua...

– Conte-me como foi que você perdeu sua visão, Sr Lenny. – pediu Suzana ao seu companheiro de passeio.
– Foi á dez anos. – respondeu ele – Durante meu primeiro exorcismo. Era um jovem adolescente. Estava á dias possuído...
– E você conseguiu salvá-lo como fez comigo?
– Consegui. Mas desde então esse demônio tem me perseguido. Ele persiste, como se viajasse de um corpo para o outro...
– Ainda bem que eu tive você para me salvar...
– Foi um grande prazer, fique certa disso. Eu soube que você tem visitado o padre Rosenberg no hospital. Como ele está?
– Se recuperando muito bem. – exaltou-se ela – Os médicos disseram que Rosenberg não morreria tão facilmente. É teimoso feito uma mula...
    Os dois riram descontraídos com comentário. Alguns minutos depois. Suzana voltou a falar, enquanto vislumbrava a beleza das luzes do sol, se escondendo no oceano:

– Eu apenas lamento muito por você não poder enxergar este lindo por do sol.
– Não vejo com meus olhos, Sra Trumann. Mas fique certa de que desfruto de toda a magia e intensidade desse mar. A beleza também pode ser sentida...
– Acho que você está certo. – assentiu ela.
– Disseram-me que a Senhora tem um rosto lindo. Uma pena eu não ter tipo o prazer de vê-lo naquela manhã.
– E pode apostar que ele está bem melhor agora. – eles riram novamente.
– Por falar naquela manhã. Eu posso lhe fazer uma pergunta, Sra Trumann?
– É claro, Sr Lenny.
– Por que Arturo levou uma arma junto com ele, durante a sessão de exorcismo?
– O serviçal de nossa casa, confessou-me que Arturo tinha você como sua última esperança, e que se o exorcismo desse errado, ele atiraria em mim...
– E o que será que o fez mudar de idéia e atirar na própria cabeça?
– Vai ver a vergonha tivesse sido demais para ele...
– Seu marido não parecia ser um sujeito que carregava muito arrependimento consigo, Sra Trumann.
– O remorso é um sentimento que mata aos poucos, Sr Lenny. E por favor, me chame de Suzana.
– Como quiser Sra Tr...quer dizer, Suzana.
– O que você vai fazer agora que é um homem rico, Sr Lenny?
– Olha, Suzana. Eu respeito seu interesse em devolver o dinheiro que pertenceu a minha esposa, mas esse dinheiro é sujo. Eu o vejo como um dinheiro amaldiçoado...

Suzana olhou para o rosto do velho cego. Ele estava se segurando, preste a explodir. Então, ambos caíram outra vez na gargalhada.
– Ta bom, eu confesso: estou super animado para fazer aquele passeio que você sugeriu, Suzana.
– Então deixe comigo. Irei cuidar de todos os detalhes, Sr Lenny.
– Tudo bem. – concordou Lenny – Mas só com uma pequena condição.
– O que você quiser, meu amigo.
– Sempre quis ter uma filha. Seria problema se eu lhe pedisse pra me chamar de pai?
– De maneira nenhuma...pai.  


(Michel)



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