Na literatura deixada por
quem sobreviveu ao Holocausto há pouco a ser lido que vá além da análise
genérica que não soe repetitivo; quase todos os relatos são parecidos e, apesar
de sua conotação extremamente trágica, geralmente seguem a esperada linha
testemunhal da crueldade humana. E embora essa constatação possa ser entendida
como desdém, eu confesso que só continuo insistindo nesse tipo de conteúdo por
querer encontrar um pouco daquilo que não estava escancarado aos olhos; a
narrativa que me fascina é a da resiliência silenciosa, aquilo que não foi dito
simplesmente porque se esconde nas sombras escuras da alma humana...
Nesse sentido, O QUE OS CEGOS ESTÃO SONHANDO? é um
livro que trouxe uma perspectiva inusitada sobre a tragédia do Holocausto: fez
sua análise fria e sentimental do ocorrido sob o ponto de vista não apenas de
quem lá esteve, mas também de quem não viveu os dias de treva sob os muros de
Auschwitz. A autora Noemi Jaffe é
filha de uma sobrevivente do inferno e parte da obra é sua dissecação à cerca
do diário de sua mãe, Lili Jaffe,
documento que hoje se encontra no Museu do Holocausto de Israel.
Lili tinha dezoito anos
quando se tornou prisioneira junto com o resto de sua família, os quais ela só
reencontrou o irmão quando do término do conflito. Quando a Cruz Vermelha
resgatou e levou Lili para a Suécia, esta resolveu eternizar tudo o que havia
sofrido, fazendo uso de sua memória fragilizada, mas ainda fresca em relação à
experiência traumática. Essa é a primeira parte da composição desta obra aqui
resenhada: o diário de Lili, escrito como se ela estivesse relatando exatamente
em conformidade com o ocorrido. Temos aqui a parte genérica da obra, pois se
trata de mais um testemunho dos muitos já publicados, mundo afora (é pavoroso,
eu sei, mas é apenas outro relato que pouco se distingue de outros tantos).
A segunda parte do livro é o
que, de fato, o tornou indispensável: a autora discorre com elevada
profundidade e lisura sua pessoal jornada por tentar compreender no que sua mãe
foi transformada após a tragédia. Há momentos aqui capazes de suscitar
reflexões profundas, como quando Noemi explica a necessidade de sua genitora em
crer no destino como uma maneira de se livrar da culpa por ter sobrevivido; ou
no capítulo intitulado “mãe”, um dos mais belos textos da obra.
A percepção posterior da
filha (que exatamente narra tudo em terceira pessoa como se não fosse sobre ela
mesma) de que nada chegará a lugar algum é uma conclusão acertadíssima. Saber
que é impossível obter algum norte sobre o Holocausto ou mesmo a tentativa
ineficaz de explorar a alma de sua mãe mostra o quanto a busca pelo
conhecimento de determinado assunto acaba gerando ainda mais dúvidas; máxima
filosófica que carece de elevada humildade e entrega a derrota que eleva o ser,
pois as grandes obras deixadas neste mundo são obras inacabadas, infinitas...
Na terceira e última parte,
que de tão curto parece se tratar de um posfácio, temos a análise oriunda de outra
geração, a neta de Lili, filha de Noemi
Jaffe, que também esteve junto com a mãe em visitação às instalações de
Auschwitz e, portanto, forneceu seu olhar ainda mais distante, de quem ouve ou
lê relatos sobre o Holocausto como quem acompanha uma produção fictícia, algo
muito difícil de acreditar.
NOTA: 8