quarta-feira, 28 de setembro de 2022

CONTO: A COR DE SUAS VÍSCERAS

A cama não será mais aconchegante, pois você não estará sobre ela. Os lençóis, ainda quentes, assemelharão às geleiras de uma montanha... Não consigo desviar o olhar de seu rostinho cândido, afundado no travesseiro. Procuro ficar o máximo de tempo possível dentro do quarto, portas e janelas fechadas, na incessante busca por acumular o seu cheiro e evitar que escape pelas fissuras.

Minha amada, Ivi.

Deixo você sozinha, apenas no instante de ir até a cozinha para buscar o punhal que comprei para a ocasião; uma réplica em metal trabalhado que imita o período mesopotâmico... Pedi que gravasse o seu nome na lâmina reluzente.

Deveria estar impregnado com o seu sangue agora, amor. Eu quero saber a cor dele, do seu interior..., mas, assim como nas noites anteriores, ainda careço de força para cravá-lo em sua carne.

O relógio me apressa. Já passam das onze da noite. Retorno ao quarto e me sento ao seu lado... Como você dorme tranquila! Sossegada como somente alguém que se sente amado poderia dormir.

Passeio com a faca levemente em seu pescoço, a ponta quase lhe riscando a pele. Sigo a silhueta pelo seu entorno e encontro os seios rosados, a respiração ritmada empurrando a ponta da lâmina pra cima e pra baixo.

Seriam os últimos sopros de uma vida?

O que ocorre na mente de alguém que morre enquanto está dormindo?

Confusão pela repentina travessia de planos?

Dor pelo descolamento da alma?

Um imenso e dissimulado nada?

O que ocorre?

Você se mexe, talvez o punhal tenha lhe feito cócegas na pele. O baby-doll é incapaz de cobrir seu corpo apetecível, causando-me excitação. Essa proximidade anula os demais pensamentos. Novamente só o que quero é provar do seu corpo, tomado pelo desejo que acomete a criatura submissa que sou.

O punhal vai parar embaixo da cama. Enfio-me nos lençóis, você acorda e sorri. Outra vez começo a sorver cada centímetro de seu corpo, percorro cada especificidade de sua estrutura, cada orifício me é familiar, cada mancha, cada imperfeição..., minha língua sente a maciez de sua pele e sei que provar desse cálice que nunca me sacia será minha ruina.

Talvez o punhal pertença a mim e não a ela.

Colados, nossos corpos se misturaram num manifesto de suor e urros. Gozamos, juntos... Dessa vez, eu fico na cama e você vai até o banheiro, lindamente nua e saciada.

Quando retorna eu sou outro homem. O distanciamento trouxe de volta meu orgulho ferido; uma voz faz um ultimato dentro da cabeça, quer saber quando vou acabar com isso, mas sou desperto por seu retorno, faz-me uma pergunta a qual não presto atenção.

Não deve ser nada importante, pois você não insiste.

Então olha o celular na mesa de cabeceira e se lembra de encerrar o nosso breve universo. Não percebe a dor que teu gesto desdenhoso me causa. As pessoas nunca notam o mal que causam à outras, apenas o mal que lhes é causado por outrem.

Finalmente ela replica a pergunta. Estou desolado, o braço esticado na beirada da cama, à procura do punhal.

– Vou te pagar em dinheiro – respondo; e no lugar do punhal, meu outro braço encontra a carteira na cabeceira.

– O que você fez no apartamento? – ela quer saber, enquanto confere o dinheiro na minha frente, pra me humilhar mais um pouco.

Um dia estive em uma loja de artesanatos e pedi ao vendedor para me mostrar um belo punhal que estava na vitrina. Muito gentil, o rapaz me convenceu a adquirir a peça. Eu pedi que ele gravasse o nome de minha amada Ivi na lâmina. Foi então que, olhando nos meus olhos, ele disse:

– É impossível existir apenas um amor... Na vida completa, tem que haver dois amores: o seu e o dela.

O vendedor fez o comentário do nada, mas eu entendi o significado: nosso amor é impossível, pois ele não há em você...

– Não sei... – respondo – não me lembro de ter feito nada.

– Parece diferente desde a última vez que eu vim aqui.

Ela já está completamente vestida, apenas termina de calçar as sandálias de salto, sentada na beirada oposta da cama.

O punhal deve estar muito fundo, bem debaixo, não consigo encontrar, mas já agora uma dúvida paira na minha cabeça.

– Quando posso te ligar de novo, Ivi? – pergunto.

Às vezes as pessoas mentem para nos proteger. Quando eu a chamo pelo nome, você diz que não sabe quem é Ivi, depois ri como quem acha que tudo não passa de uma brincadeira. E vai embora, sem culpa, tampouco responde se posso voltar a ligar.

Quando a porta se fecha reconheço todo o meu equívoco. Foi um acaso, um momento de confusão... Minha Ivi está em algum lugar lá fora, eu sei.

Mas o que faço se me deixo embriagar pela imaginação que instiga o prazer? Quando você morreu, julguei que Deus estava rindo de mim e então eu virei-lhe as costas... Agora o altíssimo me castiga, colocando seu rosto, sua voz, seu jeito de fazer amor e seu sabor no corpo de outras mulheres...


(Texto publicado no Recanto das Letras, no ano de 2009)

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