O poeta Charles Baudelaire escreveu: “O maior truque já realizado
pelo diabo, foi convencer o mundo de que ele não existe”. A afirmação
sugere que a sofisticação da maledicência consiste em não aparecer, pois torna
sua progressão mais efetiva. Quando não se sabe contra o que se luta, pode-se
estar diante de um adversário imbatível.
Este pensamento talvez seja
imensamente pertinente para pensarmos sobre o mal que já era compreendido como
pecado capital em tempos remotos. Ou seja, lá no livro do Eclesiastes, define-se
a vaidade como totalitária e, portanto, o pecado que gera todos os demais: “vaidade
das vaidades, tudo é vaidade...”, livro do Eclesiastes, 1, 2-11. Se esta
for uma hipótese plausível, eu creio que o tema da vaidade não recebeu atenção
que deveria ao longo da história do pensamento. Portanto, segue como o diabo citado
por Baudelaire, escondido e atuante, principal elemento causador de ódio,
ganância, avareza e ausência de empatia com o semelhante.
Ocorre que a vaidade, ainda
que entendida como elemento discreto ou mesmo pouco atuante no que se refere aos
prejuízos causados, sempre terá sua participação em praticamente tudo o que
fazemos na vida. Talvez por esse motivo se trate um mal que, apesar de pouco
levado em consideração é supremo, pois elimina toda a noção de virtude do ser
humano.
O psiquiatra Flávio
Gikovates se propôs a realizar esta breve e, por que não dizer,
introdutória reflexão sobre o problema da vaidade. E seus apontamentos, sempre
tomando cuidado em manter a linguagem acessiva e pouco técnica, seguem
precisamente nesse sentido: pontuar quase como indiscutível a vaidade como o
princípio de todos os males que assolam a humanidade. Sim, pois se atualmente o
ser humano é o animal predominante da natureza, ser portador de condição tão nefasta
como a vaidade, torna-o um ser altamente destrutivo em suas relações com o
mundo, em todos os aspectos.
VÍCIO DOS VÍCIOS traça
uma linha de raciocínio para ajudar o leitor a verificar a vaidade desde seu
surgimento como algo inerente, passando pela transformação em condição nociva
por meio da influência de nossa cultura, até chegar ao epicentro do problema,
onde sua manifestação é destacada pelo autor como um vício, justificando assim
o título pertinente da obra.
Mas então se o tema é tão
fundamental, por que quase não se encontram pensadores que se debruçaram sobre
a vaidade? Sobre isso Gikovates nos traz um argumento, digamos, plausível: “Saber
perguntar sem saber responder gera uma enorme dor; suportar a dúvida é uma das
coisas mais sofridas para o nosso mundo interior. A sensação de abandono e de
insignificância que resta é, em certo sentido, insuportável”, pág. 11.
Portanto, quando se fala em pensadores, estamos lidando com a mais terrível e
talvez a menos perceptível forma de vaidade: a vaidade intelectual..., talvez
Baudelaire tivesse razão.
Claro que aqui estou apenas
fazendo um resumo limitado da obra; não sendo possível aprofundar as razões que
validam a vaidade como sendo o pecado fundamental, assim como não será possível
detalhar os desvios e fugas das manifestações da soberba. De qualquer forma,
vamos passar rapidamente por alguns momentos interessantes do livro, na ordem
em que aparecem, começando pelo fundamento:
Na infância, uma manifestação
sexual ocorre já no primeiro ano de vida, que explica a natureza auto erótica
desse impulso, ou seja, ao se tocar, a criança encontra partes em seu corpo
onde o toque lhe causa sensações peculiares. São chamadas zonas erógenas.
Trata-se de um desconforto percebido pelo indivíduo como agradável, o que
difere de outros desconfortos já percebidos pela criança, mas que causam
irritação, como sede, fome, frio, etc...
“Como o desconforto sexual
é agradável, não deverá causar a tendência para a busca do equilíbrio; seu
objetivo é o próprio desequilíbrio; e se o prazer for maior à medida em que o
desequilíbrio se estende, a coisa tenderia para uma busca da perpetuação desse
estado (...) O fenômeno inicial de excitação se dá sem a intermediação de
qualquer outra pessoa. Não existe um objeto de desejo”. pág. 16.
“É só lá pelo 7-8 anos de
idade que surgirá o interesse pelas trocas de carícias, ainda que claramente
relacionado com fenômenos culturais, com a imitação daquilo que as crianças
veem – ou ouvem falar – que interessa aos adultos. Não há nenhuma discriminação
de quem seja o parceiro, nem qual o seu sexo. Apenas a vontade de experimentar
a sensação de excitação derivada da troca de carícias, nada diferente do que se
sente ao se fazer a carícia em si mesmo. O brinquedo agora envolve um parceiro,
mas o caráter essencialmente auto erótico persiste”.
Segundo o autor, por volta dos
cinco anos em diante, a criança manifesta os primeiros interesses pela
exibição, o que parece ser mais frequente em meninos do que em meninas, um
prazer de natureza erótica ao exibir o genital. Tal comportamento é curioso
dado o fato de que não há fenômeno similar em mamíferos com os quais somo
assemelhados.
“O que leva uma criança a
ter prazer em se exibir, em ser olhada por outra pessoa? Não creio que possamos
explicar nada por hora, mas podemos constatar a coisa com facilidade. Não é
improvável que o fenômeno já dependa de variações culturais, onde a exposição
dos genitais é coisa já proibida; o prazer resultaria, pois, da própria
transgressão. Ou será que o menino se orgulha, outra vez por isso ser
valorizado pela cultura, de possuir um pênis, coisa que o coloca em “superioridade” em relação às meninas?” pág. 18.
Flávio Gikovates teve
a humildade de alegar que seu estudo não é conclusivo, embora os sinais de
sedução na criança sejam evidentes, pode ser que atualmente novos estudos
tenham chegado a resultados mais precisos. Afinal, esta obra foi publicada em
1987. Mesmo relativamente antiga, vale a pena a leitura, pois seu conteúdo se
mostra bastante atual.
Enfim, conforme a criança
cresce sua razão se sofistica, também sua relação com o mundo real e
imaginário. E imaginação é, segundo o autor, uma operação psíquica abstrata,
capaz de provocar sensações de todo o tipo, mesmo que nada esteja ocorrendo na
realidade. A erotização, antes relegada ao contato direto, passa por uma
transformação curiosa: a atração se mostra tão eficiente em causar prazer
quanto era o toque em zonas erógenas, mesmo que de forma efêmera. De agora em
diante, a criança tudo fará para chamar a atenção, nessa busca inerente pelo
prazer, porém, agora a coisa evoluiu por conta da influência cultural para a
obtenção de um ganho de prazer por meio do exibicionismo..., eis a vaidade
estabelecida.
Desse modo, sempre que um
indivíduo busca atrair olhares e expressões de interesse de terceiros e isso
não ocorrer, dispara a sensação de frustração muito forte, que pode ser
interpretada como humilhação. Não é necessário que nos olhem de forma negativa;
basta que não nos deem atenção e já nos sentimos humilhados, insignificantes e
desinteressantes..., este é um elemento central da vaidade.
Depois de analisar sua origem,
Gikovates entra em temas de extrema importância para a compreensão do progresso
da vaidade, capítulos específicos, como por exemplo A Vaidade na Puberdade, A
vaidade e o Trabalho, A Vaidade e o amor. Estes são alguns dos mais distintos
temas que ajudam a mapear a proliferação da vaidade em quase todos os aspectos
de nossa condição social e natural.
No capítulo A Vaidade e o
sexo, deparamo-nos com a hipótese de elevação da vaidade por conta de nosso
ciclo de tensão e atração proporcionado pela fêmea. Geralmente na natureza, as
fêmeas exalam cheiros que atraem os machos para a cópula, o que denota a
relação do instinto sexual com a reprodução. Já nos seres humanos, o desejo
masculino é despertado por meio da visão, e não do olfato. A fêmea quando
atraente provoca o desejo por tempo quase que ininterrupto, e não por alguns
dias, como geralmente ocorre com as outras espécies.
“Todos os homens desejam as
mais atraentes. Além do mais, a cópula não interrompe o ciclo do desejo, que é
ininterrupto. Com a vida em grupo, se torna absolutamente indispensável algum
tipo de regulamentação da função sexual, isto com a finalidade de impedir que
os homens briguem o tempo todo; também, ao menos mais recentemente, para
garantir a mulher o direito de escolher os seus parceiros”, pág. 106.
Porém, similar ao que ocorre
noutras espécies, nos jogos de sedução do ser humano também existe a disputa
exibicionista, que fará com que a fêmea faça sua escolha pelo macho que lhe
parecer mais atraente. O problema é que aqui se estabelece uma influência muito
forte da cultura, o que causa uma distorção de valores, proporcionando a
elevação da vaidade, cujo objetivo do macho será sempre o de angariar recursos
que o faça parecer ainda mais poderoso. Do mesmo modo, a fêmea seguirá tentando
parecer atraente em conformidade com a cultura estabelecida, no intuito de
seguir saciando seu vício pela atração.
O último capítulo intitulado A
Cura da Vaidade como vício, Gikovates faz um breve resumo e traz algumas ideias
de como tornar a vaidade menos nociva. Faz confissão e assume a si mesmo como
um homem vaidoso, mas oferece apontamentos pertinentes, porém, um tanto
utópicos se levarmos em conta a maneira como nossa sociedade se encontra
organizada, de como acabar com o vício da vaidade, e não com a vaidade
propriamente, afinal, trata-se de um mal inerente.
Um aspecto que me incomodou é
que alguns temas foram pouco explorados. O livro é relativamente curto, possui
apenas 155 páginas. Um assunto tão amplo quanto a vaidade mereceria um pouco
mais de explanação.
VÍCIO DOS VÍCIOS é um livro cujo tema
sempre me atraiu de perto, talvez por eu ser mais um vaidoso incorrigível, este
é um assunto que me fascina. A leitura desta obra me causou muitos
desconfortos, vi-me em diversos pontos e identifiquei muitos vícios em minha
natureza causado pela vaidade. E embora o último capítulo tenha servido de
certa forma como um assopro nas muitas feridas, abertas ao longo da leitura,
seguirei pouco esperançoso quanto a amenizar os prejuízos causados por este
monstro escondido dentro de nós..., mas apesar da dor, essa é uma daquelas
leituras mais que obrigatórias.
NOTA: 9,2