De repente, olho para a estante e lá está o livro requisitado, fazendo-me engolir o orgulho. Há alguns dias, precisei ser contundente, o que me fez pensar sobre quando foi que começou essa necessidade de validar minhas certezas. Seria resultado da ruptura? Ou sempre inspirei pouca credibilidade e, quando se inspira pouca credibilidade é preciso um elemento extra para que sejamos levados em consideração..., muitas vezes esse elemento pode ser um grito.
– Já disse que o livro não
está aqui!
Não tenho sono, acho que eu nunca
tive. Perambulo pela casa, sem roupas, um silêncio sufocante que permite apenas
o tilintar dos gelos no copo. Doses e mais doses de uísque para ajudar a
diminuir a melancolia de mais uma noite preenchida pela liberdade que tanto
reivindiquei.
Agora tenho as profundezas
desse umbral tétrico que é minha casa, exclusivamente para os passeios noturnos
e indefinidos, através de cômodos com pouca mobília, os armários vazios,
gavetas ocas e leves, nenhum cheiro de loção importada ou creme hidratante; nada
de vozes, aparelhos ligados, crianças brincando, tampas de panelas despencando
no chão, nada de rastros artificiais, apenas poeira onde antes havia objetos,
porta-retratos, vasos de flores, eletrodomésticos...
Mas a estante de livros
continua lá e a primeira coisa que vejo, ao acender a luz da sala, é aquele
maldito livro. Eu garanti que havia procurado em todo canto, tinha absoluta
certeza de que não estava aqui.
– Deve estar no meio dos seus
livros – ela sugeriu, coisa que neguei categoricamente. Por que diabos um livro
dela estaria no meio dos meus? Eu nem gosto daquele autor. Parecia uma hipótese
tão absurda, que sequer me dei ao trabalho de verificar.
Escancarado o meu equívoco,
agora pairava a óbvia questão: como o livro favorito dela veio parar na minha
estante? Se não tivesse acendido a luz, ele continuaria ali, sorrateiro entre
outros miolos enfileirados, talvez não fosse encontrado por anos, eu bem sei
que já perdi livros na minha própria estante que foram encontrados somente anos
depois, quando já os havia dado como perdidos.
Diferente dela, eu perdia
livros no meio dos meus livros. Mas aquela mulher representava a organização
que jamais pude ter. Levou consigo sua imensa biblioteca, talvez algo em torno
de mil volumes, e apesar de o número soar grandioso, era uma quantidade incapaz
de fazer com que ela se esquecesse daquele, talvez por se tratar de um de seus
favoritos ou ela teria esquecido de propósito para ter uma desculpa para me
ligar. Eu bem sei que não tem nada a ver com favoritismo, ela era como uma
pastora dedicada que sabe quando perde uma ovelha de seu vasto rebanho de mil
cabeças. Sei que parece uma ideia deífica, mas era assim que ela lidava com
suas coleções.
Apanho o celular, abro o
aplicativo de mensagem. “Achei seu livro”, eu digito, mas não envio. Fico
observando as letras enfileiradas no editor, aguardando um destino. Dou um gole
robusto no copo, a bebida desce macia, enquanto na outra mão o dedo polegar
pressiona a tecla que vai engolindo letra após letra, até o editor ficar limpo.
Desligo o aparelho e o jogo na cama; já que não consigo dormir, que ele o faça
por mim.
Não quero dar esse gostinho
pra ela. Não quero que saiba, mais uma vez, que estava certa e que seu precioso
livro, de fato, estava na minha estante, exatamente como havia cogitado. Ela
não está mais aqui para dizer que sabia, com aquele sorriso irritante de quem
tem o controle sobre qualquer circunstância, quase que magicamente. Noventa por
cento das coisas ela sempre sabia onde estavam, mesmo as mais insignificantes e
minúsculas, enquanto as outras dez por cento ela encontrava fazendo uso de uma
intuição demoníaca.
Seria isso o que ela tinha de
mais insuportável? Aquela organização exagerada, quase uma doença?
Por outro lado, se não
avisasse da descoberta do livro, eu teria minha honestidade colocada em
perspectiva. Ela sabe que a porcaria do livro está aqui, portanto, deve estar
neste momento conjecturando as hipóteses pelas quais eu não o quero devolver.
Talvez pense que o escondi para ter alguma coisa dela para guardar comigo; ou
quem sabe acredite no meu lado vingativo que surrupia apenas pelo prazer de
vê-la desfalcada de algo; ou quem sabe o autor da obra tenha escrito aforismos
que me fazem lembrar os tempos em que éramos apaixonados um pelo outro.
Seja como for, é melhor
devolver o maldito livro. Amanhã eu faço isso...
Sirvo-me de outra dose
cavalar, enquanto a mente traz recordações daquela tarde definitiva, há três meses,
quando a grande mudança aconteceu e nós parecíamos tristes e ao mesmo tempo otimistas,
dizíamos um para o outro que vai ser melhor assim.
Pois nunca foi melhor,
tampouco pior, foi uma mudança sem adjetivo. Gostamos de ter esse olhar
dicotômico sobre as coisas, mas na vida quase nada funciona assim. Uma
circunstância pode ser boa ou ruim, mas pode também ser diferente,
incompreensível, inusitada, morna... contundo, algumas certezas podem ser
verificadas.
Por exemplo, quando uma pessoa
muito próxima sai da nossa vida, deixa-nos uma sensação de desajuste, como
quando se sonha com situações excêntricas sem haver uma justificativa plausível
que decifre aquele universo contraditório, e segue-se o desassossego do sonho,
onde vivenciamos tudo sem o acalento da procedência. Isso é diferente de quando
morre alguém próximo, pois a morte é definitiva demais, não há o consolo da
dúvida, nem o afago da esperança..., quando alguém próximo morre, ocorre-nos um
vazio que jamais será preenchido, e quanto maior for e tempo de uma vida, mais
e mais partes vazias vão se acumulando em nós.
A velhice é uma instância de
incontáveis vazios.
Outra certeza é o desconforto que
ocorre no reencontro com a pessoa que foi embora. É curioso como poucos dias
separados e já se nota mudanças na aparência, no comportamento, no modo de se
expressar, nas feições..., a metamorfose acelerada soa quase como uma ofensa,
como se o outro houvesse passado por um exorcismo e agora se encontra
completamente livre da possessão que representávamos em sua vida.
O cumprimento é esquisito, as
epidermes já não se reconhecem mais. Os olhares são evitados como se pairasse
no ar o receio da reincidência. A mente não sabe formular assuntos coerentes,
restando apenas aquela sucessão de clichês de falar sobre o tempo.
Então chegou o derradeiro dia
em que esbarrei com ela passeando de mãos dadas com outro sujeito, e a
confirmação de que algo havia mudado de maneira irreversível. Ocorre aquela
falsa cordialidade, o cumprimento é cauteloso, escuto ele perguntar quem sou eu
e ela dizer resumidamente “meu ex”. Depois o distanciamento dos passos não me
permite ouvir mais, se ele fez mais perguntas a meu respeito, se ela se delatou
por um gaguejo ou se ele é confiante demais e ignorou minha existência no
minuto seguinte...
Não importa.
Volto para o quarto, o
silêncio sendo cortado apenas pelo ruído do ventilador que deixei ligado.
Resgato o celular sobre a cama e abro o aplicativo de mensagens.
“Encontrei seu livro”.
Dessa vez envio o texto e encerro essa besteira. Esqueci meu copo na estante de livros, então volto para buscá-lo, a noite vai seguir seu curso lento e preciso de mais um pouco de álcool circulando em minha corrente sanguínea para me livrar da melancolia.
Eis outra certeza existente na ruptura: as promessas que são feitas nesse instante da vida, jamais serão cumpridas, como aquela falácia de que sempre seremos amigos. Foi apenas uma promessa, cujo intuito era tornar aquela passagem menos dolorosa.
***
TEXTO PUBLICADO NO SITE RECANTO DAS LETRAS, NO ANO DE 2014