sábado, 27 de março de 2021

CRÔNICA: AMPULHETA


O café esfriou na caneca.

Café frio costuma ser indício de produtividade, pois quando se está focado no trabalho, a gente se esquece de degustar o precioso café enquanto ainda está quente. Mas a verdade não é exatamente essa! A produtividade é zero, porque eu apenas observo a tela do computador...

Outra vez vou até a cozinha e me desfaço do café no ralo da pia. Sirvo-me de um pouco mais da garrafa, que desce quentinho e esfumaçado. De volta para o escritório, pois tenho muito trabalho a fazer. Meus pés descalços atravessam o corredor, posso sentir o frio do piso que me faz pensar no dono de quiosque num litoral paradisíaco do Nordeste. Mas o que uma coisa tem a ver com a outra, você deve estar pensando. Eu explico: é que igualmente a mim, o dono do quiosque também ostenta o privilégio de poder trabalhar descalço. E acredite no que digo: isso é a coisa mais deliciosa do mundo. Pés libertos da mordaça do couro, recebendo constante frescor do mármore ou a massagem da areia morna, é sofisticação pela qual o resto da humanidade que não faz parte desse restrito grupo, anseia e trabalha incessantemente para conseguir alguns dias assim: descalço sobre o mármore ou a areia.

Contudo, sei que não é prudente associar situações favoráveis à um labor invejável; com a expansão da comunicação entre povos do mundo inteiro, sei que está cheio de relatos de gente que se considera infeliz, mesmo tendo a carteira registrada no paraíso.

Ouvi dizer que primeiro se é feliz para depois ter sucesso. Mas o que ocorre no imaginário das pessoas é precisamente o contrário.

Outro dia li o relato de um morador do Hawaii que dizia que sua vida era um inferno. Ele era corretor de imóveis, trabalhava quatorze horas por dia, havia perdido a infância dos filhos, divorciado, precisava atender clientes até nos finais de semana e, por mais bizarro que pudesse parecer, o cara não pisava numa praia há mais de oito anos.

Testemunho semelhante foi o de um sujeito que queria morrer quando ouvia alguém o acusar de ter o melhor emprego do mundo. As pessoas costumam fazer muito isso: suscitar o remorso nos indivíduos inseridos naquilo que consideram como os melhores postos do mercado... Enfim, o cara era massagista, passava mais de quinze horas do dia passeando com os dedos besuntados de gel e óleos aromáticos, nos mais diferentes e apetecíveis corpos femininos. E o infeliz dizia que não aguentava mais isso; que seus braços viviam cheios de câimbras, os pulsos doíam ininterruptamente, ele não tinha tempo nem para almoçar, tamanho era a procura pelos seus serviços... Ou seja, suas clientes estavam sob seus cuidados para relaxar e aliviar as tensões. Ninguém procura um massagista para fazer sexo! “Isso é coisa de filme pornográfico de gosto duvidoso”, desabafava o indignado massagista... Aliás, sobre sexo, ele ainda alegou que não sabia o que era isso há quase um ano.

De volta ao computador, eu continuo a pensar no emprego dos outros, mas não tenho o disparate de invejar ninguém. Também não me atrevo a dizer que o meu trabalho é o melhor do mundo, embora este me possibilite alguns privilégios, como ficar descalço.

Diante de mim, o eterno anseio humano por controle me faz lembrar da hora.

Ao lado da tela vejo a areia terminar de escorrer. Três horas haviam se passado sem que eu conseguisse escrever nem uma linha. Seguro o pequeno invólucro de vidro e o viro de ponta-cabeça. Mais três horas de areia escorrendo preguiçosamente e me fazendo compreender a vida rendendo-se à procrastinação.

Estalos os nós dos dedos, torço o pescoço e este também estala. Encho os pulmões de ar e uma formiga passeia sobre o meu teclado. Inacreditável como toda forma de existência consegue roubar minha atenção... Eu espero até que a transeunte termine sua jornada através de letras, então os dedos tocam as teclas, acho que agora conseguirei produzir alguma coisa.

É quando ouço os badalos do sino da igreja.

Onze estocadas e cada uma delas compõem uma orquestra acusatória... Pra-zo! Pra-zo! Pra-zo! Estou praticamente no fim da manhã e não houve progresso nenhum de minha parte. Areia escorrendo, sino tocando... E conforme a ressonância do sino diminui, o ventilador de teto, com suas pás indolentes, volta a ser a frequência absoluta no recinto... Não vai rolar nada, eu sei que não!

Pego a caneca de café e vou pra janela.

Céu claro, muito sol e pouca sombra. Do outro lado da rua há um terreno baldio, onde um homem mal encarado despeja entulhos com um carrinho de mão. Menos de um ano e ali era apenas uma extensão quadrangular tomada por mato rasteiro e alguns pés de mamona. Então, num belo dia, alguém teve a ideia de se desfazer de algumas sobras de materiais de construção, porque sairia mais barato se livrar do problema num terreno baldio do que contratando o serviço de coleta de entulho. Passado alguns dias e outro cidadão resolveu fazer o mesmo, afinal, se o vizinho pode, ele também pode; e depois um serralheiro concluiu que ninguém iria notar se ele desfizesse do amontoado de pó de serra que se acumulava em sua oficina, e também uma dona de casa que não sabia mais o que fazer com o fogão velho... Atualmente a prefeitura precisa mandar, toda semana, um trator e uma caçamba pra limpar o terreno, tamanha é a quantidade de entulho... Porque o ser humano é assim: precisa apenas que alguém inicie a imoralidade que já existe dentro de sua mente e, desse modo, fica justificado a execução do ato imoral de todos.

No centro da gigantesca pilha de lixo, um mastro imponente e tão enraizado ao cenário, que se tornara completamente ignorado por todos. Na ponta do mastro a placa feita de papelão com os dizeres “proibido jogar lixo”, servia de poleiro para os únicos visitantes que pareciam se divertir naquele lugar: urubus que vez ou outra apareciam para reivindicar algum ensopado que ficou tempo demais fora da geladeira ou alguma criação que, desmerecedora de um funeral adequado, tinha seus restos descartados no terreno baldio.

O homem do carrinho de mão deu meia volta e, enquanto retornava ao ponto de origem dos entulhos, olhou-me com o orgulho de um genuíno cidadão de bem, pagador de impostos e exemplo de boa conduta. Cumprimentou-me e seguiu seu caminho cantarolando alguma canção sertaneja.

Às vezes suspeito de que o mundo é apenas o que a visão alcança. Como se eu fosse um expectador de teatro, no qual a vida acontece enquanto algo está no palco. Quando os atores saem de cena, eles são devolvidos para dentro de uma caixa cheia de outros personagens. Então o diretor de cena escolhe outro boneco para entrar no palco, porque o show não pode parar!

Mas quem seria esse diretor de cena? Um alienígena super dotado? Seria Deus? Por que ele insiste com essa arte dramática e sonolenta, onde nada relatável acontece? Definitivamente, o mundo é um lugar muito mais ordinário do que a imaginação humana gostaria que fosse.

Caneca vazia, minhas pernas reclamam, pois se cansaram de sustentar meu tronco obeso. Viro-me e olho para dentro do quarto. Lá está a areia que escorre sem cessar. Metade do vidro e eu a ignoro completamente. Cotovelos! Eles escorram parte do meu peso e colaboram com as pernas cansadas. Quero ficar mais um pouco assistindo o teatro da vida.

Percebo que mais alguém acompanha a frivolidade mundana. Minha vizinha, Judite, parecendo ainda mais entediada do que eu, cotovelos igualmente apoiados no parapeito, ela fuma um cigarro e espera para ver o que o diretor de cena vai fazer agora. Então entra no próximo ato um cachorro magro de doença, verificando cada canto do terreno baldio com seu focinho hiperativo. Seu faro infalível o conduz até algumas sacolas, as quais ele rasga e retira restos de alimentos e os engole com fúria... E antes de seguir caminho, ele se encurva, bem no centro do palco e capricha numa cagada bege e cremosa.

Judite amassa a guimba no parapeito e desaparece da janela. Testemunhar um cachorro resolvendo suas necessidades fisiológicas foi demais pra ela. De fato, o diretor de cena parece ter um péssimo gosto para artes. Ou isso, ou a coisa é surpreendentemente orgânica que até Judite considerou fazer um cocozinho.

Ela é mãe de duas meninas adolescentes. Trabalha fazendo faxina para sustentar a casa e vende salgado frito nos fins de semana para complementar o orçamento. Cada uma das gurias é filha de um cara diferente. Ambos foram embora e, ao que parece, Judite se cansou de procurar por um companheiro e pendurou a chuteira... Eu nunca vi nenhum dos cabras, só escuto os resmungos da Judite quando ela está a varrer a calçada e coincide com minha tarefa de pendurar as roupas no varal.

Teve uma vez em que ela me convidou para o aniversário de uma das meninas, acho que foi a mais nova. Era festinha de treze anos, a casa ficou empesteada de moleques, teve bolo, refrigerante e os salgados fritos que a Judite faz... Eu e ela éramos os únicos adultos a nos refugiar na cozinha, tomando vodca com Coca-Cola, escorados na lateral da pia encardida.

Entre uma conversa e outra, Judite perguntou se eu gostaria de leva-la à um motel. Minha expressão de surpresa fez com que ela providenciasse uma explicação: disse que ali na casa dela não dava pra fazer amor por causa das filhas.

Achei o convite inesperado e fiquei sem reação. Não estávamos altos, pelo menos eu não estava e percebi que ela beberica vagarosamente. À menos que estivesse bebendo antes do início da festa, Judite não estava de fogo. Também nunca tinha cantado minha vizinha nem nada, sequer falávamos sobre assuntos íntimos, o respeito era tão acentuado em nossas interações, que mais se parecia com uma conversa entre um eunuco e uma assexuada.

Sorvi um pouco mais do meu copo, não sabendo pra onde olhar, mas me ensinaram que nessas horas jamais se deve olhar para o chão, porque é sinal de clausura. Então eu olhava para todos os lados, pra cima, procurando me situar no imediatismo da situação... Terminei dizendo que toparia, mais por não saber o que responder do que entusiasmo.

Outro aspecto curioso é que não havia nenhuma sensualidade no clima, ali naquela cozinha cheia de vasilhas sujas, cheiro de banha queimada, glacê e anilina. Apenas dois adultos diante de uma trivialidade descabida: o sexo é um elemento quebradiço que precisa ser conduzido de modo concupiscente desde sua proposta até o ato final, tudo em nome do prazer. Mas quando levei essa ideia para um papo de bar com um colega, ele não hesitou em dizer que sexo é algo superestimado pelas pessoas.

Talvez meu colega e Judite pensem de maneira semelhante: por que gastar tempo e sofisticação em algo cuja obviedade parece soar mais eficiente? Se há duas pessoas solteiras, avizinhadas pela circunstância, nada mais natural que elas façam sexo; tão natural quanto macacos bonobos que dividem a mesma árvore.

Finalmente olhei para Judite e, pela primeira vez, tentei enxergar em sua existência, aquilo que jamais houvera me ocorrido: algo a ser desejado, embora eu imaginasse que isso também não fizesse muita diferença, dado o pragmatismo do convite feito há pouco.

Mas era necessário, pois há muito tempo que eu perdera a confiança numa ereção garantida.

Assim como eu, o tempo havia exigido muito dela; um cansaço intenso em seus modos, rugas por toda parte de sua epiderme oleosa, a flacidez cujas vestimentas folgadas já não conseguiam esconder. Judite sempre olhava através de meia pálpebra e quase não sorria, talvez pela consciência de seus dentes amarelados por conta dos longos anos como fumante ativa..., mas talvez o segredo para seguir com essa concepção orgânica de vida estivesse naquele seu jeito de olhar o mundo pela metade. Do contrário, Judite notaria a protuberância de meu abdômen, ou o enfado nas minhas feições. Se abrisse mais os olhos, ela veria minha barba mal feita e a verruga roxa no pescoço. Uma análise mais apurada de mim, faria com que notasse minha sudorese excessiva, o sedentarismo progressivo e concluiria que um motel comigo seria uma péssima ideia.

Pode ser que ainda mais sugestivo do que a coincidência de dois solteiros vizinhos, seja a precariedade evidente nestes mesmos solteiros; seres que já não cabem na fantasia libidinosa de ninguém, então se identificam em sua escassez e fazem sexo por mera conveniência.

Lá fora o show da vida seguia com sua exibição enfadonha. A caneca vazia e as pernas doloridas me convenceram a voltar ao computador. Outra vez os badalos de sino... Pra-zo!, pra-zo!

A areia escorrendo pelo funil do vidro, ritmada pelo sino ao longe, parecia descer com mais vigor agora, como se minha percepção do tempo anunciasse o que espera a todos nós: a finitude! E essa noção faz com que a areia escoe mais rápido.

Ampulheta deve ter sido a primeira pretensão humana de quantificar o tempo.

domingo, 7 de março de 2021

LIVRO GRÁTIS – A COLETORA DE LÁGRIMAS

Caroline Passim Krushev é o arquétipo de mulher realizada. Casou-se com um advogado bem sucedido, tem um filho lindo e saudável, mora em cobertura de frente para o mar de Camburí, no Espírito Santo. A vida de causar inveja em qualquer indivíduo que almeje ascender na sociedade de consumo a qual estamos inseridos.

Ou seja, o que faltaria na vida desta mulher que conseguiu alçar o topo capitalista sem grandes esforços? Talvez essa pergunta seja respondida a cada página virada deste imprevisível “A COLETORA DE LÁGRIMAS”; a amarga noção de que para pessoas inseridas num mundo de consumos e aparências, lhes falte significado existencial.

Consciente desta precariedade, Caroline vive seus dias enfadonhos procurando empregos online ou indo a entrevistas. Cismou que a obtenção de um trabalho digno lhe proporcionaria vigor; ela queria ser alguém que tivesse o mínimo de importância. No entanto, o marido é inflexível contra a ideia de a esposa trabalhar e sempre usa argumentos pragmáticos que a convençam a desistir de um emprego. Caroline então segue seus dias de princesa moderna, confinada num apartamento sofisticado, esperando que o dia termine, para que ela possa morrer mais um pouco no dia seguinte.

Mas a vida é uma incógnita e costuma sacudir criaturas adormecidas quando menos se espera. É o que acontece com a protagonista, quando recebe uma mensagem anônima pelo correio. Sua vida muda completamente assim que ela consegue traduzir o conteúdo cifrado da mensagem. E o que era aparentemente inofensivo, se mostra um ardiloso presságio de morte: a mensagem deu a moça os precisos dados de quando e onde um acidente fatal aconteceria.

Era apenas a primeira de muitas outras mensagens que seriam entregues à receosa moça, que não sabe exatamente o que fazer com os prenúncios de morte que não cessam de chegar até ela. Só que mesmo assustada e insegura, Caroline, aos poucos, tenta avisar a cada um dos indivíduos enunciados para morrer, o que lhes espera.

Mas o destino é também um lugar incontrolável e arenoso. E conforme Caroline tenta ir ao encontro de pessoas marcadas para morrer, descobre que não consegue ter nenhum domínio das mais distintas situações: como quando é confundida com a amante de um advogado marcado pela mensagem; ou quando encontra uma noiva desenganada e tem-se início um jogo delicado de tentar penetrar em sua mente esmorecida; quando ela vai à busca de uma mulher que inesperadamente parece saber quem ela é..., ou quando um presidiário moribundo começa a lhe relatar o que realmente significa ser uma Coletora de Lágrimas.

Neste ínterim, Caroline vive situações complicadas que lhe fazem compreender que nada funciona como ela espera que vá acontecer; que a hora da morte está em seu conhecimento, mas isso parece, cada vez mais, uma informação irrelevante. Ao mesmo tempo, tal situação suscita o ego na moça, que ironicamente passa a ver o vazio aparentemente invencível de seu ser, sendo escoado pela nova função de levar a mensagem da morte para aqueles que estão assinalados pelo destino.

Caroline se vê dividida. Sabe que a realidade é bem diferente do que acontece em ficções premonitórias, onde mortes espetaculares acontecem sob o olhar do mensageiro e pessoas que irão morrer aceitam de bom grado a notícia funesta que lhes é dada.

Não. Aqui não há lugar para previsibilidades; Caroline encontra, o tempo inteiro, pessoas entediadas com suas rotinas e que obviamente não sabem que irão morrer, cujas situações banais vão se intercalando com a vida de nossa heroína, até o derradeiro desfecho que nada terá de extraordinário. Apenas se trata da finitude que nos acompanha diariamente.

A história é narrada em primeira pessoa, com exceção de pequenas introduções que abrem cada capítulo na terceira pessoa; prefácios em que acompanhamos a visita de Caroline a um presidiário. E o que deveria ser apenas mais uma mensagem da morte a ser entregue, se transforma num diálogo revelador entre Caroline e o preso... Até uma última e impactante confidência, que deixará Caroline em frangalhos.

O autor mostra nesta trama que aqui não há espaço para grandes heróis; tipos que se dotam de conhecimento resoluto assim que algo extraordinário ocorre... Não, nesta obra, apenas a dúvida é o que acomete a personagem. E quando um pouco diferente, ela se vê envaidecida por ser detentora de informações que sequer consegue controlar. E mesmo sendo ajudada por sua vizinha – uma jovem irreverente e descolada, que com todo seu alto estima, tenta colaborar com Caroline – ela se vê incapaz de usar de maneira benéfica, as informações que detém.

A COLETORA DE LÁGRIMAS é uma trama caquética, mas contada de forma moderna.  Com uma condução textual que traz para o leitor a sensação de insegurança constante, em que nada é o que parece ser quando se lida com algo tão obscuro e pernicioso, como a hora da morte da cada ser vivo.

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