quinta-feira, 27 de outubro de 2022

CRÔNICA - NÃO FARÁ DIFERENÇA ALGUMA, POIS JÁ PERDEMOS!

Não fará a menor diferença o número que apertarmos na urna eletrônica, próximo domingo..., pois nós já perdemos!

Recentemente, encontrava-me preso num estressante engarrafamento no centro da cidade onde moro, quando um homem de meia idade surgiu em minha janela com um sorriso encabulado no rosto. Baixei o vidro e, sem cerimônias, ele foi me perguntando seu eu estava interessado em comprar um saquinho de pururucas que sua esposa havia feito. Agradeci e disse que não tinha interesse. Minha única vontade era que aquela fila infernal progredisse e eu pudesse ir pra casa. Ainda sorrindo desconfortavelmente, o homem perguntou se eu não poderia ajudá-lo com algum dinheiro... Friamente falei que não tinha. Notei os olhos dele ficando rasos quando seguia para o carro de trás e eu fechava o vidro, completamente indiferente.

Por isso não fará a menor diferença o número que apertarmos na urna eletrônica, próximo domingo..., pois nós já perdemos!

Outro dia, estava dentro de um ônibus lotado, a caminho de casa. Era começo de noite, havia muito congestionamento e atrasos nos coletivos, cujo espaço interno era disputado por trabalhadores e estudantes. No trajeto, o ônibus parou para que uma mulher grávida embarcasse, apesar da superlotação e mesmo sob o risco de alguém atingir sua barriga, que já se encontrava bem saliente. Após alguns minutos ela se convenceu de que ninguém lhe cederia um lugar para se sentar, e simplesmente se espremeu entre os passageiros que estavam em pé e foi se sentar na escada do ônibus.

Por isso não fará a menor diferença o número que apertarmos na urna eletrônica, próximo domingo..., pois nós já perdemos!

Como faço todos os dias nos horários de almoço, fui até a praça do centro da cidade para ler um pouco e, de imediato, encontrei um assento na sombra, o que não é muito simples de se conseguir. Pensando na enorme sorte, corri para me apossar do banquinho, foi quando notei o motivo pela qual ninguém havia sentado ali; é que o banquinho estava todo respingado de sangue seco. Mesmo com certo asco, tentei me encolher no canto do assento, até que encontrasse outro lugar para ler, foi quando escutei dos taxistas que trabalham naquele ponto, que na noite anterior um sujeito sem teto havia sido linchado até a morte por outros moradores de rua, exatamente naquele banquinho.

Por isso não fará a menor diferença o número que apertarmos na urna eletrônica, próximo domingo..., pois nós já perdemos!

Nesta mesma praça, todos os dias cumprimento um homem muito velho cuja idade avançada o faz caminhar de forma lenta e sôfrega, porém, mesmo naquela altura de sua vida ainda precisa vender picolés puxando um carrinho, as mãos tremendo ao conduzir seu instrumento de escravização. Sempre que ele passa por perto de uma lixeira verifica seu interior à procura de latas de alumínio para vender..., um idoso que facilmente deve ter mais de 70 anos e ainda precisa sair de casa para ganhar o sustento, sob o sol impiedoso de Colatina.

Por isso não fará a menor diferença o número que apertarmos na urna eletrônica, próximo domingo..., pois nós já perdemos!

Um enorme gato branco apareceu na minha rua se arrastando e golfando, dando sinais de que estava ferido ou envenenado. Encolheu-se num canto da calçada, incapacitado de seguir caminho devido a dor que certamente sentia. Neste momento, surgiu um cidadão pela rua, alto e saudável, caminhando de forma objetiva. Ao avistar o gato ele não precisou cogitar o que via, tratou de aplicar no animal um chute que o atirou a considerável distância. O homem seguiu seu caminho cantarolando descontraidamente, e o gato, ainda mais encurvado, voltou a se arrastar, na tentativa de se proteger de alguma forma.

Por isso não fará a menor diferença o número que apertarmos na urna eletrônica, próximo domingo..., pois nós já perdemos!

Li recentemente o caso de uma mulher que foi espancada até a morte pelo marido, bem na frente dos dois filhos pequenos. O cara se entregou e foi levado para a delegacia, mas liberado no dia seguinte, pois alegou que estava muito abalado emocionalmente, por isso cometera o assassinato. Ele recebeu o direito de aguardar pelo julgamento em casa.

Por isso não fará a menor diferença o número que apertarmos na urna eletrônica, próximo domingo..., pois nós já perdemos!

Conversei recentemente com um conhecido que está há quase um ano procurando emprego, vivendo de pequenos bicos para sustentar a família. Comentei pateticamente que estava mesmo muito difícil encontrar trabalho e ele concordou exibindo um sorriso cansado. A verdade que não precisava ser dita, pois ele já sabia, é que ninguém aceita empregar um homem negro, de pouca escolaridade e que já cumpriu pena por roubo.

Por isso não fará a menor diferença o número que apertarmos na urna eletrônica, próximo domingo..., pois nós já perdemos!

Testemunhei um acidente de trânsito, em que uma senhora pilotando uma moto, bateu na traseira de um carro, próximo a uma faixa de pedestre. A mulher fora arremessada para o canteiro no meio fio e, por sorte, sofreu apenas alguns arranhões na perna. O motorista do carro, um rapaz jovem e estressado, saiu pela porta e, no lugar de prestar algum socorro à senhora caída no meio fio, sacou o celular e foi tirar fotos de um pequeno amassado que o impacto deixou na lataria do carro. Alguns transeuntes que passavam socorreram a mulher, colocaram ela num banquinho, deram-lhe um pouco de água. Ela parecia desnorteada, mesmo assim o dono do veículo amassado foi até onde ela estava para gritar algumas ofensas e dizer que ela teria que arcar com as despesas...

Por isso não fará a menor diferença o número que apertarmos na urna eletrônica, próximo domingo..., pois nós já perdemos!

Tudo isso que contei aconteceu em menos de duas semanas, na cidade de Colatina, no norte do Espírito Santo, onde moro. Lugar que sempre foi considerado relativamente pacato e bom de se viver... Tais acontecimentos devem ser evidências incontestáveis de nossa derrota como sociedade!

Pois não fará a menor diferença o número que apertarmos na urna eletrônica, próximo domingo... Todos nós já perdemos!

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

RESENHA DE LIVRO – QUANDO NIETZSCHE CHOROU

Que seja explicitado: aprendi a gostar da literatura de Irvin D. Yalom lendo seus trabalhos menos expressivos; posso até salientar que pouco interesse tinha por esta que é sua obra mais notória, não por envolver um filósofo que aprecio, mas pela consciência dessa fascinação exacerbada ao redor da trama à ponto de alguns educadores oferecerem a obra para compreensão de Friedrich Nietzsche, sugerindo que o conteúdo fosse além de sua pretensão como literatura de entretenimento.

Manifesto que isso é um preconceito de minha parte, pois evitar aquilo que nunca se leu, apesar de se conhecer o autor, é julgar sem antes ter experienciado. Portanto, o livro veio parar em minha estante por acaso, quando o encontrei em promoção durante uma de minhas garimpagens num Sebo.

Outro problema pode estar precisamente na expectativa que criei sobre o autor, o que é meio que um paradoxo perante minha desconfiança, afinal, sei muito bem do potencial de Yalom com sua narrativa que mescla elementos filosóficos, psicológicos e introduz embates instigantes em suas personagens, algo admirável. Ou seja, ao mesmo tempo em que me recusava a ler este livro, também sustentava a confiança de que estava levando para casa outra boa leitura.

Contudo, a desconfiança se fez assertiva, QUANDO NIETZSCHE CHOROU é o livro mais fraquinho que li do autor e, apesar de não ser propriamente um trabalho ruim, considerei-o o menos envolvente dos lidos até hoje na bibliografia de Yalom, e o restante dessa resenha é uma tentativa de expor os elementos que embasam essa opinião.

Quando o famoso médico judeu Josef Breuer recebe a visita de Lou Salomé, uma sedutora mulher russa, o médico é intimado a ajudar a cuidar da delicada saúde de um amigo importante de Lou, um até então pouco expressivo intelectual chamado Friedrich Nietzsche. A mulher faz uma recomendação para que o Dr. Breuer mantenha o pedido em segredo, dada a natureza orgulhosa do paciente. Ou seja, para ajudar Nietzsche, o médico precisará ir ao encontro do filósofo e ajudá-lo sem que o outro perceba essa intenção... Temos o nosso enredo.

À priori, a premissa parece meio descabida ou sem sentido, mas isso não chega a incomodar, pode-se relevar facilmente essa condição narrativa para o encontro entre os dois principais personagens da trama, dr. Breuer e Nietzsche. No entanto, creio que conjunturas mais pertinentes poderiam ser introduzidas nas personagens.

Quanto ao aspecto que mais me incomodou na leitura ocorre desde o instante em que o filósofo cujo nome intitula a obra aparece e perdura por todo o texto: uma exacerbada reverência sobre a figura de Nietzsche ocorre já nos primeiros parágrafos em que ele surge na narrativa. E embora isso talvez fosse apenas uma bajulação introdutória, cujo intento seja enaltecer a figura de Nietzsche, tal condição não decresce, chegando a tornar alguns instantes intragáveis. Primeiro que por tudo o que Nietzsche representa para a filosofia, sua imagem não carece desse tipo de servilismo. E em segundo lugar, esse preciosismo escancarado interfere na maneira com que o enxergamos, tornando-o algo extraordinário demais e, portanto, menos crível.

Vale ainda mencionar para os leitores que ainda não conhecem a obra de Irvim D. Yalom, que em seus textos não há espaço para elementos como suspense, reviravoltas, impactos emocionantes ou agilidade linguística. A literatura desse autor segue sempre uma pegada invariável, cujo ápice fica nos diálogos cheios de elementos psicanalíticos e filosóficos que são estabelecidos entre suas personagens. E dentro desse aspecto há instantes bons aqui, o livro enriquece muito quando o autor deixa de se concentrar na idolatria à Nietzsche, para fazer o que faz melhor: narrar os enfrentamentos existenciais de suas personagens.

QUANDO NIETZSCHE CHOROU é um best-seller que merecidamente tem seu lugar de destaque no universo literário, porém, deixa-se seduzir demais pela personagem central da trama. Reconheço-me como parte da minoria que não considerou a trama tão grandiosa assim, mas sou consciente da existência dos bons elementos narrativos que fizeram de Yalom este consagrado escritor.

NOTA: 6,7