sexta-feira, 31 de julho de 2020

CONTO: PRANTO SECRETO



Um choro forte. Era isso o que acontecia dentro daquele banheiro fechado... Sim, era intenso o choro, sofrido, de puberdade que teme demais todas as coisas, por incompreensão. No entanto, era um desespero mudo, o grito inaudível de tais lágrimas.

Desde muito cedo o menino, que chorava por desconhecer os modos como a vida funciona, já sabia como chorar sem emitir sons. A dor emersa, expressada na cara molhada de gotas salgadas, as têmporas vermelhas, riscadas de veias inchadas... E o grito saía da boca desesperada, mas sem emitir nenhum ruído; eis a habilidade extraordinária do silêncio, desenvolvida pelo menino que, por não saber como fazer para explicar tamanha dor, desenvolveu aquele choro quieto.

E após o interminável momento de urros comedidos, ele lavava o rosto na água fria da pia, respirava devagar até que a vermelhidão facial desaparecesse, abria a porta do banheiro e voltava para o quarto.

Era tarde da noite.

Alguém passou por ele, veloz e impaciente... A vez de o irmão usar o banheiro, que passou pelo menino, esbravejou pela demora e trancou a porta do tão ambicionado recinto. Carregava revistas em sua mão, cujo conteúdo transformaria completamente a função do banheiro: de antro do sofrimento para abrigo do prazer.

A casa reinava em silêncio. Talvez fosse o instante em que as coisas realmente aconteciam.

A mãe já havia se retirado. A porta do quarto, austera e fechada, parecia impor a restrição definitiva, assim como autorizava para que tanto os transgressores da concupiscência quanto os prantos secretos pudessem acontecer... A mãe costumava fazer muito isso, se retirar de tudo... Do mundo. Certamente não havia pranto porque ela não sabia fazê-lo em silêncio tão bem quanto o menino.

E aquele homem estranho, outra vez adormecido na cozinha, luz apagada, um prato de arroz com feijão sobre a mesa, frio e intocado... Aquele mesmo ronco, de fera desditosa, de outras noites.

De longe o menino observava a fera desfalecida e, igualmente ao cenário de sempre, o cheiro lhe era familiar... Cheiro de destilado azedo e mal digerido.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

RESENHA DE LIVRO – ANTES QUE OS ESPELHOS SE TORNEM OPACOS


Existem obras que são difíceis de serem classificadas. Não que essa necessidade seja inexorável, mas quando a proposta de seu espaço é fazer uma breve análise do livro, torna-se contributivo informar ao leitor o que ele encontrará através das pretendidas páginas.

Pois eis que estou diante de um trabalho que se encaixa precisamente dentro dessa problemática. Passei algum tempo vasculhando a internet até concluir que o autor, Juarez Guedes Cruz é um talento desconhecido do já minguado grupo de internautas leitores. Portanto, não encontrei ninguém que pudesse me auxiliar a respeito do que exatamente este ANTES QUE OS ESPELHOS SE TORNEM OPACOS quer tematizar.

A conclusão mais próxima que cheguei foi exatamente a mesma que a livraria onde o adquiri: a obra estava timidamente soterrada numa enorme prateleira de autores contistas. Acontece que caso eu assim o definisse, leitores familiarizados com Aluísio Azevedo ou Rubem Fonseca talvez discordassem, porque aqui há pouca similaridade com o gênero. A pegada aqui é mais suscetível aos estímulos sensoriais do que leitores de contos estão acostumados. Mesmo assim, a própria editora da obra precisa de um lugar comum, então o rotula como “contos Brasileiros”.

Mas deixemos a roupagem do livro de lado, e falemos um pouco de seu conteúdo:

ANTES QUE OS ESPELHOS SE TORNEM OPACOS é um livro de contos que conversa com o leitor de modo a fazer com que os espaços de reflexões aconteçam através do desprendimento de pontos de vista pessoais e da mistura de diferentes narrativas adquiridas ao longo de nossa experiência como leitores. É um redirecionamento sem direção, que talvez agrade leitores de Clarice Lispector (autora que também se arriscou pelo universo dos contos), como foi o meu caso.

E o que exatamente eu quero dizer com isso?

Significa que aqui estamos sim, diante de um livro de pequenos contos, de leitura fácil e progressiva, que difere um pouco sua essência contista ao elevar a imersão, tornando obrigatório uma pausa entre cada conto e, gradativamente, a coisa vai dialogando diretamente com o leitor dentro dos assuntos propostos. A velha necessidade humana de expressar sua subjetividade por meio da linguagem escrita, aqui é infalível.

Livro é pequeno, cento e dez páginas que podem, facilmente, serem devoradas numa única tarde, na companhia de uma xícara de chá ou uma taça de vinho. Ao término de cada conto surge, quase que de imediato, o silêncio necessário à reflexão (aconteceu comigo pelo menos uma meia dúzia de vezes).

O conteúdo é também charmoso, tem estilo próprio e faz pensar sobre coisas que não temos o hábito de nos preocuparmos. Não farei exposição sobre os referidos contos, porque eles são diferentes em aspectos e, obviamente, há os favoritos e outros que não impactam tanto... Ok, só para não parecer que estou sendo genérico eu deixo registrado meu apreço ao conto PROJETO PARMÊNIDES, uma deliciosa viagem em que acompanhamos as intempéries vividas pelo personagem narrador, que num futuro altamente científico, faz um clone da mulher amada no interminável anseio da necessidade humana em superar a morte.

ANTES QUE OS ESPELHOS SE TORNEM OPACOS é um livro singular, de contos que não se parecem contos e talvez não interesse aos leitores que buscam textos, digamos, mais objetivos. Mas acima de tudo, temos aqui um escancarado convite à reflexão verbal, textual, dimensional e sensível.

NOTA: 7