sábado, 23 de março de 2024

CRÔNICA: RUPTURA

De repente, olho para a estante e lá está o livro requisitado, fazendo-me engolir o orgulho. Há alguns dias, precisei ser contundente, o que me fez pensar sobre quando foi que começou essa necessidade de validar minhas certezas. Seria resultado da ruptura? Ou sempre inspirei pouca credibilidade e, quando se inspira pouca credibilidade é preciso um elemento extra para que sejamos levados em consideração..., muitas vezes esse elemento pode ser um grito.

– Já disse que o livro não está aqui!

Não tenho sono, acho que eu nunca tive. Perambulo pela casa, sem roupas, um silêncio sufocante que permite apenas o tilintar dos gelos no copo. Doses e mais doses de uísque para ajudar a diminuir a melancolia de mais uma noite preenchida pela liberdade que tanto reivindiquei.

Agora tenho as profundezas desse umbral tétrico que é minha casa, exclusivamente para os passeios noturnos e indefinidos, através de cômodos com pouca mobília, os armários vazios, gavetas ocas e leves, nenhum cheiro de loção importada ou creme hidratante; nada de vozes, aparelhos ligados, crianças brincando, tampas de panelas despencando no chão, nada de rastros artificiais, apenas poeira onde antes havia objetos, porta-retratos, vasos de flores, eletrodomésticos...

Mas a estante de livros continua lá e a primeira coisa que vejo, ao acender a luz da sala, é aquele maldito livro. Eu garanti que havia procurado em todo canto, tinha absoluta certeza de que não estava aqui.

– Deve estar no meio dos seus livros – ela sugeriu, coisa que neguei categoricamente. Por que diabos um livro dela estaria no meio dos meus? Eu nem gosto daquele autor. Parecia uma hipótese tão absurda, que sequer me dei ao trabalho de verificar.

Escancarado o meu equívoco, agora pairava a óbvia questão: como o livro favorito dela veio parar na minha estante? Se não tivesse acendido a luz, ele continuaria ali, sorrateiro entre outros miolos enfileirados, talvez não fosse encontrado por anos, eu bem sei que já perdi livros na minha própria estante que foram encontrados somente anos depois, quando já os havia dado como perdidos.

Diferente dela, eu perdia livros no meio dos meus livros. Mas aquela mulher representava a organização que jamais pude ter. Levou consigo sua imensa biblioteca, talvez algo em torno de mil volumes, e apesar de o número soar grandioso, era uma quantidade incapaz de fazer com que ela se esquecesse daquele, talvez por se tratar de um de seus favoritos ou ela teria esquecido de propósito para ter uma desculpa para me ligar. Eu bem sei que não tem nada a ver com favoritismo, ela era como uma pastora dedicada que sabe quando perde uma ovelha de seu vasto rebanho de mil cabeças. Sei que parece uma ideia deífica, mas era assim que ela lidava com suas coleções.

Apanho o celular, abro o aplicativo de mensagem. “Achei seu livro”, eu digito, mas não envio. Fico observando as letras enfileiradas no editor, aguardando um destino. Dou um gole robusto no copo, a bebida desce macia, enquanto na outra mão o dedo polegar pressiona a tecla que vai engolindo letra após letra, até o editor ficar limpo. Desligo o aparelho e o jogo na cama; já que não consigo dormir, que ele o faça por mim.

Não quero dar esse gostinho pra ela. Não quero que saiba, mais uma vez, que estava certa e que seu precioso livro, de fato, estava na minha estante, exatamente como havia cogitado. Ela não está mais aqui para dizer que sabia, com aquele sorriso irritante de quem tem o controle sobre qualquer circunstância, quase que magicamente. Noventa por cento das coisas ela sempre sabia onde estavam, mesmo as mais insignificantes e minúsculas, enquanto as outras dez por cento ela encontrava fazendo uso de uma intuição demoníaca.

Seria isso o que ela tinha de mais insuportável? Aquela organização exagerada, quase uma doença?

Por outro lado, se não avisasse da descoberta do livro, eu teria minha honestidade colocada em perspectiva. Ela sabe que a porcaria do livro está aqui, portanto, deve estar neste momento conjecturando as hipóteses pelas quais eu não o quero devolver. Talvez pense que o escondi para ter alguma coisa dela para guardar comigo; ou quem sabe acredite no meu lado vingativo que surrupia apenas pelo prazer de vê-la desfalcada de algo; ou quem sabe o autor da obra tenha escrito aforismos que me fazem lembrar os tempos em que éramos apaixonados um pelo outro.

Seja como for, é melhor devolver o maldito livro. Amanhã eu faço isso...

Sirvo-me de outra dose cavalar, enquanto a mente traz recordações daquela tarde definitiva, há três meses, quando a grande mudança aconteceu e nós parecíamos tristes e ao mesmo tempo otimistas, dizíamos um para o outro que vai ser melhor assim.

Pois nunca foi melhor, tampouco pior, foi uma mudança sem adjetivo. Gostamos de ter esse olhar dicotômico sobre as coisas, mas na vida quase nada funciona assim. Uma circunstância pode ser boa ou ruim, mas pode também ser diferente, incompreensível, inusitada, morna... contundo, algumas certezas podem ser verificadas.

Por exemplo, quando uma pessoa muito próxima sai da nossa vida, deixa-nos uma sensação de desajuste, como quando se sonha com situações excêntricas sem haver uma justificativa plausível que decifre aquele universo contraditório, e segue-se o desassossego do sonho, onde vivenciamos tudo sem o acalento da procedência. Isso é diferente de quando morre alguém próximo, pois a morte é definitiva demais, não há o consolo da dúvida, nem o afago da esperança..., quando alguém próximo morre, ocorre-nos um vazio que jamais será preenchido, e quanto maior for e tempo de uma vida, mais e mais partes vazias vão se acumulando em nós.

A velhice é uma instância de incontáveis vazios.

Outra certeza é o desconforto que ocorre no reencontro com a pessoa que foi embora. É curioso como poucos dias separados e já se nota mudanças na aparência, no comportamento, no modo de se expressar, nas feições..., a metamorfose acelerada soa quase como uma ofensa, como se o outro houvesse passado por um exorcismo e agora se encontra completamente livre da possessão que representávamos em sua vida.

O cumprimento é esquisito, as epidermes já não se reconhecem mais. Os olhares são evitados como se pairasse no ar o receio da reincidência. A mente não sabe formular assuntos coerentes, restando apenas aquela sucessão de clichês de falar sobre o tempo.

Então chegou o derradeiro dia em que esbarrei com ela passeando de mãos dadas com outro sujeito, e a confirmação de que algo havia mudado de maneira irreversível. Ocorre aquela falsa cordialidade, o cumprimento é cauteloso, escuto ele perguntar quem sou eu e ela dizer resumidamente “meu ex”. Depois o distanciamento dos passos não me permite ouvir mais, se ele fez mais perguntas a meu respeito, se ela se delatou por um gaguejo ou se ele é confiante demais e ignorou minha existência no minuto seguinte...

Não importa.

Volto para o quarto, o silêncio sendo cortado apenas pelo ruído do ventilador que deixei ligado. Resgato o celular sobre a cama e abro o aplicativo de mensagens.

“Encontrei seu livro”.

Dessa vez envio o texto e encerro essa besteira. Esqueci meu copo na estante de livros, então volto para buscá-lo, a noite vai seguir seu curso lento e preciso de mais um pouco de álcool circulando em minha corrente sanguínea para me livrar da melancolia.

Eis outra certeza existente na ruptura: as promessas que são feitas nesse instante da vida, jamais serão cumpridas, como aquela falácia de que sempre seremos amigos. Foi apenas uma promessa, cujo intuito era tornar aquela passagem menos dolorosa.

                                                                             ***

TEXTO PUBLICADO NO SITE RECANTO DAS LETRAS, NO ANO DE 2014

domingo, 10 de março de 2024

RESENHA DE LIVRO – A CAVERNA

No livro VII de A República de Platão, encontra-se o mito da caverna, talvez a alegoria mais conhecida e esmiuçada do filósofo grego, cujo relato narra pessoas que vivem aprisionadas numa caverna, onde as sombras que se projetam do lado externo é tudo o que eles reconhecem e identificam como mundo. Quando um dos presos consegue fugir, descobre que do lado de fora da caverna existe um lugar imenso e infinitamente abundante, jamais imaginado. Então ele retorna para a caverna para convencer os outros prisioneiros a sair da restrita condição de clausura, mas eis que acaba sendo morto pelos próprios presos, que o consideram um agitador e mentiroso.

Sobre essa alegoria, as perguntas que sempre inspiraram pensadores ao longo da história do pensamento é: afinal, quem é que controla as sombras que se projetam nas paredes da caverna? Quem confinou seus prisioneiros de tal forma imutável e definitiva? Qual é o intuito disso? Quem se beneficia com essa noção de inexistência do lado externo?

O escritor português José Saramago, fazendo uso desse romance, cujo título faz referência ao mito de Platão, oferece-nos uma reflexão sobre tais perguntas, dentro de um mundo pós moderno que é bem diferente da antiga sociedade grega, mas que segue o modelo de subordinação do mito da caverna, talvez de forma mais sutil.

Na distopia de Saramago, acompanhamos Cipriano Algor, que vive com a filha e o genro numa humilde olaria, onde o sustento é retirado do barro que usa para fabricar artesanatos, os quais vende para uma megaestrutura moderna denominada Centro; uma espécie de shopping-condomínio, onde grande parte da sociedade vive confinada.

Apesar da vida difícil de muito labor, Cipriano é o arquétipo do artesão comum, que ganha a vida com o próprio esforço e, portanto, encontra nessa existência algum significado; ele representa o oposto do que seria uma vida pautada pelas condições capitalistas de subsistência oferecidas pelo imponente e irrecusável Centro, lugar onde as pessoas vivem pautadas pelo consumo e artificialidade. É neste cenário que pairam as críticas contundentes de Saramago sobre a forma de vida da sociedade moderna, na qual a uniformidade é imposta no coletivo, de modo a massacrar impiedosamente aqueles que se recusarem a aderir seu modo de vida.

A noção de desvalia do artesão Cipriano fica evidente quando seu maior e talvez único cliente, o Centro, comunica-o de que não comprarão mais seus artesanatos, porque os clientes consideram o material muito antiquado, caro e os estão substituindo por utensílios de plástico, mais leves e inquebráveis. Desse ponto, começa-se um conflito na cabeça do protagonista, que não sabe como fará para continuar provendo o sustento da família. A filha de Cipriano, Marta, tem a ideia de fabricar bonecos de barro para oferecer ao Centro, mas apesar de começarem a fabricação dos bonecos, a medida soa como uma solução improvável e fadada ao mesmo destino dos demais artesanatos fabricados anteriormente.

O genro de Cipriano é funcionário do Centro e espera uma promoção de cargo, para então poder levar esposa e o sogro para morar em definitivo num dos condomínios do Centro, ideia que aumenta o desconforto em Cipriano, que o tempo todo sustenta um ceticismo em relação aquele modelo estrutural de vida.

Aquela cidade comercial ignora os afetos e necessidades intrínsecas do ser humano, valorizando o modo de vida industrializada e tecnocrática.

Cipriano é um homem perdido, descaracterizado, passa então a crer que sua profissão não existe mais por evidente impossibilidade de competir com as megaestruturas modernas e impositivas. O sistema de poder totalizante que o Centro representa, devora todo o tipo de mão de obra artesanal e intelectual, condicionando a sociedade à um único caminho possível para se distanciar da miséria: a rendição total às condições substanciais arquitetadas por este Centro.

A complexidade narrativa do livro me parece provocativa e instigante, há em suas entrelinhas uma série de metáforas; embora fora do Centro o cotidiano das pessoas soe como algo precário e difícil, ao mesmo tempo acompanhar o avanço das personagens nos faz pensar que é justamente esse lugar aparentemente miserável, a única possibilidade de encontro com a verdadeira natureza do ser humano, o significado existencial.

Surge então na trama um cachorro na olaria, que sem pedir licença, ocupa a casinha que era do antigo animal, e assume a função de religar o sentido de família daquelas pessoas, que parece ter se perdido.

A Caverna é mais uma excelente obra de Saramago, que escancara o perverso modo de vida artificioso e fácil de pseudoexistência, e aponta para a necessidade de se comungar com a verdadeira humanidade que se perdeu em nós.

NOTA: 8,7