quinta-feira, 18 de maio de 2017

CRÔNICA - O FETO E O MUNDO MARAVILHOSO!


No dia em que eu finalmente nascer, ah, ninguém me segura!

Quando eu nascer vocês verão. Serei aquilo que de melhor existe! Por métodos aviltantes, serei retirado dos grotões de minha mãe e abrirei meus olhos para este mundo maravilhoso e inimaginável do externo. Poderei ser a criança que sempre desejei; o molde exato de meu querido pai.

Serei amamentado por pouquíssimo tempo, pois neste mundo maravilhoso não há necessidade de sugar o néctar que pensávamos ser vital de nossa mãe. No lugar dele eu provarei de toda artificialidade existente, para liberar minha genitora deste fardo alimentício. Serei entregue a uma mulher que, a troco de salário mínimo, cuidará de mim até a adolescência, enquanto aquela que por definição levaria o título de mãe, estará a ganhar dinheiro para poder pagar alguém que desempenhe a humilhante função de limpar as minhas fraldas sujas.

Tornar-me-ei um adolescente esbelto e corado. Cheio de vida e vontade eloquente, quase obstinada. E quando a relutância começar a minar pelos meus poros, receberei a oportuna educação moderada; o exercício da ordem sem contestação, serei doutrinado pela convivência cultural daquele meio em que estarei inserido... Será mais fácil, dirão, caso eu venha a questionar.

Terei livros, sim, muitos livros... Mas não exatamente os livros que vocês pensam. Eles serão como manuais de instruções a revelar quase nada de nenhum tempo. O passado me parecerá enfadonho e desnecessário, o presente escapadiço e inconstante, o futuro assustador e incerto. Os livros pelos quais serei indicado a ler nada me dirão de objetivo ou pertinente, afinal, neste mundo maravilhoso eu nada precisarei, pois vocês me darão tudo.

Portanto, eu não precisarei me preocupar com nada. Terei somente que me ater às atualizações de minhas redes sociais, os bate-papos ininterruptos que me ocuparão a mente, enquanto as coisas acontecem no mundo a se enquadrar para meu gozo. O prestígio tecnológico a envaidecer-nos para que nos sintamos como deuses a olhar para o mundo exibido na palma da mão. E quando eu chegar à universidade saberei exatamente o que escolher: a graduação mais pragmática, aquela que proverá os melhores salários e oportunidades de mercado. Isto me será de imensa valia! Sim, pois neste mundo maravilhoso, eu não saberei o que quero. Portanto, precisarei de vocês com seus meios objetivos a me indicar a direção certa.

E finalmente quando chegar a fase adulta, arranjarei estágios empolgantes, serei posto sentado a uma mesa onde sobre ela haverá muito que fazer, funções excitantes que precisam ser desempenhadas para a continuidade deste mundo maravilhoso, é o que dirão. E manterei o ritmo, darei produção, não farei perguntas... Aliás, este mundo maravilhoso não me ensinou a fazer perguntas, pois aqui já existem respostas prontas pra tudo.

Adestrado que serei, não restará dúvidas e me verei efetivado num oportuno emprego. Jamais saberei quem são meus chefes ou de onde vem o dinheiro que me pagam. Serei apenas a minúscula engrenagem de uma gigantesca máquina cuja função eu não sei qual é. Mas neste mundo maravilhoso eu me sentirei seguro com tanta gente trabalhando pelo bem desta máquina... Remar no mesmo sentido, este é o lema!

Precisarei de uma esposa, é o que dirão. E desprovido da inútil capacidade de discernimento, encontrarei aquela que melhor se encaixar à minha proposta de construir o lar perfeito. Seremos um casal regrado, assinaremos papéis, vulgarizaremos nossa relação para satisfazer os olhares alheios, daremos justificativas de nossos atos, não nos conheceremos, pois isto não é importante, desde que não falte dinheiro para prover o nosso querido lar. Neste mundo maravilhoso seremos almas gêmeas sem almas: dois seres igualmente robotizados, adestrados e absolutamente resolutos... Saberemos exatamente qual será o próximo passo.

Acordaremos às seis da manhã e este será o único instante do dia em que nos veremos. Minha alma gêmea sem alma tomará um caminho e eu, outro ser igualmente sem alma, seguirei por outro. Enfrentaremos trânsito, atestaremos através de digitais a nossa presença no trabalho, sentar-nos-emos em cadeiras enrijecidas, seremos a engrenagem da maquina outra vez, função importante esta. Pararemos por alguns minutos para nos nutrir, correremos outra vez para nossas enrijecidas cadeiras, muitas coisas pra serem feitas; repetitivos relatórios, repetitivos memorandos, repetitivas declarações, repetitivas digitações, repetitivo trabalho... Ah, este mundo maravilhoso sabe mesmo como se replicar.

Então nos tornaremos uma família bem sucedida. Obteremos todo o conforto oriundo de nosso consumismo exacerbado, impensado. Adquiriremos coisas sem saber suas reais funções; compraremos objetos que ajudem a nos manter sob o alinhamento da rotina semanal. Trocaremos objetos por outros objetos que a princípio parecerão importantes e mais modernos, mas na verdade este mundo maravilhoso não nos dará explicações para que possamos compreender as razões pelas quais temos que consumir tanto... Ora, isso não será preciso, porque estaremos protegidos e garantidos, basta que continuemos fazendo as escolhas certas.

Finalmente chegarei à minha tão aguardada vez da multiplicação. Serei eu a inserir outra vida no mundo que terá como desejo primordial, espelhar-se no pai. Depositarei minha semente numa mulher transformada em máquina de conceber. E esta gerará a vida que dará continuidade a este mundo maravilhoso. E enquanto eu me preparo para seguir para o limbo compulsório da previdência que me manterá vivo por mais algum tempo, terei o sentimento de missão cumprida, enquanto olho e vejo meu estimado filho contar a sua história deste mundo maravilhoso... É chegada a sua vez de narrar meu filho:

“No dia em que eu finalmente nascer, ah, ninguém me segura!”.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

RESENHA DE LIVRO – A DAMA FANTASMA


Sem mais delongas: homem é acusado de assassinar a própria esposa, encontrada morta em sua casa, e a única pessoa que pode ajudar a atestar sua inocência e livrá-lo da cadeira elétrica, é uma mulher sem nome, sem rosto, sem ao menos alguma testemunha que a tenha visto junto ao protagonista na noite em que ocorreu o assassinato. Em suma, ela é a DAMA FANTASMA do título.

Apesar de uma capa agradável e um autor famoso por sua obra JANELA INDISCRETA, foi por conta desta curta e intrigante sinopse que levei este livro pra casa. Cornell Woolrich tenta desenvolver uma trama envolvente e enigmática, mas seu protagonista é apático, embora não chegue a ser repugnante. O livro também possui alguns instantes confusos, principalmente da metade em diante. E embora tudo seja explicado no decorrer da leitura, acabamos aterrissando num final que prova que apenas manter o mistério não garante o brilhantismo da obra.

Aborrecido por conta de tumultos conjugais, Scott Henderson sai pra noite para espairecer, encontra uma moça que aceita lhe fazer companhia, mesmo sem que haja formalismos triviais como trocar nomes ou qualquer informação sobre o outro. O casal entra num acordo inusitado e passa algumas horas na noite de Nova York, curtindo os prazeres boêmios de maneira descompromissada. O problema começa quando Henderson chega em casa e da de cara com uma equipe policial já em processo de investigação por conta da esposa encontrada morta no quarto. O cara se torna o principal suspeito e a única pessoa que pode comprovar que ele não esteve em casa no instante do crime é uma mulher sem nome, a qual ele não se lembra de nada, nem sequer de detalhes físicos. E pra piorar a situação, a polícia investiga todos os recintos em que o casal esteve, onde as pessoas afirmam reconhecer Henderson, mas ninguém parece se lembrar da mulher que esteve em sua companhia.

A situação do pobre condenado se torna tão improvável, que em alguns instantes chegamos a pensar que estamos diante de um caso de insanidade e que o final descambará num crime de delírio psicopata... Nisso, a obra tem sua genialidade.

Uma das melhores cenas do livro fica por conta da narração de uma moça sentada no balcão de um bar, encarrando de maneira acintosa e causando constrangimentos no barman. A narrativa detalhista do autor, circunstanciando uma relação de pura intimidação oriunda de um ser a subjugar outro com seu irrefreável olhar, é simplesmente extraordinária.

Mas nem tudo são acertos, e Cornell parece perder o fôlego conforme a trama avança. Achei que o autor se enrola um pouco da metade em diante, inserindo situações embaraçosas orquestradas em sua maioria por um novo personagem que surge para tentar ajudar o amigo condenado à morte. A história muda e ficamos com este personagem e suas investigações confusas, até chegarmos ao desfecho que, embora não fora previsível, passou longe de ser brilhante.

A DAMA FANTASMA é um thriller policial com ótima premissa, diálogos funcionais, protagonistas apáticos, situações enfadonhas e um final morno. Tem como ponto alto a narrativa, mas acho que ficou devendo no modo com que algumas circunstâncias foram expostas.