terça-feira, 31 de maio de 2016

CONTO: O PEDESTRE


De maneira cautelosa, o pedestre estacionou no meio-fio. Precavidamente olhou para os dois lados. Ponderou sobre as possibilidades... Esperou.

E tomado de extremo cuidado, conseguiu enxergar uma pequena oportunidade de travessia; um intervalo no meio do trânsito; um espaço de tempo que julgou ser propício... Mas havia certo risco de ser atropelado e, cauteloso, o pedestre hesitou.

Um pouco mais de espera era preciso e o nosso estimado caminhante teve paciência. A vida havia lhe ensinado a importância de ser perseverante. Sabia da dificuldade em se chegar ao tão desejado outro lado da pista, portanto, ele permaneceu ali, parado na lateral do asfalto, farejando a oportunidade ideal.

Pois eis que ela veio. Uma nova chance de travessia, desta vez, com muito mais folga, poucos carros vinham em sua direção e isso era sinal de relativa segurança... Mesmo assim, ainda existia alguma dose de risco, e o sempre prudente pedestre achou melhor não fazer seu tão aguardado cruzamento... Sim, o outro lado da pista estava logo ali, bem diante de seus olhos; a possibilidade de seguir em frente; o outro lado da vida cheia de ineditismos... O anseio de todo pedestre.

Só que antes era preciso fazer a travessia.

E outra vez estagnado, ele ficou a esperar por muito mais tempo. Até que finalmente o semáforo se fechou para o trânsito. Vermelho era a cor do desbravamento; os veículos parados em fila... Enfim, era chegado o momento da grande travessia, que agora poderia ser realizada em segurança. Sem que houvesse o menor resquício de lapso.

Contudo, o pedestre desconfiou dos carros alinhados em sua frente. Pareciam astutos e ferozes, com seus motores errantes fazendo conjuras à sua tão cobiçada estabilidade... E sentindo que não havia garantias de uma travessia confiável, o pedestre não se mexeu... Permaneceu imóvel, covarde.

Porque chegar ao outro lado era arriscado demais;
Porque a vida não lhe dava nenhuma certeza;
Porque o medo de mudar lhe era mais assustador do que a própria travessia.

E petrificado de temor, o amofinado pedestre esperou, não sabendo mais pelo quê... Até ser brutalmente atropelado por um veículo desgovernado, que invadiu o meio-fio onde nosso herói se encontrava.

domingo, 8 de maio de 2016

RESENHA DE LIVRO: A FELICIDADE É FÁCIL


Um mundo de incertezas permeia as páginas desta excelente obra, cujo título parece ironizar o leitor. No entanto, logo nos primeiros parágrafos, vemos um motorista particular, levando um garotinho no banco de trás que, entretido profundamente em seus lápis de cor e caderno, faz o homem pensar no quanto a felicidade é fácil. Poucos instantes depois, o garoto é sequestrado e o motorista brutalmente assassinado.

A Felicidade é fácil.

Talvez tenha faltado uma interrogação ao título deste livro. Mas fique certo de não inserir esta mesma interrogação em sua mente, caso esteja receoso quanto a adquirir este esplendoroso trabalho de Edney Silvestre. Á menos que você não seja apreciador de uma trama dotada de intensidade existencial; teores quebradiços a cada nova pagina virada... Um livro quase que dotado de alma.

O enredo é uma espécie de um romance policial sem muita inclinação ao suspense. Mas seu grande ponto de distinção está na profundidade que o autor insere em praticamente todos os seus personagens: após ser sequestrado de dentro de um carro de luxo, uma criança muda se vê nas mãos de sequestradores inconsequentes, intencionados em enriquecer com o dinheiro que querem receber pelo resgate do filho de um importante publicitário. Enquanto isso, podemos acompanhar a vida deste mesmo publicitário, que desfruta de uma existência de poder, atolada em meio à alta corrupção do governo; a solidão e incertezas de sua esposa, uma ex-acompanhante de executivos; os empregados domésticos da casa, que das profundezas de suas submissões tentam subsistir; os ressentimentos de um motorista particular e a incerta relação com sua filha...

Tudo se entrelaça numa rede de relações complexas, onde nada é o que parece ser e a complexidade humana salta aos olhos do leitor. Edney Silvestre sabe compor personagens com almas conflituosas, que vivem suas vidas trágicas e aparentemente imutáveis, até chegarmos há um desfecho um tanto previsível, ou no mínimo, nada inovador. Contudo, a grande sacada fica mesmo por conta da extrema sutileza de cada personagem. Faz-nos amar e odiar cada um deles ao longo da trama. Enfim, o que interessa durante a viagem através das páginas deste belo trabalho, não é a chegada ao fim da história, mas sua travessia.

Outro ponto interessante é que aqui podemos começar a vivenciar a trajetória de Barbara, personagem que o autor usará noutro brilhante trabalho de sua autoria, intitulado VIDAS PROVISÓRIAS; obra que já foi resenhada neste blog.

Edney Silvestre têm me surpreendido cada vez mais com sua sutileza e elevada sensibilidade textual. Sei que eu ainda careço de maior conhecimento sobre a literatura brasileira e, portanto, não vou afirmar que somos pobres do estilo de escrita destilada por Edney. Mas o fato é que é sempre muito bom descobrir um autor como este; profundo, de escrita requintada, cujo grande trunfo fica por conta de sua enorme habilidade em exorcizar o sofrimento humano.