No dia em que eu finalmente
nascer, ah, ninguém me segura!
Quando eu nascer vocês verão.
Serei aquilo que de melhor existe! Por métodos aviltantes, serei retirado dos
grotões de minha mãe e abrirei meus olhos para este mundo maravilhoso e inimaginável
do externo. Poderei ser a criança que sempre desejei; o molde exato de meu
querido pai.
Serei amamentado por
pouquíssimo tempo, pois neste mundo maravilhoso não há necessidade de sugar o
néctar que pensávamos ser vital de nossa mãe. No lugar dele eu provarei de toda
artificialidade existente, para liberar minha genitora deste fardo alimentício.
Serei entregue a uma mulher que, a troco de salário mínimo, cuidará de mim até
a adolescência, enquanto aquela que por definição levaria o título de mãe,
estará a ganhar dinheiro para poder pagar alguém que desempenhe a humilhante
função de limpar as minhas fraldas sujas.
Tornar-me-ei um adolescente
esbelto e corado. Cheio de vida e vontade eloquente, quase obstinada. E quando
a relutância começar a minar pelos meus poros, receberei a oportuna educação
moderada; o exercício da ordem sem contestação, serei doutrinado pela
convivência cultural daquele meio em que estarei inserido... Será mais fácil,
dirão, caso eu venha a questionar.
Terei livros, sim, muitos
livros... Mas não exatamente os livros que vocês pensam. Eles serão como
manuais de instruções a revelar quase nada de nenhum tempo. O passado me
parecerá enfadonho e desnecessário, o presente escapadiço e inconstante, o
futuro assustador e incerto. Os livros pelos quais serei indicado a ler nada me
dirão de objetivo ou pertinente, afinal, neste mundo maravilhoso eu nada
precisarei, pois vocês me darão tudo.
Portanto, eu não precisarei me preocupar
com nada. Terei somente que me ater às atualizações de minhas redes sociais, os
bate-papos ininterruptos que me ocuparão a mente, enquanto as coisas acontecem
no mundo a se enquadrar para meu gozo. O prestígio tecnológico a envaidecer-nos
para que nos sintamos como deuses a olhar para o mundo exibido na palma da mão.
E quando eu chegar à universidade saberei exatamente o que escolher: a
graduação mais pragmática, aquela que proverá os melhores salários e
oportunidades de mercado. Isto me será de imensa valia! Sim, pois neste mundo
maravilhoso, eu não saberei o que quero. Portanto, precisarei de vocês com seus
meios objetivos a me indicar a direção certa.
E finalmente quando chegar a
fase adulta, arranjarei estágios empolgantes, serei posto sentado a uma mesa
onde sobre ela haverá muito que fazer, funções excitantes que precisam ser
desempenhadas para a continuidade deste mundo maravilhoso, é o que dirão. E
manterei o ritmo, darei produção, não farei perguntas... Aliás, este mundo
maravilhoso não me ensinou a fazer perguntas, pois aqui já existem respostas
prontas pra tudo.
Adestrado que serei, não
restará dúvidas e me verei efetivado num oportuno emprego. Jamais saberei quem
são meus chefes ou de onde vem o dinheiro que me pagam. Serei apenas a
minúscula engrenagem de uma gigantesca máquina cuja função eu não sei qual é. Mas
neste mundo maravilhoso eu me sentirei seguro com tanta gente trabalhando pelo
bem desta máquina... Remar no mesmo sentido, este é o lema!
Precisarei de uma esposa, é
o que dirão. E desprovido da inútil capacidade de discernimento, encontrarei
aquela que melhor se encaixar à minha proposta de construir o lar perfeito.
Seremos um casal regrado, assinaremos papéis, vulgarizaremos nossa relação para
satisfazer os olhares alheios, daremos justificativas de nossos atos, não nos
conheceremos, pois isto não é importante, desde que não falte dinheiro para
prover o nosso querido lar. Neste mundo maravilhoso seremos almas gêmeas sem
almas: dois seres igualmente robotizados, adestrados e absolutamente
resolutos... Saberemos exatamente qual será o próximo passo.
Acordaremos às seis da manhã
e este será o único instante do dia em que nos veremos. Minha alma gêmea sem
alma tomará um caminho e eu, outro ser igualmente sem alma, seguirei por outro.
Enfrentaremos trânsito, atestaremos através de digitais a nossa presença no
trabalho, sentar-nos-emos em cadeiras enrijecidas, seremos a engrenagem da
maquina outra vez, função importante esta. Pararemos por alguns minutos para
nos nutrir, correremos outra vez para nossas enrijecidas cadeiras, muitas
coisas pra serem feitas; repetitivos relatórios, repetitivos memorandos,
repetitivas declarações, repetitivas digitações, repetitivo trabalho... Ah,
este mundo maravilhoso sabe mesmo como se replicar.
Então nos tornaremos uma
família bem sucedida. Obteremos todo o conforto oriundo de nosso consumismo
exacerbado, impensado. Adquiriremos coisas sem saber suas reais funções;
compraremos objetos que ajudem a nos manter sob o alinhamento da rotina
semanal. Trocaremos objetos por outros objetos que a princípio parecerão importantes
e mais modernos, mas na verdade este mundo maravilhoso não nos dará explicações
para que possamos compreender as razões pelas quais temos que consumir tanto...
Ora, isso não será preciso, porque estaremos protegidos e garantidos, basta que
continuemos fazendo as escolhas certas.
Finalmente chegarei à minha
tão aguardada vez da multiplicação. Serei eu a inserir outra vida no mundo que
terá como desejo primordial, espelhar-se no pai. Depositarei minha semente numa
mulher transformada em máquina de conceber. E esta gerará a vida que dará
continuidade a este mundo maravilhoso. E enquanto eu me preparo para seguir
para o limbo compulsório da previdência que me manterá vivo por mais algum
tempo, terei o sentimento de missão cumprida, enquanto olho e vejo meu estimado
filho contar a sua história deste mundo maravilhoso... É chegada a sua vez de
narrar meu filho: