A fila era pequena,
desorganizada e ruidosa. Sorridentes, seus integrantes alinhados de forma
tumultuada, falavam muito e riam alto. Em comum, todos seguravam um livro de
capa muito colorida, onde um animal quadrúpede e sorridente se esbaldava numa
lagoa cristalina, cercada de verde natureza.
Não muito longe dali, uma
mãe resoluta entregava ao filho o mesmo livro, satisfeita por conseguir
compra-lo no dia de sua aguardada estreia. O pequeno menino apertou o objeto contra
o peito e, em seguida, agradeceu a mãe com um estalado beijo no rosto.
Após o ato obsequioso, ela
segurou na mão do menino e, juntos, caminharam felizes em direção à fila, cada
vez maior e mais barulhenta.
– Mamãe, o que vamos fazer
agora? – perguntou o menino, ao ver a mãe tomar o último lugar da fila – a
senhora já não pagou?
– Vamos pedir ao autor para
autografar.
– Ah, tá... – respondeu ele,
sem entender o significado da palavra “autografar”, mas ele logo deixou esse
assunto de lado, encantado demais que estava com as gravuras do despojado animal
a encher as páginas da história.
O homem na frente se virou
sem direção específica e notou aquela mãe com o filho. Sorriu simpaticamente;
ambos haviam adquirido o mesmo presente aos seus rebentos e se encontravam na fila,
em plena conformidade sobre a importância de se consagrar aquela bela obra
infantil.
– Mãe, o nome do camelo é Calombo – o menino puxou a barra da saia
da mãe para mostrar a novidade que havia descoberto, já no início da leitura.
– Isso não é um camelo,
querido... É um dromedário.
– É um camelo sim, mãe. Olha
aqui a montanha nas costas dele.
– Mas só tem uma montanha em
suas costas, por isso é um dromedário – ela apontou com o dedo para uma das
figuras, onde era possível ter um ângulo privilegiado da corcova do animal – Tá
vendo só?
– É um camelo, mãe!
– Dromedário... Se fosse um
camelo teria duas montanhas nas costas.
– Então eu não sei mais que
bicho é esse, ora...
A mãe ignorou o
inconformismo do filho. Logo, logo, ele aceitaria a existência de um dromedário
na sua nova historinha. E talvez até se encantasse com a novidade e passaria a
ensinar aos seus coleguinhas a verdadeira espécie protagonista do livro.
A fila avançava lentamente. E
o filho voltou a interromper a leitura, pois ainda surgia em sua cachola questionadora,
dúvidas que colocavam à prova os argumentos incontestáveis que recebera de sua
genitora:
– Mamãe, eu estive
pensando... E se ele for um camelo aleijado?
– Como assim, querido?
– Ué, faltando um pedaço. Que nem o nosso
vizinho que tem uma perna só. Eu acho que esse é um camelo que só tem uma
montanha nas costas.
– Isso é um dromedário,
menino! – a mãe sentiu que era preciso dar ênfase em sua resposta, para
eliminar as dúvidas do filho; a rispidez no tom de voz para censurar as
incertezas.
Certamente o filho devia
compreender a historinha do livro como sendo menos cativante tendo como
protagonista um bicho detentor de nome tão estranho. Um camelo aleijado seria
bem mais agradável, do que um ser cuja denominação “dromedário” soava estranha,
comprida e dura de pronunciar. Ele fechou o livro, emburrado, e isso fez com que notasse, pela primeira vez, o desconforto de uma fila que pouco avançava.
– Vai demorar muito, mamãe?
Eu tô cansado.
– Estamos quase lá, meu bem.
De fato, já estavam
próximos. O menino até podia enxergar o que se passava na base da fila: havia
um homem por trás de uma mesa. Era gordo, de barba cheia, com ar sério e pedante,
perguntando o nome de cada um dos presentes. Em seguida, ele abria o livro do
camelo/dromedário e fazia rabiscos grotescos com uma caneta sofisticada.
– Mãe, o que aquele homem tá
fazendo?
– Já disse que ele está
autografando.
– Mas ele tá rabiscando o
livro das pessoas!
– Ele é o autor, meu filho.
Está fazendo a dedicatória.
Assustado, o menino olhou
para os rabiscos incompreensíveis no livro de uma das pessoas. Eram borrões
feios, tortos e que enfestavam uma página inteira que ladeava o prefácio. O
menino ainda não compreendia qual era a importância daquele ato, mas teve a
certeza de uma coisa:
– Mãe, vamos embora!
– Espera! Já está quase na
nossa vez.
– Mas mãe, eu não quero que
esse homem rabisque o meu livro! – ele começou puxar a saia da mãe, numa
tentativa de retirá-la da perigosa fila – Eu não quero!
– Para de escândalo, menino!
– Ele não vai otrogafar o
meu livro!
– Me dá esse livro! – instintivamente,
a mãe tentou arrancá-lo das mãos do menino – Não me faça vergonha, vamos!
– Eu não quero otrogafo!
Os dois começaram uma
disputa acirrada pelo livrinho, cada um puxando de um lado. Mas ao notar que as pessoas começavam a
demonstrar constrangimento em relação à cena, a mãe desistiu e soltou. Então o
menino escapou, indo se afugentar no meio das prateleiras da loja.
Desconfortável, a mãe se
virou e viu que já se encontrava diante do escritor, a lhe aguardar com a
caneta sofisticada em prontidão. Ele emitiu um breve sorriso por trás de sua
barba robusta.
– Á quem devo dedicar a
obra? – perguntou ele, enquanto seus olhos percorriam toda a dimensão estrutural
da mulher, procurando por algum livro para autografar.
– Desculpa, mas o meu filho
fugiu com ele na mão – ela tentou devolver o sorriso, mas desajeitada, mal
conseguiu mover os lábios – Ele disse que não quer o seu autógrafo.
– Tudo bem... Vá falar com
ele e depois volte.
– Certo, obrigada... – com o
rosto corado, a mãe já estava se afastando, quando resolveu parar e fazer
meia-volta – Com licença moço, mas eu posso te fazer uma perguntinha?
– Claro que você pode. – respondeu
o escritor, solícito.
– O personagem principal do
seu livro é um dromedário, não é mesmo?
Os dentes do autor surgiram
todos, por detrás dos escurecidos pelos de sua face rechonchuda.