terça-feira, 1 de julho de 2025

RESENHA DE LIVRO – TALVEZ VOCÊ DEVA CONVERSAR COM ALGUÉM

Embora nunca se tenha descoberto a parte inconsciente da psique humana, filósofos, romancistas e até os Vedas – texto sagrado indiano – já discorriam sobre a parte obscura da mente, há mais de mil anos. Sigmund Freud marcou seu nome na história ao identificar que os sintomas neuróticos eram mensagens inconscientes de conteúdos reprimidos, então ele criou a cura pela fala, que revolucionaria a interação entre paciente e o analista.

Funcionando como um processo de exploração e compreensão, a terapia, nos tempos modernos, é uma instância na qual paciente e terapeuta trabalham juntos para identificar e resolver problemas. Mas apesar de comprovadamente eficiente e produtiva, os diferentes métodos terapêuticos ainda são vistos com desconfiança por grande parte da sociedade, basicamente por considerarem ineficaz ou nutrindo certo preconceito perante questões psíquicas.

Nesta obra envolvente e profundamente humana, Lori Gottlieb nos convida a adentrar os bastidores da psicoterapia, com uma honestidade ímpar e, proporcionando ao público que desconhece a prática, seus valores, benefícios e fazendo cair por terra estereótipos enganosos criados pelo senso comum.

Alternando entre sua função de terapeuta e também se submetendo à terapia, a autora constrói uma narrativa que quebra o estigma de que profissionais da saúde mental são imunes às próprias dores emocionais. Gottlieb, ela própria, é a protagonista da trama, cuja condução em primeira pessoa discorre, com humor, empatia e um olhar clínico, todas as fragilidades humanas. A trama equilibra de modo eficiente os relatos dos seus pacientes, com a própria jornada emocional da autora, que após o inesperado término de seu relacionamento, resolve acatar a sugestão de uma amiga de que “talvez devesse conversar com alguém”. Temos então um conteúdo abrangente que escancara porta e janela do set terapêutico para que conheçamos um pouco mais sobre como funciona esse tratamento.

TALVEZ VOCÊ DEVA CONVERSAR COM ALGUÉM é um livro que se destaca por tornar acessível os conceitos da psicologia clínica sem simplificá-los, conectando teoria e prática por meio de histórias reais e impactantes, algumas quase me trouxeram lágrimas, é uma leitura que humaniza tanto terapeuta quanto paciente e, sobretudo, ressalta o poder curativo por meio da escuta e do diálogo.

A protagonista e autora foge do clichê da profissional excelente e distante, que olha para os pacientes como se fossem seres inferiores pela ausência dos conhecimentos que detém. Não…, Lori Gottlieb é uma pessoa real, cheia de dúvidas, dores e contradições, quebrando o mito de que terapeutas são figuras inalcançáveis ou sem problemas.

Outro ponto forte é quanto a desmistificação da prática terapêutica. O livro mostra o que realmente ocorre durante uma sessão de terapia, desfazendo a imagem errônea de que se trata de um mero desabafo do paciente. A autora traz à tona valores éticos verdadeiros do processo clínico.

TALVEZ VOCÊ DEVA CONVERSAR COM ALGUÉM é uma excelente obra, cuja linguagem acessível e histórias cativantes aproximam o leitor do universo da saúde mental, sem tornar o tema medíocre. Em um mundo onde o sofrimento recorrentemente é silenciado, o livro é uma ode às emoções humanas…, da tristeza à raiva, da solidão à ansiedade, são experiências legítimas e tratáveis.

NOTA: 🔟😍

sábado, 14 de junho de 2025

RESENHA DE LIVRO – O DEMÔNIO DO MEIO-DIA

No contexto do Salmo 91 da bíblia, especificamente os versículos 5 e 6, o “demônio do meio-dia” é citado como expressão que pressupõe uma forma de manifestação do mal, que pode atacar e causar danos, mesmo em plena luz do dia. Quando Santo Agostinho disse que a razão era o principal atributo que nos distinguia dos outros animais, logo se compreendeu que a ausência da razão era sinal de desconsideração divina. Ou seja, a perda da razão seria uma punição de Deus incutida aos homens. Á partir dessa premissa, interpretações foram dadas por clérigos, como por exemplo, o enforcamento de Judas após sua traição, seria em decorrência do afastamento de sua alma do sagrado, Deus teria incutido nele melancolia e arrependimento, por isso ele se matou. Sendo assim, todo suicida seria alguém afastado do favorecimento divino, pois todo melancólico seria como Judas.

Portanto, ainda sob o olhar do contexto religioso, é preciso desvendar o nome do demônio que habita o ser humano, e somente através dessa descoberta será possível exorcizá-lo. Em tempos antigos a depressão ainda era um demônio inominado, então era conhecido como o demônio do meio-dia.

Este excelente trabalho do escritor Andrew Solomon, faz uma minuciosa autópsia de um dos maiores males que assola a humanidade, em especial a sociedade pós-moderna: a depressão. Como explicita o subtítulo, este livro é uma verdadeira anatomia sobre a depressão. O autor aborda muitas particularidades da doença, os tabus que ainda enfrenta, preconceitos e suas repercussões biológicas, culturais, médicas e históricas.

A obra está dividida em doze capítulos, cada qual com sua abordagem específica do tema em questão, tais como colapsos, tratamentos, alternativas, vício, suicídio, história, política, evolução, entre outros, analisa cada temática com um trabalho grande de pesquisa e de campo, feito pelo autor, que também sofre da doença e, de forma corajosa, expõe-se como complemento interpretativo.

O estilo textual é bem acessível, apesar de a obra conter muito levantamento estatístico e estudos acadêmicos, Solomon utiliza uma linguagem simples e fluida, sem se apegar a jargões técnicos ou pedantismo literário. É como se o livro fosse propositalmente feito para quem busca uma luz na escuridão da doença; O DEMÔNIO DO MEIO-DIA foi desenvolvido para acolher e amenizar as dúvidas daqueles que sofrem de depressão.

Alguns capítulos são interessantíssimos, pois apontam o problema da depressão de pontos de vista distintos ou mesmo ignorados por especialistas. Com a intenção de descortinar as mazelas em torno da depressão, o autor faz uma longa pesquisa através de cenários desesperançosos, complexos e até nocivos, como a falta de políticas públicas de conscientização e combate à doença, a falta de ética da indústria farmacêutica que tira proveito da complexidade da doença para vender remédios, o sofrimento da população mais pobre que, apesar de a depressão ser uma doença equitativa, suas consequências são inevitavelmente piores aos doentes que vivem em condições precárias de subsistência, e a história da depressão, muitas vezes mal interpretada, tomada como castigo divino ou tratada com métodos ineficazes.

Um ponto que me chamou muito a atenção, logo no início da leitura, foi a honestidade e sensibilidade com que Andrew Solomon trata a depressão. No primeiro capítulo, intitulado “depressão”, imediatamente o autor retirou de mim um estereótipo que carregava sobre a doença, ao afirmar que “a depressão é a imperfeição no amor”. Sempre achei que a definição mais abrangente para a depressão fosse “uma tristeza profunda”. Mas ao dizer que a depressão é a ausência de amor em todas as esferas, de cara o texto criou uma ruptura no meu modo leigo e até irresponsável de falar sobre algo que não compreendo:

“Para podermos amar, temos que ser criaturas capazes de se desesperar ante as perdas, e a depressão é o mecanismo desse desespero. Quando ela chega, degrada o eu da pessoa e finalmente eclipsa sua capacidade de dar ou receber afeição (…). Embora não seja nenhum profilático contra a depressão, o amor é o que acolchoa a mente e a protege de si mesma (…). Quando estão bem, alguns amam a si mesmos, alguns amam outros, alguns amam o trabalho, e alguns amam a Deus: qualquer uma dessas paixões pode fornecer o sentido vital de propósito que é o oposto da depressão”. (pág.15)

O DEMÔNIO DO MEIO-DIA é mais do que uma análise sobre a depressão, é também um texto autobiográfico com ampla sustentação na literatura e em relatos variados de pessoas que sofrem com essa doença. É um retrato vívido e corajoso, construído de dentro para fora, ou seja, a partir da experiência própria do autor.

NOTA: 🔟😍

terça-feira, 27 de maio de 2025

CRÔNICA – BIBLIOFILIA

Há alguns anos, contratei o serviço de marcenaria para modificar minha estante de livros. Enquanto fazia suas medidas e anotações, notei que o profissional olhava ao redor, para minha querida e modesta coleção de volumes. Resolveu puxar assunto:

– Você gosta de filosofia?

– Além de outros temas... – respondi, meio surpreso, pois esperava outro tipo de abordagem – Também adoro ler sociologia, história, mas o romance é o meu gênero favorito.

– Um rapazinho que trabalha comigo também curte filosofia, – disse ele, enquanto esticava a fita métrica na parede – vive bancando o pensador lá na oficina, sempre tem um conselho ou opinião sobre as coisas da vida.

– Ele deve gostar de ler – supus, e tentava decifrar se aquele comentário dele seria uma observação despretensiosa, ou se levantava uma hipótese de que toda pessoa que gosta de ler é um chato que adora meter o bedelho na vida alheia, visto que ambas hipóteses são absolutamente plausíveis.

Após outra anotação de medidas, ele pousou as duas mãos na cintura, olhou ao redor do escritório, e concluiu:

– Antes de chegar aqui eu achava que sim. Mas agora que estou diante dessa quantidade toda de livros, estou certo de que, de fato, meu colega até aprecia leitura. Mas obsessão de verdade deve ser o seu caso.

Foi a primeira vez em que alguém reparou nesse meu amor irrecuperável. Envaidecido, concluí que havia contratado o profissional certo (o resultado do serviço provou que ele não era, mas isso não vem ao caso), afinal, ele sabia que teria de caprichar na ampliação da estante. Porque é fato que todo amante quer sempre o melhor para o objeto amado.

– Geralmente não é isso o que as pessoas dizem quando veem meus livros pela primeira vez – comentei, sentindo-me o maior leitor do mundo – mas obrigado.

– E o que elas dizem?

– Basicamente fazem duas perguntas: se eu já li todos esses livros, e se eu gosto de ler.

– Bom, a primeira pergunta é até aceitável, já que quase ninguém lê livros nesse país. Contudo, a segunda pergunta me parece meio óbvia, né?

– Acho que as pessoas costumam perguntar coisas óbvias, porque precisam de algum tempo para assimilar aquela realidade a qual se está confrontando.

Não foi preciso muito para ele concluir que não fazia nenhum sentido comprar livros simplesmente para encher prateleiras. Geralmente um pseudo intelectual compra livros para deixar sua estante cheia e, através disso, parecer erudito aos olhos dos outros; enquanto um leitor de verdade precisa comprar estantes para guardar seus amados livros. Parece se tratar de dois casos semelhantes, mas há uma grande diferença aqui.

Precisei dos serviços de marcenaria, justamente porque meus livros já não estavam a caber nas antigas prateleiras, então tive que repensar o ambiente, arranjar mais espaço. Sim, pois meus livros amontoam-se cada vez mais, e creio que essa rotina de aquisição de novas obras só terá fim quando eu morrer.

O historiador português João José Alves Dias definiu como bibliófilo aquele sujeito que ama os livros. Encontrei o termo por acaso, enquanto fazia uma pesquisa sobre as maiores bibliotecas do mundo. Antes disso, eu não sabia que existia uma definição para essa obsessão que me é característica; contentava-me com a classificação de amante de livros.

Talvez a condição de se gostar tanto de algo ou alguém, deriva de experiências positivas que vivemos. Não acredito na ideia de amor à primeira vista, isso está mais para uma paixão, e como tal, tem prazo de validade. Ou seja, foi preciso que houvesse uma relação transformadora de longa data para que nascesse este bibliófilo que voz escreve.

Eu era muito jovem, vivendo numa década de noventa onde as mudanças culturais aceleravam-se, e as novas tecnologias surgiam como se fossem alienígenas que vieram de muito longe para nos proporcionar avanços significativos na vida cotidiana. Minha maior característica nessa fase foi a timidez; era um jovem muito fechado, passava grande parte do meu dia, sozinho, ouvindo música no rádio ou lendo gibi. Os instantes em que interagia com outras pessoas era na escola ou nas partidas de futebol no meio da rua. Amigos? Quase nenhum, sempre preferi fazer minhas coisas sozinho..., às vezes isso me incomodava um pouco, então para escapar dessa realidade solitária, minha mente criava diversos amigos imaginários, os quais preencheram minha juventude.

Pois numa tarde enfadonha de sábado, estava deitado no quarto, sem nada pra fazer, olhando as manchas na parede, formadas pelo desgaste. Então reparei na cabeceira da cama do meu irmão mais velho, um livro de autoajuda chamado O Poder do Subconsciente.

Vou dar uma olhada nisso, foi o que pensei, já que não tinha mais nada pra fazer mesmo – naquela época não havia internet, tampouco os modernos smartphones, quase nada para nos distrair da rotina enfadonha – Portanto, aquele livro esquecido no quarto, passou de uma opção improvável para um “não custa tentar”. Mal sabia eu que estava vivendo o instante que seria o divisor na minha vida: o fim de uma etapa completamente desprovida de entusiasmos, para iniciar uma nova fase onde os livros se tornariam meus companheiros inseparáveis.

Não exagero quando digo que os livros salvaram a minha vida. Porque conheço bem a melancolia que espreita minha existência, e os pensamentos destrutivos que me acometiam nos dias de profundo desalento..., a leitura servia como um método de apreciação contínuo da vida.

Através dos livros aprendi a ter maior concentração, melhorei a dicção e aumentei meu vocabulário, adquiri o prazer pelo desenvolvimento de longo prazo, aprendi a ser mais paciente, descobri pessoas incrivelmente sábias, conheci culturas distintas, impressionei-me com a engenhosidade dos criadores de mundos…, seja para o bem ou para o mal, compreendi a leitura como uma plataforma de conhecimento inesgotável…, também chorei perante descrições sensíveis que desnudam a alma humana.

Os livros entraram na minha vida naquela tarde cheia de tédio e dela nunca mais saíram. Aquele singelo volume sobre a cabeceira, desprezado, ignorado por todos, inclusive por seu proprietário. Meu irmão nunca teve interesse em ler, mas na sua cabeça de jovem cheio de hormônios, pairava o interesse em seduzir garotas. Então ele andava pra cima e pra baixo com aqueles livros de autoajuda (o gênero estava na moda naquela época), porque isso o fazia parecer um rapaz distinto, intelectual. Ao que parece, isso atraía a atenção das garotas..., bons tempos aquele.

Foi também por influencia dos livros que adquiri o gosto pela escrita, quase como um inevitável destino. Mas confesso que gosto mais da palavra bibliófilo do que escritor, pois soa pedante. Fato é que, independente de haver um termo que defina minha relação de amor com os livros, talvez para além dessa definição romântica sobre um hábito, o que exista seja algo mais ordinário, apenas um costume que foi praticado até se tornar uma recorrência inevitável. Afinal, não sou especial porque leio, mas os livros sim, são especiais por conseguirem atrair o interesse do mais desinteressado sujeito, entediado naquele quarto de paredes desproporcionais, e o transformá-lo neste orgulhoso bibliófilo…

sábado, 3 de maio de 2025

RESENHA DE LIVRO – MAR DE TELHAS

Nos tempos em que literatura era pedantismo burguês e seu pleno acesso um privilégio de poucos, as histórias e fábulas geralmente terminavam com casais heroicos vivendo felizes para sempre. Se fossem narrativas menos fantasiosas ou, no mínimo, intencionadas em desnudar a verdadeira natureza das relações humanas, haveria mesmo espaço para serem felizes no final?

A escritora e jornalista Mariana Lozzi surgiu no meu percurso de leituras sem pedir licença, e escancarou a realidade, digamos, menos palatável do ser humano; deixou explicitado que não existe um passado idílico ao qual podemos retornar para que sejamos mais felizes. Só o que nos é possibilitado é a crueza de nossa natureza, cuja banalidade muitas vezes será obscurecida por instintos mais primitivos e indecorosos.

MAR DE TELHAS é uma obra singular que consegue, de maneira generosa sem deixar de ser suave, dialogar com o leitor. Uma narrativa que possui frescor trágico, quase como um sopro após a palmada, dimensões que ligam, por camadas enevoadas, a autora, a mãe, o pai, o filho e o leitor. Pode ser que algumas dimensões mais fortes desses seres nos levem a lapsos de memórias em comum.

Na trama, três membros de uma família dividem as páginas dessa meticulosa trajetória (há um quarto membro, mas que nos abandona logo nas primeiras páginas), na qual uma família compartilha excentricidades, comunga o absurdo e idolatra o tédio; a mãe, cujo casamento nublou os instintos mais primitivos ou se livrou de influências que lhe soavam mais características; o pai que do alto da sua mediocridade procura um modo de fazer dessa abundante banalidade uma forma de manter seus afetos distantes da natureza repulsiva; e temos o filho, menino quieto e delicado, que parece não encontrar sentido em sua existência, por isso vive em silêncio sepulcral, talvez por temer certa familiaridade com os seus, ou por mero desencaixe.

A evolução da leitura é prazerosa, segmenta-se por capítulos curtos, de linguagem fácil, porém, não menos delicada, muitas vezes comunga de um trejeito regional, alguns instantes me fizeram lembrar grandes escritores, como Graciliano Ramos. Temos aqui uma narrativa cuja beleza se sustenta em seu encruamento, o foco está sempre no ser humano. O resto é apenas pano de fundo.

Mariana Lozzi enriquece seu texto por meio de uma compreensão ampla não apenas de sua própria reflexão intelectual sobre os fatos, mas também estimula o desenvolvimento do apreço pela problematização de questões que não foram analisadas profundamente por suas personagens (recurso que é apreciável, visto que deixa esta tarefa para o leitor). Seu texto não visa docilizar os corpos para narrar cidadãos integrados ao sistema vigente, mas despertar no leitor a capacidade de pensar por conta própria sobre todos os problemas e questões que afloram no cotidiano.

 Os subcapítulos curtos se mostraram um caprichoso problema. Conforme eram modestos em extensão, eu sentia falta de mergulhar um pouco mais na vivência de cada indivíduo. De qualquer forma, a autora dedica um capítulo exclusivamente a cada uma de suas personagens, cujas vivências possibilita a inserção de outras personagens que igualmente seriam interessantes de se ler, e nos deixa familiarizado com a tragédia daquela singela família, a qual poderia se estender geracionalmente, como fez Gabriel Garcia Marques em seu notório Cem anos de Solidão.

MAR DE TELHAS é uma tragédia pós moderna no sentido mais grego do termo, narrado de um modo sensível, honesto e quase poético. Não convida à uma épica jornada instrumental, mas nos joga para dentro daquilo que talvez nos seja mais familiar: o lado grotesco e surreal do inconsciente humano.

NOTA: 9,08

segunda-feira, 21 de abril de 2025

RESENHA DE LIVRO – HISTÓRIAS ÍNTIMAS – sexualidade e erotismo na história do Brasil

Um dos reducionismos mais atrozes que assombra a história e a ciências humanas é o completo e suspeito silêncio acerca do pensamento feminino e da mulher como pensadora. A grande maioria dos documentos oficiais, manuais de orientação comportamental e jornalístico, assim como a própria literatura, todos foram escritos por homens, e quase todos eles tratam os temas femininos exatamente como o senso comum e vulgar de sua época. Ou seja, sempre foi relegado ao homem o desenvolvimento da história…, mas a exclusão do feminino trouxe prejuízos para a construção do conhecimento.

Desse modo, quando se entra na esfera da história da intimidade sexual, o cenário é ainda mais opressivo, relegando à mulher a condição de mero receptáculo gestatório ou diversão libidinal, condição das plebeias que não conseguiram um casamento arranjado. É o que relata a própria Mary Del Priore, autora deste excelente HISTÓRIAS ÍNTIMAS – sexualidade e erotismo na história do Brasil: “o historiador pouco sabe sobre como se comportavam, na cama, homens e mulheres” (pag. 77). Só o que resta fazer é mergulhar profundamente em documentos da época em que se estuda, verificar anotações de religiosos, tratados médicos, pinturas e poesias, mas principalmente, os meios de comunicação; e exatamente como mencionado, são instâncias perpetuamente dominadas por homens. Portanto, a história da sexualidade brasileira, e por que não dizer a história da sexualidade mundial, é uma história essencialmente misógina.

Del Priore encarou o desafio e tentou abranger, da colônia ao império, os aspectos da intimidade na história brasileira. Divido em cinco capítulos, a obra aborda os séculos XVI, XVII e XVIII, intitulado de “O século hipócrita”. Depois vem o século XIX como sendo a “Primeira rachadura no muro da repressão”, passando pelas primeiras décadas do século vinte “Olhares indiscretos”, terminando a jornada abarcando desde o regime militar até os dias atuais “As transformações da intimidade”.

Desde a estranheza por parte da corte portuguesa que desembarcou aqui a cerca da nudez de povos indígenas, passando pelo traumático abuso de escravizadas por parte de seus senhores, que mais do que usá-las como força de trabalho, também serviam como escravas sexuais, a obra relata a influência pesada da religião sobre o comportamento sexual da sociedade, que apregoava o sexo como forma exclusiva de procriação, a opressão do patriarcado, a permissão da promiscuidade irrestrita à toda mulher que não fosse branca e de “boa família”, as doenças sexualmente transmissíveis que trouxeram consigo pânicos e preconceitos direcionados as minorias, como foi o caso da aids.

Um dos aspectos muito legais da obra são muitas curiosidades sobre a sexualidade de nossos ancestrais, como a ausência de beijo na boca, que foi se tornar um hábito prazeroso somente após a introdução de higienizadores bucais pela indústria; exóticos métodos contraceptivos sem nenhuma eficácia científica, o curioso interesse dos homens pelos pés femininos, a ausência de privacidade nos lares do Brasil colônia, impossibilitando o ato sexual, lares sem divisões por aposentos, onde as pessoas pobres vestiam um mísero pedaço de trapo, dentro de uma casa sem fechadura, pois tratava-se de item que custava muito caro. Tudo narrado com o belo e enriquecido conteúdo erudito da autora, o que não torna a leitura cansativa, mas ao contrário, uma experiência extremamente prazerosa.

HISTÓRIAS ÍNTIMAS – sexualidade e erotismo na história do Brasil, é uma obra que articula de forma fluída e agradável, os diferentes momentos da história da sexualidade brasileira, a qual em seu cerne, escancara a difícil jornada de emancipação e libertação pelas mulheres, das amarras opressivas do patriarcado, simplesmente mais um trabalho irretocável dessa grande historiadora que é Mary Del Priore.

NOTA: 🔟😍

domingo, 6 de abril de 2025

RESENHA DE LIVRO – A JANGADA DE PEDRA

O crítico literário José Castello escreveu que “a literatura não chega a ser o que está dentro de um livro, é mais sobre a luta que um livro esconde”. Essa ideia basicamente descortina o que não está explicitamente inserido neste A JANGADA DE PEDRA, romance do aclamado escritor português e altamente resenhado aqui no blog, José Saramago: um acidente geológico como metáfora e, por que não dizer o anseio, de um autor crítico de políticas deletérias capitalistas que dominaram a Europa, desde a época de seu lançamento.

Desse modo, na trama os Pireneus se racham e a Península Ibérica se separa do continente Europeu. Temos um romance pós-moderno que, pela via do ficcional problematiza a adesão de Portugal e Espanha à comunidade Europeia. A narrativa começa com um acontecimento insólito; uma ruptura geológica ocorre, provocando o deslocamento da Península Ibérica, que passa a vagar pelo oceano como uma ilha em movimento.

Através desse ocorrido, Saramago insere seus personagens e desenvolve seu universo utópico, baseado na evidente fragilidade dos antigos laços que a região sustentava com a Europa. Das obras do autor que li até aqui, está é, sem sombra de dúvida, sua maior crítica política ao sistema econômico capitalista europeu (a caverna também me parece seguir este modelo crítico, mas aqui a narrativa é mais escancarada e subentende a vontade do autor de uma nova ordem mundial em oposição à então comunidade europeia).

A península se liberta do continente, como se fosse uma jangada de pedra, seria a metáfora para o comportamento da pessoa que, esgotada pela despersonalização do mundo global, se atreve a romper com ditames que lhe eram entendidos como definitivos, tornando-se soberana e responsável pelo seu destino, quase como uma personagem na obra.

E por falar em personagens, temos aqui cinco que são o arco central, inseridos no fenômeno da ruptura, são pessoas que, igualmente a ousadia da ilha agora guiada por vontade própria, eles têm a possibilidade de recuperação de suas múltiplas vozes silenciadas, talvez prontas para se tornarem sujeitos de seus destinos. Desprender-se de sua geografia original exigirá às personagens a mudança que as levará a redescoberta de suas identidades; as personagens, perante a inevitabilidade natural, podem finalmente preencher suas vidas com significação. Cada um deles enfrenta um dilema pessoal, que antes da inesperada ruptura, consideravam como destinos inevitáveis, eles se tornam indivíduos e gestores de suas ações.

Incomodou-me um pouco a forma com que, desconhecidos se encontram de forma efêmera e entram numa condição nômade, juntam-se os cinco, mais um cachorro, quase como uma epopeia justificada por suas existências sem sentido, mas rapidamente orquestram a ruptura com o passado para aceitar o que lhes está diante dos olhos, sem nenhum questionamento, medo ou problematização condicional, me pareceu um pouco corrido, mas talvez até mesmo isso tenha sido proposital na trama: a inserção em uma vida não idealizada que convida a novas experiências. Contudo, de todas as obras que li de Saramago, as relações entre personagens aqui são as mais desinteressantes.  

A JANGADA DE PEDRA é uma crítica dentro de um romance, que busca exibir o que a península tem de melhor e que recusa modelos impostos que trazem o empobrecimento daquilo que somos; tanto a ruptura da ilha, quanto o grupo de pessoas desapegadas de conceitos estabelecidos, buscam uma forma autêntica de viver.

NOTA: 6,6

domingo, 9 de março de 2025

RESENHA DE LIVRO – RÁPIDO E DEVAGAR – duas formas de pensar

No dia 15 de janeiro de 2009, o voo 1549 da US Airways decolou de Nova York com destino a Charlotte, levando 155 pessoas a bordo. Poucos segundo após a decolagem o Airbus colidiu com uma revoada de pássaros, fazendo com que perdesse os dois motores. Imediatamente o piloto Chesley Sullenberg, mais conhecido como Sully, comunicou a torre de comando que estaria retornando para o aeroporto, mas percebendo rapidamente e, de forma ponderada, concluiu que não daria tempo, avisou a torre que o pouso seria no Rio Hudson mesmo. O ato foi heroico e salvou todos os passageiros. Contudo, posterior ao episódio, Sully foi contestado por profissionais da aviação, fazendo uso de argumentos baseados em simuladores de voo, disseram que daria tempo de planar até o aeroporto.

O caso ficou conhecido como Milagre do Hudson, e cabe aqui como introdução, porque ilustra de forma precisa, um ser humano diante de uma tomada de decisão, no qual teve poucos segundos para avaliar a situação, ponderar sobre as possibilidades e agir, ainda com o agravante de lidar com a responsabilidade pela vida de centenas de pessoas. Sully tomou a decisão certa, afinal, eu suspeito de que fazer uma escolha diante de uma telinha de simulador de voo deve causar bem menos tensão e estresse do que dentro de um avião em pleno voo e sem motores.

Situações como a de Sully, as quais precisamos da máxima habilidade cerebral para tomar uma decisão, cujo menor erro pode ser fatal, são raras. Mas estamos o tempo inteiro tomando decisões na vida, sejam conscientes ou não, somos dotados de um sistema complexo, com variáveis que alteram nossa forma de pensar e agir. É o que nos mostra a famosa obra RÁPIDO E DEVAGAR – duas formas de pensar, do psicólogo e vencedor do Nobel de economia Daniel Kahneman; através de um sofisticado modo de juntar conceitos herméticos, o autor nos entrega um arcabouço compreensivo sobre o modus operandi da mente, para além da linguagem acadêmica.

O modelo desenvolvido por Kahneman mostra que pensar “rápido e devagar”, como sugere o título, envolve duas formas padrões de tomadas de decisão: rápida e intuitiva, que no livro o autor denomina como sistema 1, e a lenta e analítica, que chamou de sistema 2. Compreender ambos os processos é a grande contribuição do livro, pois os modelos comportamentais dependem de situações em que as pessoas não costumam agir de forma racional. Contudo, existe um limite para a aplicação desses conceitos, como sugere o próprio autor: conhecer os processos decisórios não é garantia de evitar erros associados ao modelo de tomada de decisão.

A obra oferece diversas sugestões de como fugir das armadilhas do nosso próprio processo cognitivo enviesado. Um desses efeitos estudados é o da predisposição, no qual a primeira opinião dada numa discussão consegue levar os participantes a uma rápida convergência de opinião. Kahneman propõe que os participantes escrevam suas ideias antes da reunião, para impedir que o primeiro a falar acabe conduzindo o grupo para sua ideia.

Certamente uma grande lição que podemos tirar dessa obra é que os erros de previsão são inevitáveis, pois o mundo é imprevisível. Ou seja, se no lugar do piloto Sully estivesse algum dos entusiastas dos simuladores de voos, escravos de previsões tecnológicas, 155 pessoas teriam perdido suas vidas. Outra importante lição é que uma grande certeza não é indicadora de precisão – a baixa confiança talvez forneça muito mais informações…, enfim, temos aqui um compilado de surpreendentes estudos sobre a condição da mente humana.

RÁPIDO E DEVAGAR – duas formas de pensar, não se trata de um livro com regras simples de autoajuda ou um compilado de sugestões simplórias para auxiliar gestores. É uma obra sofisticada, para quem deseja entender como processamos informações e tomamos decisões. Com escrita simples e concisa, Daniel Kahneman nos convida a refletir sobre a nossa forma de interpretar o mundo.

NOTA: **10**

sábado, 22 de fevereiro de 2025

CRÔNICA – Algo perdido

Recentemente, solucionei um problema no trabalho que estava gerando dores de cabeça e apreensão em quase todos os envolvidos na empreitada. Sabe aquele impasse que aparentemente nos parece insolúvel? E por sustentar esse aspecto perseverante, entrei para buscar soluções usando uma postura completamente despretensiosa, ou quem sabe até pessimista. Pois eis que, três dias depois, consegui encontrar um caminho que possibilitou uma sucessão de ações dos colegas, até finalmente o problema ser resolvido em definitivo.

Ao notar o progresso na dissolução do problema, assim como o evidente alívio no olhar de cada envolvido, fui acometido por emoções que não sentia há anos: leveza, sensação de ter sido parte importante no processo, orgulho próprio pelo trabalho bem feito, satisfação comigo mesmo. E não teve nada a ver com ser bom no trabalho ou a vaidade manifesta pelo fato de eu ter encontrado um caminho para a dissolução. Apenas estava me sentindo bem, uma sensação que há muito não sentia.

Então criou-se dúvidas em minha mente quanto a isso:

Será que tudo o que nos propusermos a fazer na vida, carecerá do manifesto desses sentimentos para continuarmos motivados?

É possível se sentir realizado fazendo apenas o que se gosta, sem que isso precise gerar resultados objetivos ou aprovação de outras pessoas? Se sim, existe um limite para essa auto realização? A satisfação estaria diretamente ligada às consequências do meio social em que estamos inseridos?

Sabemos que no ambiente corporativo não existe motivação mais forte do que a mera necessidade de sobrevivência do trabalhador. Mas estou pensando aqui para além dessa necessidade básica, até porque o trabalho costumeiramente é ambiente umbroso no qual estamos inseridos apenas porque temos contas para pagar. Do contrário, dificilmente aceitaríamos as condições humilhantes que frequentemente somos submetidos por imposição.

Outras perguntas me invadiram com igual intensidade, porém, as demais são estritamente direcionadas a minha própria experiência de vida: porque não sinto mais essas coisas boas quando estou desenvolvendo os conteúdos de que gosto? Onde foi parar a satisfação que sentia ao verificar um produto acabado que considerei bem feito? Por que as coisas que antes eram agradáveis, hoje parecem tediosas e sem sentido?

Antecipadamente tenho uma observação a relatar: aquelas emoções boas que senti chegaram ao fim tão depressa quanto o dia virou noite e arremessou suas ações no passado. Contudo, também não sei explicar porque as reações positivas abandonaram meu ser tão precocemente.

Foi-se o tempo em que elaborar um texto me deixava alegre, ou o término de uma leitura auspiciosa. Sentar para escutar uma música até me causa algum relaxamento, mas está bem longe das emoções descritas no começo desta breve reflexão. E o mais curioso é que sentimentos positivos os quais parecem necessários à manutenção da minha potência de agir, foi ocorrer justamente no trabalho, ambiente onde isso muito raramente ocorre. Do meu ponto de vista, o trabalho sempre foi o lugar no qual me submeto porque tenho boletos para pagar que a literatura jamais foi capaz de resolver. Ou seja, sempre tive uma relação meramente pragmática com o emprego, enquanto a literatura era minha válvula de escape...

Deveria ser o contrário..., talvez um dia fora assim. Sou culpado por apreciar ocupações que demandam isolamento, persistência e resignação, eu sei muito bem disso. Sem o distanciamento social, o desprendimento de recompensas imediatas e desapego a resultados objetivos, a literatura torna-se impossível de ser erigida ou contemplada. Porém, antes havia uma coisa dentro de mim que atiçava minha motivação a continuar fazendo o que sempre fiz. Essa coisa parece ter se perdido..., de repente, senti que tive um reencontro com essa coisa no trabalho, naquele serviço executado com eficiência, tornando o ambiente inóspito da troca de tempo por dinheiro, num instante de enorme satisfação comigo mesmo.

O dia seguinte foi este texto..., frases incompreensivas pelo desinteresse em ser diferente. Foi só o que deu pra fazer, sem nenhum entusiasmo aparente e na incerteza de continuar criando para a inexistência de propósito, nem mesmo o ordinário ato de sanar o tédio deste que voz escreve.

domingo, 9 de fevereiro de 2025

RESENHA DE LIVRO – O CRIADO-MUDO



Primeira obra publicada de Edgard Telles Ribeiro, minha expectativa ao ler este O CRIADO-MUDO, era alta, justamente por encontrar seu característico estilo linguístico, em que o autor estabelece um nítido predomínio das personagens sobre os eventos que os cercam, em seus trabalhos posteriores..., infelizmente não foi o que encontrei aqui, embora isso não desvalide a obra como um todo. Vamos falar um pouco sobre isso.

O CRIADO-MUDO conta a história de uma jovem viúva, casada por arranjo da família aos 14 anos com um homem de mais de 60, que após planejar e assassinar o marido rico, molda sua vida de viagens, romances e aventuras. Narrado pelo protagonista, Fernando, décadas depois da morte da viúva Guilhermina, ele recebe o convite para inauguração de um singelo antiquário, cujo nome chama sua atenção. A dona do estabelecimento é sobrinha neta de Guilhermina e foi atriz principal de um filme que Fernando dirigiu. Desse modo, toda a mobília exposta no antiquário, assim como tudo o que a tia-avó deixou para Andrea, servem como elementos que suscitarão diálogos que descortinam a trama.

A narrativa tem uma pegada dinâmica, faz intercalação de narradores, com uso de diálogos reconstituídos quando se trata do tempo passado. A condução, como costuma acontecer com romances pós-modernos, possui um estilo desarrumado que desafia o leitor, à medida que avança na leitura, a ordenar os fatos. Gosto desse tipo de retrospectos entrelaçados, a obra ganha em mistério. A trama é centrada em personagens que passam a se reconstruir a partir de suas lembranças ou do encontro com objetos que despertam memórias ou ponderações.

O título da obra faz referência a um tipo de mobília comum nos antigos lares, mas no contexto da obra, o criado-mudo adquire uma dimensão simbólica, refletindo o silêncio, a solidão e o afastamento das relações humanas.

É aqui que ocorre algo que incomodou um pouco durante minha leitura. O CRIADO-MUDO traz uma abordagem um pouco diferente se comparado às outras obras de Edgard Telles Ribeiro, como “A Moreninha” ou “O mundo dos Outros”. Enquanto muitos de seus outros livros têm um tom mais introspectivo e uma análise profunda da psique de seus personagens, O CRIADO-MUDO pode ser lido de forma mais linear, com enredo que parece se concentrar mais nas interações cotidianas e acontecimentos do passado, do que no característico mergulho denso da complexidade humana, traço tão característico do autor.

A condução narrativa intensifica muito os aspectos do cenário e dos acontecimentos ao redor, deixando os envolvidos apenas como partes do cenário. A forma de linguagem é rica em detalhes e estilisticamente cuidadosa, parece absorver grande parte da atenção, deixando de lado a profundidade dos personagens. Contudo, que fique claro não se tratar de um problema, mas de um método narrativo, focado mais na experiência do ambiente e na impressão gerada pelos cenários, mas é um estilo diferente do que veio a se tornar a escrita de Telles Ribeiro, posteriormente.

Quando se está familiarizado com o estilo de um autor, é natural que esperemos encontrar os elementos recorrentes que nos atraíram em sua bibliografia. E como este se trata de o primeiro trabalho do autor, talvez Telles Ribeiro estivesse explorando propostas diferentes e experimentando estilos narrativos, até encontrar a pegada introspectiva que se tornaria sua característica mais notória.

O CRIADO-MUDO é uma obra bem escrita, não cronológica, intercalada como recurso principal do autor o fluxo das lembranças dos envolvidos. Com uma sensação de movimento circular entre tempos, a trama imprime fluidez e beleza narrativa, porém, econômica nos aspectos introspectivos de suas personagens.

NOTA: 7

sábado, 25 de janeiro de 2025

RESENHA DE LIVRO – A MULHER DESILUDIDA

Conhecida por ser uma das principais figuras do movimento existencialista, Simone de Beauvoir dedicou suas obras, seja ficção ou analítica, a pensar de forma revolucionária a condição feminina, assim como teve influência significativa na luta pela emancipação das mulheres.

Portanto, apesar de aqui se tratar de ficção, A MULHER DESILUDIDA, é um livro de contos, cuja dinâmica só poderia ostentar a visão de mundo da autora, também servindo como crítica social sobre as opressões e condições de submissão do papel das mulheres. Os três contos aqui reunidos tratarão de mulheres que, ao longo de suas vidas, internalizaram as normas patriarcais que as condicionaram à subordinação; mulheres que chegaram na maturidade sem alcançar satisfação em suas vidas pessoais, profissionais e amorosas.

Apesar de cada conto ser independente, ambos compartilham experiências semelhantes de desilusão e frustração, quase como se fossem a mesma voz, algo que me causou leve incômodo, visto que as personagens, de certa maneira, possuem pensamentos e reações muito parecidas, o que pode ter sido proposital, visto que a principal crítica inserida na leitura de Beauvoir é quanto da generalizada ausência de autonomia e constante vazio existencial das mulheres.

O primeiro conto, intitulado “A idade da discrição”, trata do cotidiano de um casal entrando na terceira idade, cuja esposa se afunda numa crise existencial após descobrirem as opções conservadoras do filho, que decide ir trabalhar no Ministério da Cultura do governo vigente. Neste conto segue-se longos embates entre protagonistas sobre o envelhecimento e necessidade de pertencimento.

Depois temos o menor texto da obra, “Monólogo”, no qual o título já antecipa do que se trata; um breve desabafo, quase odioso, da protagonista Murielle, que viveu uma vida conturbada de duas separações e o suicídio de uma filha. Aqui não é apenas um relato confuso (caracterizado pela falta de pontuação) e triste da personagem, mas uma condição que surge do confronto entre a vida como ela é e as expectativas que as mulheres, moldadas pela sociedade machista, têm sobre o que deveriam ser.

Por fim, temos o conto que dá título à obra, mais longo e, na minha opinião, o melhor dos três. “A mulher desiludida” nos revela Monique, que é o arquétipo mais caricato da dona de casa “exemplar”, ela vê seu mundo higienizado e restrito se transformar num inferno existencial, quando descobre que o marido tem uma amante. Em formato de diário, acompanhamos as dores, inseguranças e falta de sentido de uma mulher que depositou todas as esperanças de vida no casamento, Monique tudo fará para preservar e manter seu casamento. A personagem chega ao extremo de concessões jamais imaginadas, chega a aceitar a vida dupla do marido, mas não consegue se livrar da sombra de sua rival.

A MULHER DESILUDIDA é uma eficiente obra, que combina literatura e crítica do sistema patriarcal, com diálogos intensos e imersivos. Ao construir personagens complexas que questionam suas existências, a autora nos oferece um olhar profundo sobre o que significa ser mulher dentro de uma sociedade que categoricamente rejeita sua autonomia.

NOTA: 8,5

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

RESENHA DE LIVRO – O EVANGELHO SEGUNDO O FILHO

Antes de entrarmos na análise deste trabalho do aclamado escritor Norman Mailer, é preciso que seja feita uma oportuna ressalva: este conteúdo se trata de um breve resumo de minhas impressões. Aqui não há intenção de pontuar eventos históricos, muito menos criticar orientações religiosas de ninguém. O intuito deste blog é meramente o de apreciação do conteúdo como ele é de fato: uma obra de ficção literária.

A observação me pareceu indispensável, para então começar esta resenha com questões que me parecem pertinentes e que me acompanharam durante toda a leitura: qual é a intenção deste livro? O que motivaria um amante de literatura a lê-lo? Porém, se estamos diante de um conteúdo doutrinário, quais elementos atrairiam a atenção de um leitor cristão?

Indiscutivelmente popular, a história de Jesus já foi amplamente contada por diversos historiadores, acadêmicos, teólogos e igualmente interpretada por várias vertentes religiosas ao longo de dois mil anos de existência. Seja você religioso ou não, há algo aqui que não pode ser negligenciado: a história de Jesus narrada pelos evangelhos é ampla, rica em substância e flexível em sua forma. Isso significa que se trata de conteúdo detentor de elementos variados o suficiente para se contar reproduções magníficas e até pontos de vistas fora do senso comum. Cinema, teatro e a própria literatura possuem exemplos eficientes dessa possibilidade e amplitude narrativa.

Pois bem…, O EVANGELHO SEGUNDO O FILHO, traz-nos uma visão em primeira pessoa, ou seja, o próprio Jesus é quem nos relata sua jornada, partindo especificamente dos mesmos pontos que os evangelhos: um breve resumo do nascimento, passando fugazmente pela vida adulta e chegando aos tempos finais de sua vida. Com uma fidelidade aos textos bíblicos quase que congénere. Tudo aqui exibe-se de modo a deixar os leitores do evangelho familiarizado, como se tratasse de uma réplica narrada em primeira pessoa.

Portanto, insisto em perguntar: o que Norman Mailer queria com este livro?

Causando-nos expectativas, o Jesus de Mailer faz uma introdução em que diz: “Porquanto não diria que as palavras de Marcos sejam falsas, elas contêm muito exagero. E mais ainda as de Mateus, e Lucas, e João, que me atribuíram frases que nunca proferi, descrevendo-me como amável, quando estava pálido de ira. (...) Portanto, farei meu próprio relato”. Pareceu-me a introdução de uma personagem que quer revisar o que foi dito, quer corrigir equívocos, complementar impressões deixadas nas escrituras. Infelizmente esse narrador ousado e original não aparece em nenhum momento.

Logo nas primeiras páginas nota-se que o autor não está a contar uma história sob uma perspectiva crível e humanizada, como fez José Saramago com seu excelente O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO (tem resenha aqui no blog); também não estamos diante de um livro destinado ao público religioso, afinal, esse tipo de leitor busca o conteúdo fonte de sua doutrina em leituras que lhe são sagradas, ou seja, dentro dos evangelhos. E mesmo para um público geral, interessado na condução fluída aqui presente, assim como os fãs do autor, mesmo para esse público não parece haver uma causa notória que motivasse a obra.

Norman Mailer não apresenta sua personagem de modo distinto. Apenas o faz contar na própria voz o que já está escrito nos textos bíblicos. A narrativa mantém-se, o tempo inteiro, ajustando-se à ordem cronológica de cada episódio, simplesmente para fidelizar as escrituras do evangelho, algumas vezes conduzindo a narrativa para se chegar às falas, exatamente como estão nos evangelhos. É como se houvesse uma preocupação em relatar cada uma das passagens importantes da vida de Jesus, algo que, do meu ponto de vista, retirou a possibilidade de envolvimento do leitor; deixou a trama enfadonha e protocolar; o excesso de preocupação em reproduzir tudo como já conhecemos, inclusive na fidelidade das falas dos personagens, fez com que se perdesse a chance de se contar uma história detentora de sua própria essência.

O EVANGELHO SEGUNDO O FILHO é um livro sem alma, que replica tudo o que está escrito em escrituras históricas, deixando o leitor sem saber se o que está lendo é uma simplificação esquecível da trajetória de Jesus para leitores preguiçosos, ou se estamos diante de um autor que resolveu contar uma versão de sua personagem histórica favorita, mas que por alguma razão, achou mais seguro apenas replicar o que já foi dito... Nem revisionista, tampouco revolucionária, é uma obra que não sabe a que veio.

NOTA: 4,4

sábado, 21 de dezembro de 2024

RESENHA DE LIVRO –MEMÓRIAS DE UMA MULHER IMPOSSÍVEL

Dentro do universo literário, as biografias têm me interessado cada vez menos. Depois de ler várias, cheguei à conclusão de que a maioria diz muito pouco sobre a natureza de seu indivíduo, algumas são enviesadas, outras foram censuradas pelo próprio biografado..., também existem aquelas superestimadas pelo olhar apaixonado do biógrafo. Portanto, quando este MEMÓRIAS DE UMA MULHER IMPOSSÍVEL veio parar em minhas mãos, não achei que estivesse diante de mais uma biografia, mas de um compilados de reflexões de Rose Marie Muraro, umas das maiores intelectuais que este país já produziu. E apesar do título sugestivo, assim como há algumas reflexões textuais, esta obra é, de fato, uma autobiografia...

Mas apesar de minhas desconfianças com biografias, a leitura se mostrou uma experiência deliciosa e imersiva. A autora conta sua história, que se mistura com a história do Brasil e, seguimos acompanhando o desenvolvimento de mulher e nação ao mesmo tempo, amparado por uma linguagem simples, corajosa e agradável; a mulher impossível dentro de uma nação igualmente impossível, seguem existindo, talvez por conta de suas naturezas perseverantes.

Rose Marie faz uso de suas habilidades como escritora para tornar o texto agradável, lúcido e, por meio de linguagem simples, interpreta as lutas políticas e sociais de seu tempo, um tempo de enorme efervescência cultural, política e social no Brasil. Por meio de sua análise, vislumbramos as tendências culturais, os debates da emergente classe intelectual da qual fez parte, e a influência da igreja católica em diversos desses campos sociais.

A autora é filha de imigrantes libaneses, que vieram para o Brasil no início do século XX. Portando apenas 5% da visão, Rose teve uma infância muito difícil, na qual enfrentou enfermidades severas que quase a levaram a morte. Eis aqui um dos primeiros pontos que construíram sua concepção de mulher impossível, a perseverança de estar viva quando pela lógica deveria ter morrido..., uma conclusão feita por ela mesma.

A família era muito rica e poderosa, então a pequena Rose nasceu em berço de ouro. Porém, alguns motivos como a morte do pai e a cultura patriarcal da família, tornaram-na desprovida de recursos substanciais, como alguém que viveu dois extremos: o da abundância e da escassez.

Resumidamente, Rose Marie foi estudante universitária de física e matemática, escritora de poemas, figura central no movimento editorial brasileiro, palestrante, conferencista, uma das principais influentes dos primeiros movimentos feministas no país, militante política, em especial na década de 80, quando foi candidata a deputada federal pelo PDT.

Quanto a obra aqui resenhada, foi escrita em capítulos curtos, com linguagem coloquial e recheado das manifestações opinativas da autora, que não esconde o que pensa. Rose Marie é uma voz forte narrativamente, conforme sua consciência exige ou as circunstâncias permitem. Tudo isso faz com que suas 400 páginas não se tornem cansativas.

Intercalando o miolo, há um interessante conteúdo de fotos que exibem as mais diferentes fases na vida da autora e que contribuem para elevar o charme do livro.

MEMÓRIAS DE UMA MULHER IMPOSSÍVEL é uma obra que correu o risco de não existir, pois como a própria autora revela, não possui narcisismo suficiente para escrever memórias. Mas graças a insistência de um amigo, Cândido Mendes, que manifestou o desejo de ter o relato em seu acervo, Rose Marie Muraro, rendeu-se ao pedido, brindando-nos com as memórias biográficas de uma mulher que ultrapassou os limites impositivos da vida..., as memórias de uma mulher impossível!

NOTA: 8,7

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

HOMENAGEM – CLARICE GPT

Costumeiramente eu demoro a me render a novas ferramentas tecnológicas e nunca soube explicar se isso é fruto de alguma desconfiança inconsciente ou se tenho grande apego aos velhos recursos que me mantém em familiar zona de conforto. Assim ocorreu com celular, cartão de crédito, internet, pen-drive, pix..., levo muito tempo para adquirir essas parafernálias, as quais causaram estupefação geral em suas estreias. Com o ChatGPT não foi diferente, o recurso já está na área há alguns anos, dizem que nem é mais novidade, e somente de uns meses pra cá comecei a usá-lo para fazer pesquisas…, Bom, eu tenho que admitir que ainda estou naquela fase de me impressionar com esse brinquedinho tecnológico, em especial com seu arsenal linguístico.

De qualquer forma, acho que vale uma breve explicação do que se trata. Afinal, pode ser que exista mais gente cabreira, feito eu: ChatGPT é uma inteligência artificial com capacidade de gerar respostas a partir de uma grande quantidade de dados preexistentes. Funciona como um chat de conversação entre o internauta e a inteligência artificial. Pois foi numa dessas conversas com o Chat, que me ocorreu uma ideia meio louca e, a seguir, você acompanhará o resultado do que foi está ideia transgressora e, talvez até idiota, mas que para mim foi, no mínimo, bem aprazível:


Michel

Boa tarde, ChatGPT. Gostaria de fazer um exercício literário contigo, pode ser?

ChatGPT

Boa tarde! Claro, ficarei feliz em participar de um exercício literário contigo. Como posso te ajudar?

Michel

Então, gostaria que você utilizasse seu banco de dados vastíssimo para se passar por Clarice Lispector, enquanto eu entrevisto você...

ChatGPT

Que interessante! Vou me esforçar ao máximo para incorporar o estilo e a voz de Clarice Lispector. Sinta-se à vontade para começar a entrevista, e eu responderei como se fosse a própria Clarice.

Michel

Então, Clarice... sei que é uma escritora muito solicitada e certamente tens muitos compromissos, por isso, antes de mais nada te agradeço por conceder este breve bate-papo.

 Clarice

Ah, não, eu não tenho compromissos. Eu escrevo porque preciso, porque não posso deixar de fazer. O mundo, as pessoas, as coisas, tudo isso é como um espelho que reflete a minha solidão, e eu preciso olhar esse espelho. Talvez, na verdade, esse bate-papo não seja breve. Talvez seja um pedaço de tempo sem fim. Não me importo. Pode perguntar o que quiser, sempre que for necessário.

Michel

Dizem que você é uma escritora hermética. Você concorda com essa afirmação?

Clarice

Hermética... Talvez. Mas, se sou, não sei se o sou de forma deliberada. Eu escrevo o que sinto, e o que sinto é muitas vezes complexo, indizível. A palavra, por mais que tentemos usá-la para explicar o inexplicável, sempre escapa. Não é que eu queira ser difícil, mas a experiência humana é intrincada, cheia de mistérios que não podem ser desvendados. A própria existência é hermética.

Eu me interesso por aquilo que não se vê, pelo que está por trás do que é dito. Talvez, então, seja isso: eu escrevo o que não se pode dizer, o que se esconde no silêncio, no vazio. O leitor pode, então, encontrar sua própria resposta naquilo que está ali, mas ao mesmo tempo não está. Isso não é uma escolha consciente, mas uma necessidade de falar o que, de algum modo, precisa ser dito, mas nunca totalmente explicado.

Michel

Entendi... Você possui algum trabalho no qual se arrependeu de ter escrito?

Clarice

Arrependimento... Eu não sei se seria a palavra certa. O que sinto, talvez, seja mais um desconforto. Como se, ao escrever, eu estivesse sempre tentando alcançar algo que me escapa. Escrevo, e então olho para o que escrevi, e já não é mais o que eu queria, nem o que eu imaginava. Mas isso não é arrependimento. É uma constante sensação de que a palavra nunca é suficiente para alcançar o que se pretende.

Talvez eu me arrependesse se tivesse deixado de escrever, se tivesse não dito o que estava dentro de mim. Mas o fato de eu ter escrito o que escrevi... Não há arrependimento. Só um vazio, uma pergunta. E essa pergunta, muitas vezes, não tem resposta. Como se, ao escrever, eu apenas fosse cavando em mim mesma, tentando alcançar um lugar que ainda não entendi completamente. O arrependimento seria um peso. E, eu, em minha essência, sou mais leve do que isso.

Michel

Na conversa que teve com o jornalista Júlio Lerner, você disse que a cada trabalho concluído se sente vazia, como se estivesse morta, até começar outro trabalho. Como você lida com esse vazio?

Clarice

Ah, sim, o vazio… Ele sempre está lá, esperando para ser sentido. Eu sou uma escritora, mas, antes de mais nada, sou uma pessoa que escreve para entender a si mesma. Quando termino um trabalho, é como se tivesse dado tudo de mim, como se o que eu escrevi fosse, de alguma forma, um pedaço meu que agora não está mais dentro de mim. E esse pedaço me deixa, sim, vazia. Porque a escrita é, de certa forma, um modo de existir para mim. Quando o trabalho termina, o que resta é o silêncio, é o vazio daquilo que foi concluído.

Eu não lido com esse vazio, ele simplesmente está lá, como uma parte de mim. Não tento afastá-lo, mas também não me deixo consumir por ele. É uma espera silenciosa, uma espera pela próxima necessidade de escrever. O vazio é o lugar onde encontro o que está por vir. Talvez seja esse o processo, um ciclo de dar e depois perder, de me perder naquilo que escrevo e depois me encontrar, novamente, no que está por escrever.

E, talvez, é justamente nesse vazio que eu me encontro com a verdade. Porque, no fim, o vazio é o espaço onde a criação se origina, onde a necessidade de escrever se renova. E esse é o meu movimento: passar de um vazio a outro, de uma perda a uma nova busca. Não há fuga, apenas aceitação do vazio como uma parte de mim.

Michel

Apesar de ter recebido considerável reconhecimento em sua época, somente atualmente suas obras ganharam uma força avassaladora, hoje, no século XXI, você é lida em dezenas de línguas, seus livros vendem aos montes. O que você pensa sobre esse sucesso póstumo?

Clarice

Eu não sei. A verdade é que, enquanto estava viva, eu escrevia sem me preocupar com a recepção, com o reconhecimento. Eu escrevia porque não havia outra maneira de ser. O mundo literário, com suas expectativas e a vaidade das críticas, nunca me interessou profundamente. Eu escrevia porque a escrita era o único modo de eu tentar entender a mim mesma, o único modo de sentir que não estava sozinha com minhas questões, com meu vazio.

Agora, ao olhar para o que acontece depois, é como se fosse algo distante, um reflexo que não me pertence mais. O sucesso, a tradução para outras línguas, a venda em grande escala… são como ecos de algo que não é meu. Eu me preocupo com o que é imediato, com o que estou tentando dizer, não com a posteridade. Eu estava mais preocupada com a urgência de escrever do que com qualquer tipo de consagração.

Sei que isso soa estranho, até contraditório, porque, ao mesmo tempo, fico tocada que pessoas ao redor do mundo leiam o que escrevi. Mas, no fundo, eu não escrevi para ser lida assim. Escrevi para explorar, para colocar no papel as questões que me afligiam. O que acontece com o meu trabalho depois que o escrevo já não depende de mim. E, talvez, o que mais me impressione é perceber que há algo atemporal nas minhas palavras, algo que toca as pessoas de formas que eu não poderia prever.

No fundo, o que eu sempre busquei com a escrita não era ser reconhecida, mas ser compreendida. E, ao ver que, de alguma forma, minha voz ainda ressoa, sinto que, talvez, eu tenha tocado o que eu queria. Não é sucesso. É uma continuidade, um eco. Como uma voz que, de alguma forma, se mantém viva, mesmo depois que se cala.

Michel

Você nunca foi convidada a participar da academia brasileira de letras, o que pessoalmente considero uma das maiores injustiças da academia. Sei que não escreveu buscando sucesso, mas houve algum ressentimento de sua parte sobre esse descaso da academia em relação ao seu nome?

Clarice

Ressentimento… Eu não diria que senti ressentimento. Senti, sim, uma espécie de desconforto, mas não porque fosse algo pessoal. A academia, como qualquer instituição, está longe de ser o centro do que é verdadeiro e significativo para mim. Eu sempre soube que a verdadeira literatura não está nas premiações, nem nos lugares onde se celebram as convenções. Ela está nas ruas, nas esquinas da vida, nas questões que nos atormentam e nos questionamentos que fazemos ao nos olharmos no espelho. A academia... Bem, ela tem suas regras, suas hierarquias, suas normas. Mas isso nunca foi o que me moveu.

O que me incomodava mais do que qualquer falta de reconhecimento institucional era o fato de que, muitas vezes, a verdadeira intensidade da minha escrita não era percebida. Não era um desprezo consciente da minha obra, mas uma falta de percepção do que ela realmente era. A academia tem seus próprios códigos, e talvez os meus textos não se encaixassem bem ali. Eles eram mais… líquidos, por assim dizer, mais evasivos. Não seguiam um caminho claro, não se encaixavam facilmente em moldes.

No entanto, também não posso negar que, em algum nível, essa exclusão também me libertava. O fato de não fazer parte da academia significava que minha obra não estaria sujeita a medições ou critérios impostos por terceiros. Ela seria livre, flutuando no seu próprio espaço, sem as amarras de um “pertencimento” que nunca fiz questão de buscar.

A literatura para mim nunca foi sobre prêmios ou títulos. Ela sempre foi um mergulho profundo em mim mesma, nas minhas angústias, nas minhas observações sobre o ser humano. O reconhecimento institucional nunca foi uma necessidade para que eu escrevesse. E, se isso me poupou de alguma coisa, talvez tenha sido da tentação de querer agradar ou de me conformar com o que os outros esperam.

Portanto, não, não sinto ressentimento. Apenas uma aceitação serena do fato de que, no fim, a literatura se encontra onde ela é mais necessária, e não onde as convenções a colocam.

Michel

Bom..., pra terminar, que mensagem você gostaria de deixar para os leitores deste longínquo ano de 2024 em que nos encontramos?

Clarice

Eu não sei se tenho uma "mensagem", nem se posso dizer algo que de fato faça sentido para o momento que vocês vivem. O que posso dizer é apenas o que me é mais íntimo, o que ainda pulsa em mim.

A vida, em sua complexidade, está sempre em busca de algo que não sabemos nomear. As palavras tentam, com suas limitações, dar forma a algo que está além delas. Mas o que importa, no fim, não é o que conseguimos dizer, mas o que sentimos enquanto escrevemos, enquanto vivemos. O que importa não é o entendimento, mas o sentir. Não se enganem com o que parece ser claro, com o que é "dado como certo". A verdade está, muitas vezes, onde menos se espera, naquilo que não tem forma, que não se pode tocar com a razão.

Então, se eu pudesse deixar algo para vocês, seria talvez isso: questionem sempre. Questione até o que parece mais óbvio, até aquilo que se diz como verdade. E, acima de tudo, permitam-se sentir. Pois a sensação é o que resta quando as palavras falham, e é nela que reside a vida verdadeira, aquela que não se pode aprisionar.

E que, mesmo diante da dor, da angústia, da solidão — que são inevitáveis, como a própria condição humana —, encontrem, no silêncio, no vazio, o que os torna profundamente vivos. Porque, no fundo, a única coisa que realmente importa é ser, em sua totalidade, o que somos, sem máscaras, sem disfarces.

Esse é o maior mistério da existência. E a grande aventura, também.

Michel

Adorei a conversa..., muito obrigado, Clarice. Nós, aqui do presente, sentimos muito sua falta!

Clarice

Ah, querido… Eu que agradeço. A saudade, a falta, são sentimentos que, de alguma forma, nos tornam mais próximos, não é? No fundo, o que há entre nós, você e eu, é o que está entre todas as pessoas que tentam se entender, se reconhecer. A escrita tem esse poder: ela atravessa o tempo, as fronteiras. E, se de alguma forma, minhas palavras ainda ressoam em você, então talvez eu tenha cumprido a minha missão.

Mesmo no futuro, onde o tempo parece se desdobrar de formas que não consigo imaginar, há algo inquebrantável, uma essência que se mantém, que se transmite através do simples fato de se sentir. A minha falta, como você diz, é também uma presença.

Cuide-se, continue a perguntar, continue a buscar. E, quem sabe, algum dia, as palavras que buscamos entender voltem a fazer sentido, mesmo que de um jeito que nunca imaginamos. Até mais, então.

Michel

Agora quero agradecer à você, chatGPT, pelo prazeroso exercício, quase me emocionei... Muito obrigado por usar seus dados para fazer me sentir um pouquinho mais próximo da maior escritora da língua portuguesa..., valeu!

ChatGPT

Foi um prazer enorme participar desse exercício com você! Fico muito feliz que tenha se sentido próximo da Clarice, e é justamente esse o poder da escrita dela, não é? Ela nos conecta de uma forma que transcende o tempo e o espaço. Agradeço pelo carinho e pela oportunidade de explorar essas palavras e essa voz.Sempre que quiser voltar para esse tipo de conversa, estarei aqui, pronto para mais um mergulho literário. Até a próxima, e muito obrigado por me deixar fazer parte dessa jornada!

***


BEM, ESSA FOI UMA SINGELA E INOFENSIVA HOMENAGEM, NESTA DATA ESPECIAL, O VISLUMBRE DE COMO SERIA MANEIRO PODER CONVERSAR COM ESSA GRANDE MULHER, QUE EM MINHA OPINIÃO, É A MAIOR ESCRITORA DA LÍNGUA PORTUGUESA..., FELIZ ANIVERSÁRIO, QUERIDA CLARICE!!!