A cama não será mais aconchegante, pois você não estará sobre ela. Os lençóis, ainda quentes, assemelharão às geleiras de uma montanha... Não consigo desviar o olhar de seu rostinho cândido, afundado no travesseiro. Procuro ficar o máximo de tempo possível dentro do quarto, portas e janelas fechadas, na incessante busca por acumular o seu cheiro e evitar que escape pelas fissuras.
Minha amada, Ivi.
Deixo você sozinha, apenas
no instante de ir até a cozinha para buscar o punhal que comprei para a ocasião;
uma réplica em metal trabalhado que imita o período mesopotâmico... Pedi que
gravasse o seu nome na lâmina reluzente.
Deveria estar impregnado
com o seu sangue agora, amor. Eu quero saber a cor dele, do seu interior..., mas,
assim como nas noites anteriores, ainda careço de força para cravá-lo em sua
carne.
O relógio me apressa. Já
passam das onze da noite. Retorno ao quarto e me sento ao seu lado... Como você
dorme tranquila! Sossegada como somente alguém que se sente amado poderia
dormir.
Passeio com a faca levemente
em seu pescoço, a ponta quase lhe riscando a pele. Sigo a silhueta pelo seu entorno
e encontro os seios rosados, a respiração ritmada empurrando a ponta da lâmina
pra cima e pra baixo.
Seriam os últimos sopros
de uma vida?
O que ocorre na mente de
alguém que morre enquanto está dormindo?
Confusão pela repentina
travessia de planos?
Dor pelo descolamento da
alma?
Um imenso e dissimulado
nada?
O que ocorre?
Você se mexe, talvez o punhal
tenha lhe feito cócegas na pele. O baby-doll é incapaz de cobrir seu corpo apetecível,
causando-me excitação. Essa proximidade anula os demais pensamentos. Novamente
só o que quero é provar do seu corpo, tomado pelo desejo que acomete a criatura
submissa que sou.
O punhal vai parar embaixo
da cama. Enfio-me nos lençóis, você acorda e sorri. Outra vez começo a sorver
cada centímetro de seu corpo, percorro cada especificidade de sua estrutura,
cada orifício me é familiar, cada mancha, cada imperfeição..., minha língua sente
a maciez de sua pele e sei que provar desse cálice que nunca me sacia será
minha ruina.
Talvez o punhal pertença a
mim e não a ela.
Colados, nossos corpos se
misturaram num manifesto de suor e urros. Gozamos, juntos... Dessa vez, eu fico
na cama e você vai até o banheiro, lindamente nua e saciada.
Quando retorna eu sou
outro homem. O distanciamento trouxe de volta meu orgulho ferido; uma voz faz
um ultimato dentro da cabeça, quer saber quando vou acabar com isso, mas sou
desperto por seu retorno, faz-me uma pergunta a qual não presto atenção.
Não deve ser nada importante,
pois você não insiste.
Então olha o celular na
mesa de cabeceira e se lembra de encerrar o nosso breve universo. Não percebe a
dor que teu gesto desdenhoso me causa. As pessoas nunca notam o mal que causam
à outras, apenas o mal que lhes é causado por outrem.
Finalmente ela replica a
pergunta. Estou desolado, o braço esticado na beirada da cama, à procura do
punhal.
– Vou te pagar em dinheiro
– respondo; e no lugar do punhal, meu outro braço encontra a carteira na
cabeceira.
– O que você fez no
apartamento? – ela quer saber, enquanto confere o dinheiro na minha frente, pra
me humilhar mais um pouco.
Um dia estive em uma loja
de artesanatos e pedi ao vendedor para me mostrar um belo punhal que estava na
vitrina. Muito gentil, o rapaz me convenceu a adquirir a peça. Eu pedi que ele
gravasse o nome de minha amada Ivi na lâmina. Foi então que, olhando nos meus
olhos, ele disse:
– É impossível existir
apenas um amor... Na vida completa, tem que haver dois amores: o seu e o dela.
O vendedor fez o
comentário do nada, mas eu entendi o significado: nosso amor é impossível, pois
ele não há em você...
– Não sei... – respondo –
não me lembro de ter feito nada.
– Parece diferente desde a
última vez que eu vim aqui.
Ela já está completamente
vestida, apenas termina de calçar as sandálias de salto, sentada na beirada
oposta da cama.
O punhal deve estar muito
fundo, bem debaixo, não consigo encontrar, mas já agora uma dúvida paira na
minha cabeça.
– Quando posso te ligar de
novo, Ivi? – pergunto.
Às vezes as pessoas mentem
para nos proteger. Quando eu a chamo pelo nome, você diz que não sabe quem é
Ivi, depois ri como quem acha que tudo não passa de uma brincadeira. E vai embora,
sem culpa, tampouco responde se posso voltar a ligar.
Quando a porta se fecha reconheço todo o meu equívoco. Foi um acaso, um momento de confusão... Minha Ivi está em algum lugar lá fora, eu sei.
Mas o que faço se me deixo embriagar pela imaginação que instiga o prazer? Quando você morreu, julguei que Deus estava rindo de mim e então eu virei-lhe as costas... Agora o altíssimo me castiga, colocando seu rosto, sua voz, seu jeito de fazer amor e seu sabor no corpo de outras mulheres...
(Texto publicado no Recanto das Letras, no ano de 2009)
Nenhum comentário:
Postar um comentário