O brilho do metal era hipnótico e persuasivo. A coisa repousava no colo em sono pesado, inofensivo, como se fosse um escorpião sem cauda. Excessivamente alheio, o objeto teve que ser erguido até a cabeça, precisamente um pouco acima da têmpora... Pois tinha que soar perigoso! O cano era quase tão frio quanto o portador daqueles dedos hesitantes; o indicador acariciava levemente o gatilho.
Mas nada acontecia. Nem botes ou picadas..., nenhum disparo.
Faltava algo para o grande momento. Seria estímulo? Então, era o excesso
de fraqueza ou ausência de coragem? O objeto pernicioso era devolvido ao colo,
enquanto a consciência revirava-se em opiniões, impressões, motivações,
contradições.
Era sempre o mesmo cenário: a privacidade do quarto, sentado na cama,
próximo da janela, e ficava ali, ouvindo World of Glass, do Tristânia, aguardando
a coragem escondida em algum canto dentro de si.
O ato se repetia quase que diariamente. Perdurava até o instante em que se cansava de medir a própria covardia, ou quando se acabavam os argumentos em favor do feito. Então, o objeto adormecido retornava para a gaveta de cabeceira, a música era desligada e o jovem aspirante da finitude, deitava na cama, desligava a luz e tentava dormir.
No entanto, naquela ocasião aconteceu algo inusitado: um expectador
surgiu na janela do quarto. Era um homem de meia idade, pele clara, o rosto
fino, quase afeminado. Tinha cabelos negros, compridos e lisos, na altura do
queixo. Ele fitou o rapaz com curiosidade, como quem admira uma obra de arte
indecifrável.
O outro ainda não havia concluído com os rituais, o revolver ainda pairava
em seu colo e a música abundava o ambiente. Deparou-se com o sorriso simpático
do estranho na janela, que apesar de brando, fora incapaz de impedir o enorme susto.
Mas após algum tempo, aquele sorriso mudou para algo menos inofensivo. De
perto parecia travesso e presunçoso.
– Por que você não puxa de uma vez esse gatilho e acaba com isso?
A possibilidade de um instante de insanidade pairou sobre a mente do suicida.
Duvidou da existência daquele sujeito na janela. Talvez fosse fruto de sua
imaginação, a mente exausta costuma criar cenários por vontade própria, deixando-nos
confusos e receosos.
O estranho na janela sustentava o mesmo sorriso e logo notou que não
haveria nenhuma resposta, sequer alguma afronta ante sua atrevida presença, sua
intimidante pergunta.
– Imagino que lhe falta destreza.
Se é apenas um arquétipo da imaginação, não custa dialogar. O rapaz
pausou a música e encarou o sorridente visitante.
– E quem é você? O que quer?
Mesmo demonstrando confiança, os lábios do estranho foram recuando até
esconder totalmente os dentes impecavelmente brancos. Disse:
– Sabe, Xavier, eu estive pensando: se a coragem fosse a maior virtude do
ser humano, talvez ele próprio já houvesse se dizimado.
O sujeito falava com calma, numa tonalidade quase doce. Parecia um bom
homem, tinha um rosto honesto e sereno.
– O que está fazendo na minha janela? E como sabe o meu nome?
O homem fitava o interior do quarto, como se pouco importassem as dúvidas
do outro. Parecia mais interessado na bagunça que era abundante no recinto. O
típico habitat de um depressivo ou apenas sinal de desleixo?
– Você se chama Xavier de Oliveira – disse o visitante – tem trinta e
dois anos, trabalha em um escritório de contabilidade, acredita que essa música
será tocada no seu funeral e você sustenta uma inexplicável ânsia por verificar
o que acontecerá depois que disparar essa arma virgem contra a própria cabeça...,
já parou pra pensar que talvez não aconteça nada?
– Como sabe disso?
– Não disse que sei. Perguntei se você nunca se questionou sobre o nada.
Talvez não exista coisa alguma e a morte seja o ponto final.
– Perguntei como sabe tudo isso sobre mim.
– Ah, sobre você... – ele achou graça – Não é o mais misterioso dos homens,
não é muito difícil fazer uma leitura de sua vida, caro Xavier.
– Você não fez nenhuma leitura... Foi específico. Como sabe todas essas
coisas da minha vida?
Intrigado, Xavier esqueceu do revólver no colo. Que merda de sujeito era
aquele na janela? A hipótese de insanidade parecia cada vez mais sedutora.
– O que você gostaria de frasear em sua lápide? – quis saber o estranho.
– Que porcaria de pergunta é essa?
– Então você não planejou nada? Quer tirar a vida sem antes fazer os devidos
preparativos? Onde está a carta?
– Carta? – Xavier não conseguia organizar a situação na mente – Do que
você está falando?
– Todo suicida deixa uma carta para que as pessoas conheçam suas razões.
Alguns mais vaidosos deixam orientações de como as coisas devem ser feitas... –
ele olhou para o teto, imersivo – Mas talvez isso seja bobagem. Afinal, ninguém
dá a mínima e raramente os caprichos de um suicida egocêntrico são acatados pelas
pessoas. Mas eu não posso dizer essas coisas para alguém com uma arma no colo, soaria
incentivador.
– Você já as disse.
– É verdade..., peço desculpas.
Estava muito tarde, passava da meia noite, e o homem misterioso aparentava
ter todo o tempo do mundo. Xavier buscava entender de modo racional, então
resolveu adotar medidas mais drásticas:
– Quer saber de uma coisa, parceiro. Acho que não quero mais atirar na
minha cabeça. Eu tô começando a sentir vontade de meter uma bala é nessa sua
cara escrota.
– Depois que morrer, que falta você fará, Xavier?
– Não te interessa! – ele apontou a arma na direção do outro – Vaza da
minha janela, mano!
– Por que você não experimenta apertar o gatilho, Xavier? Pode ser que
após o feito, sua ansiada coragem demore muito e você passe o resto dos seus
dias trancafiado numa cela, impossibilitando a execução de seu ilustre desejo...
– ele sorriu novamente – Sabe qual é a maior perda que as pessoas sofrem quando
vão pra cadeia?
Xavier fitava o estranho diretamente. O revólver rígido apontado na
direção dele, embora não houvesse nenhuma intenção pelo disparo. Ele logo soube
que não seria dessa forma que o intimidaria.
– As pessoas perdem a autonomia... – respondeu o estranho na janela – E autonomia
é o elemento chave do suicida.
A tranquilidade com que falava causava desconforto. Qualquer ser humano
em sã consciência ficaria apavorado com um revólver apontado para a cabeça,
principalmente se o sujeito não fosse um suicida em potencial, como Xavier
pensava ser. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, o estranho voltou a falar,
ainda com a mesma calma:
– Sabia que o elefante é a única espécie que venera seus mortos?
Silêncio. Xavier baixou o braço, mas manteve-se encarado no estranho. Era
um instante quase surreal.
– Eles interrompem a jornada e dedicam alguns minutos de reverência ao
esqueleto de outro de sua espécie, quando encontrado no caminho – o sujeito
pareceu impressionado com a própria informação que dava – Até mesmo acariciam
os ossos..., não é incrível?
– E o ser humano? – apesar do desconforto, Xavier perguntou, como se
fosse inevitável.
– O que tem o ser humano?
– O ser humano também homenageia seus mortos.
– Chama isso que vocês fazem de homenagem? – enfim, houve uma gargalhada.
Era estranha, desafinada e pareciam múltiplas tonalidades ao mesmo tempo – O
rito funeral existe porque o ser humano teme a morte e anseia pela vida eterna.
Enterram seus mortos em caixas porque sabem que ele entrará em putrefação rapidamente.
E preferem contaminar os lençóis freáticos do que a superfície da terra... Os
humanos são todos uns covardes! Eles fogem da morte, acredite no que digo.
O revólver era um calibre trinta e oito, prateado. Comprado novo, jamais
havia sido usado. Nem para testar. Xavier olhou para o objeto e então aquilo
pareceu algo equivocado. Não sabia mais o significado daquela coisa ou sua funcionalidade.
O estranho na janela parou de rir, lentamente. Enxugou uma lágrima nos
olhos, satisfeito. Parecia enternecido com o inesperado encontro.
– O que você quer aqui? – perguntou Xavier, não mais conseguindo esconder
o desconforto.
– Quero ver você se matar.
A simplicidade da resposta foi tamanha que soou asquerosa.
– Eu não vou fazer isso..., hoje não.
– Achei que não fosse mesmo – comentou o estranho, o olhar passeou uma
vez mais pelo interior do quarto, mas reencontrou o inseguro Xavier, sentado na
cama – Você não vai se matar porque não é depressivo, tampouco está doente; não
tem uma vida trágica ou mesmo sofreu algum trauma... Não se matará porque sabe
que o desconhecido não é uma opção de escolha como fuga desse seu tédio. E
embora cada segundo vivido pelos humanos seja um instante inédito, é condição
imutável e, portanto, aceita sem questionamento. Mas deliberar por uma possibilidade
improvável, como estourar os próprios miolos só pra ver o que acontece depois, seria
científico demais até para alguém com inclinações suicidas.
– Tenho coragem de me matar, ok!
– Coragem não é necessário para tal. A falta dela estimula muito mais.
– Por que você não me deixa em paz?
– Quer dizer, na paz de um cadáver? – outra risada – Não farei isso por
você. Terá que apertar o gatilho sozinho.
– Vá embora!
– Que tal uma bebida? O álcool pode ajudar a aliviar a tensão.
Desesperadamente, Xavier gritou para que o estranho se calasse, ao mesmo
tempo em que voltou a erguer o revólver e, freneticamente, apertou o gatilho sucessivas
vezes contra a janela. A inexperiência ou o nervosismo fez com que fechasse os
olhos. O barulho dos disparos foi mais perturbador do que imaginava.
Então houve silêncio.
Cheiro de pólvora invadia as narinas, enquanto ele soltava a arma sobre o colchão, como se o próprio objeto o houvesse obrigado a efetuar os disparos.
Xavier levantou-se e foi até a janela. Inclinou-se para ver o cadáver de seu desafeto.
Porém, não encontrou nada, nem ninguém do lado de fora. Onde deveria haver um
corpo perfurado, completamente chamuscado de rubro, havia apenas o quintal
vazio e ordinário. O chão estava limpo e imaculado. Nenhum sinal de morte.
Teria sido, de fato, a imaginação de Xavier, que ultrapassara o limite da
sanidade, elaborando um diálogo quase palpável com o inexistente? Ou seria
fruto de um louco que, ao notar a intenção real dos disparos, correu afoito,
tão ligeiro que não foi alvejado? Seria o ocorrido fruto do sobrenatural, cuja
manifestação maligna se fez na janela, intencionada em fomentar a perda de mais
uma vida? Ou seria um anjo de Deus, que com aquela conversa contraditória,
evitou que Xavier disparasse contra a própria cabeça?
Era difícil saber.
Então o amedrontado rapaz fechou a janela com o trinco. Desligou o interruptor e deitou na cama. Sentiu o desconforto por ter se deitado sobre o revólver. Xavier o retirou debaixo de si..., ainda estava quente e cheirava a pólvora. Alucinação ou não, ele finalmente havia criado coragem de apertar o gatilho..., e não sabia se isso era uma evolução boa ou ruim.
***
(Conto Publicado no Recanto das Letras, no ano de 2011)