domingo, 26 de novembro de 2023

CRÔNICA – UMA ÚLTIMA VEZ

Em que momento aquela senhora se sentou do meu lado, eu não saberia dizer. Também não saberia precisar quanto tempo fiquei desacordado. Estava com sono e os olhos cerraram-se com força incessável, o tronco pendeu para o lado, a cabeça tombou e o livro caiu sobre o assento. Nos últimos meses ando tão cansado, que sou tomado por um sono indescritível sempre que estou na praça para fazer minhas leituras..., então quando despertei ela estava bem ali, dividindo comigo o calor e o banco da praça.

Parecia não me notar, sentada cuidadosamente no cantinho, contemplando as frivolidades da praça, em silêncio total, pernas cruzadas, mãos apoiadas sobre o colo, observava tudo com demasiada atenção, mas se algo lhe despertava algum interesse, não demonstrava; nenhuma expressão ou movimento, parecia sequer respirar, como quem receia acordar seu companheiro de assento.

Recompus-me, meio sem jeito. Não é comum que alguém se sente do meu lado, as pessoas geralmente evitam proximidade com gente esquisita que tem tempo para ler livros e usa o banco da praça para cochilar. Ajeitei a gola da camisa, resgatei o livro aberto do assento, disse boa tarde, mas ela não me respondeu.

Permanecia quieta, observando a cidade.

Era uma mulher na casa dos sessenta anos, magra, usava um vestido leve e comprido. Seu rosto era de uma infinita serenidade, rugas desciam por seu pescoço imóvel. Parecia ser uma pessoa gentil, apesar de não ter respondido ao meu cumprimento, talvez por conta de problemas auditivos.

– Não precisa verificar o queixo o tempo todo – disse ela, súbito, sem me olhar diretamente – você não estava babando.

Era exatamente a neurose que me domina, sempre que estou a tirar cochilos, sentado no banco da praça; o receio de algo estar escorrendo da boca, talvez por repudiar pessoas que fazem isso, temo estar a fazer aquilo que condeno.

– Desculpe – falei, sem saber ao certo o que dizer – eu ando meio cansado. Há quanto tempo estou dormindo?

– Uns dez minutos, eu acho.

– Que coisa... Ainda bem que livro não é objeto de interesse de ninguém. Do contrário, eu teria meus livrinhos abreviados todos os dias.

– Na verdade, eu confesso que até verifiquei o título – disse ela, finalmente se virando pra mim – Mas não me interesso por processos.

O título do livro em questão era O Processo, de Franz Kafka. Era uma leitura um pouco confusa, a trama da obra é como estar dentro de um pesadelo estranho e imprevisível. Não era ruim, mas não estava me agradando... E quando não gosto de uma leitura, parece que meu sono se multiplica.

– Então a senhora veio até meu banco para ver se o livro que deixei escapar lhe interessava?

– Não, eu só notei o livro quando me sentei.

Olhei ao redor da praça e uma coisa me deixou intrigado:

– Há outros bancos vazios, por que a senhora veio se sentar aqui?

– Porque você não parece cansado..., parece triste.

Não sei dizer se com todo mundo é assim, mas dificilmente sou notado nos lugares em que estou. Pode ser que esteja sendo injusto comigo mesmo, ou quem sabe minha insignificância seja mais presente quando vou à praça ler, como apenas mais uma parte do cenário, não sou visto por ninguém. De qualquer forma, sinto-me ajustado quando estou lendo na praça, então pode ser que seja exatamente este encaixe que me torna invisível, pois tudo o que é comum, passa despercebido por olhares alheios..., acho que se trata de outra magia da leitura: a capacidade de escapar do momento presente.

– Estou vivendo o luto de uma perda muito grande – respondi, ainda surpreso com aquela observação a meu respeito.

– Quem ou o que você perdeu?

– Meu irmão mais novo – falei, a voz vacilante – passou as últimas três semanas lutando contra um AVC, mas foi derrotado na última sexta-feira.

– Vocês eram muito próximos? – agora ela parecia realmente interessada, aquele olhar calmo e afável me fez continuar.

– Eu diria que sim, tanto no aspecto regional, pois morávamos muito perto, quanto no aspecto emocional..., eu cuidei dele por muito tempo quando era bebê. Tínhamos nossas diferenças, as vezes isso gerava discussões, mas sempre tive uma ligação muito forte com ele.

Ela desviou o olhar para o chão. Havia alguns pombos nos rodeando, curiosos ou esperançosos por um gesto costumeiro que algumas pessoas fazem quando estão sentados na praça. E foi justamente o que a mulher fez, tirou não sei de onde uma sacolinha cheia de migalhas.

– O que você mais gostava no seu irmão? – ela retirou um tanto do conteúdo do saquinho e atirou no chão diante de nós.

– Acho que a coragem que ele tinha – levei um susto com a enorme quantidade de pombos que surgia de todos as direções, pousavam sob nossos pés para disputarem as migalhas – Ele focava no que queria e seguia em frente, não deixava que nenhum revés da vida lhe abalasse. Estava prosperando, realizando seus sonhos, parecia feliz..., então veio o maldito AVC e acabou com tudo.

– Se ele era o caçula, devia ser bem jovem, pois você não me parece muito velho.

– Ele tinha 34 anos..., eu tenho 42.

– O universo é mesmo injusto, não é mesmo? – disse ela, encarando a aglomeração de pombos – Tira-nos pessoas que amamos muito cedo, sem nenhuma fundamentação do ato.

– Só o que existe é a contingência, minha senhora.

– E por isso o ser humano tem tanto medo – ela atirou mais algumas migalhas e se virou para mim – Mas e quanto a Deus?

– Deus? A senhora acredita que existe alguma entidade por aí manipulando a nossa existência, como se fôssemos peões de um infinito jogo de tabuleiro?

– E se houver?

– Então esse Deus é imensamente despótico e cruel.

– Cruel ou não, você não acredita nisso.

– Talvez até exista alguma força soberana por aí, mas ela não quer saber de nós. Somente passou por aqui e foi embora..., acho que estamos sozinhos neste planeta. E acho que o ser humano teme a solidão mais do que a morte.

Fizemos um breve silêncio. A mulher não parecia nem um pouco contrariada com minhas respostas. Até porque eu também não sabia o que ela pensava sobre esses assuntos metafísicos. Mas se ela se sentiu desconfortável com minhas respostas, a culpa era dela. Não foi eu quem começou a falar de Deus! Contudo, era prudente sustentarmos aquele silêncio por algum tempo. Algumas ideias demoram a serem digeridas pela mente.

– Quando foi a última vez que vocês se falaram? – foi ela quem retomou o papo.

– Você quer saber quando eu falei com Deus pela última vez?

– Achei que você não falasse com Deus.

– Converso comigo mesmo, como todo mundo..., acho que se fosse religioso eu acreditaria que estivesse conversando com Deus.

– Eu li em algum lugar que a relação de um ateu com Deus é como a de dois amigos que brigaram e não se falam mais; os dois ainda se amam, mas são orgulhosos demais para ceder.

– Eu não costumo me considerar um ateu.

– E o que você é?

– Não sou nada..., não gosto de rótulos.

– Tudo bem, mas quando eu fiz a pergunta, estava na verdade me referindo ao seu irmão..., quando foi a última vez que vocês dois se falaram?

– Acho que foi numa sexta-feira, eu passei na lanchonete dele e conversamos um pouco – as migalhas acabaram e, devagar, os pombos foram se dispersando. Ao longe, alguns motoristas começaram a buzinar, estressados no trânsito – Como não era incomum, tivemos outra discussão por conta de diferenças e eu usei um tom cheio de ironia para depreciá-lo. No sábado, eu não sai de casa pra nada, passei o dia estudando e no domingo cedo a mulher dele me ligou desesperada. Quando cheguei na casa deles, encontrei-o caído no chão, estava consciente, mas sem movimentos e não falava... aquela era a primeira de três imagens perturbadoras que vivenciaria nos próximos dias.

A confusão no trânsito pareceu se dissipar do mesmo modo que começou: espontaneamente.

– Quais foram as outras duas? – ela quis saber.

– A segunda foi quando o vi no hospital, duas semanas depois do AVC. Tinha sofrido algumas cirurgias, estava debilitado, o crânio muito inchado, inexpressivo, ele quase não se movia, apenas me acompanhava com o olhar. Não foi nada fácil ver um irmão que sempre vi saudável e alegre, arruinado daquela forma. Quando toquei a única mão que ele manifestava algum movimento, seu dedo polegar ficou a acariciar as costas da minha mão, levemente..., um dedo! Era todo o afeto que sua condição permitia demonstrar.

A lembrança daquele dia fez a indignação emergir em meu ser. Achava tudo aquilo muito injusto, como pode uma vida tão jovem e próspera ser abreviada daquele jeito cruel, sem ninguém com quem pudéssemos atribuir alguma responsabilidade? O mesmo ódio incoercível que senti ao ver meu irmão frágil numa cama de UTI estava de volta, ali na praça..., mas afinal, ódio de que? Ódio de quem?

Como a impotência diante da finitude é o elemento mais notório do ser humano, clamamos por vingança! Meu irmão estava morto e a sensação era de impunidade..., Isso me fez pensar que Deus fosse, de fato, uma entidade onipresente, pois assume até mesmo o lugar de réu, porque sabe que precisamos dessa ínfima clemência.

– A terceira imagem aterradora foi vê-lo no caixão, a pele arroxeada, gelada feito mármore. Não era apenas a imagem da morte dele, mas a representação do fim da esperança. A confirmação de que estamos mesmo sozinhos no mundo. Todas as orações e súplicas foram sumariamente ignoradas... Sim, talvez exista um Deus todo poderoso por aí, senhora. Mas ele está cagando pra nós aqui.

O calor ou a raiva começava a fazer meus poros minar. Estávamos sentados naquele banco recebendo um sopro cálido que parecia intencionado em nos expulsar dali. Pra piorar, eu tinha agora uma coisa entalada na garganta, fruto das memórias recentes. Enquanto a mulher do meu lado parecia impassível, o que me fez descartar a hipótese de que ela fosse membro de alguma religião interessada em usar a minha dor como justificativa para arrastar-me ao templo do Deus dela. A menos que fosse alguém exclusivamente interessada em somar mais um dizimista e, portanto, estivesse insensível ao meu sofrimento.

Porém, não parecia ser o caso, a mulher demonstrava interesse apenas quando me fazia perguntas, e então retornava ao modo contemplativo.

– E se você pudesse voltar no tempo? – perguntou ela.

– Como é?

– Se você pudesse estar de volta àquela sexta-feira, exatamente no instante em que chegou na lanchonete do seu irmão?

– Eu..., eu não sei. – Fui pego de surpresa por aquela pergunta, que estranhamente sova como uma proposta – Nunca pensei sobre isso.

– Funciona assim: – ela se virou e assumiu ares instrutivos – você vai devolver seu livro ao assento, exatamente onde ele estava, depois recostar a cabeça de volta no encosto do banco e fechar os olhos. Então você vai dormir novamente... Quando acordar, eu não estarei aqui e será sexta-feira, 29 de setembro. Você vai terminar sua leitura, voltar ao trabalho e no fim da tarde, irá até a lanchonete do seu irmão. Ele estará lá, cuidando das coisas como num dia qualquer.

Ela fez uma pausa, enquanto eu preenchia a mente com a visão dele me recebendo como sempre fazia, um abraço, duas ou três perguntas banais sobre o meu dia, então ofereceria uma cerveja gelada. Se aquilo fosse possível, poder desfrutar de sua presença uma vez mais, então eu estava diante de uma oferta irrecusável. Mas antes que eu dissesse qualquer coisa, a mulher ergueu o indicador em sinal de cautela:

– Só existe uma condição nisso que estou oferecendo a você.

– Que condição?

– Nada do que você fizer poderá mudar o que virá nos próximos dias – estava-me sendo colocado na consciência o paradoxo da escolha – Você terá seu retorno ao passado como se fosse uma chance de despedida da maneira que lhe parecer mais adequada. Contudo, terá que reviver os dias seguintes, que serão estritamente iguais ao que aconteceu; seu irmão sofrerá o acidente vascular cerebral, você será o primeiro a chegar para prestar socorro, ele ficará semanas internado numa UTI, você fará aquela mesma visita e receberá o limitado carinho que ele pôde fazer com o dedo..., então chegará o nefasto dia da morte, o indigesto velório, o enterro lúgubre e o inescapável luto...

Pareceu-me um preço muito alto a se pagar.

Eu não sustento nenhum tipo de remorso em relação à convivência que tive ao lado do meu querido irmão. Mas reconheço que seria muito bom poder voltar a lanchonete e encontrá-lo, uma última vez, ver aquele seu entusiasmo único e confiança inabalável, poder lhe dar um beijo e dizer que o amo..., contudo, viriam os próximos dias, cujas circunstâncias aterradoras causaram estrago incomensurável em minha alma.

Aquilo me fez pensar em contos mitológicos em que os deuses do Olimpo concediam algum desejo ao ser humano, que à priori soava como uma coisa boa, mas sempre havia algo nefasto escondido por trás da realização do desejo. A lição que os gregos queriam passar com esses contos era a de que os homens não sabem antever as consequências daquilo que desejam. Pelo menos quanto a isso eu estava sendo poupado, pois a doce senhora fez a gentileza de me contar o que havia nas entrelinhas de sua proposta. E diante disso, eu só poderia lhe dar uma resposta, fosse aquilo uma metáfora ou não, sei muito bem que não estava preparado para as consequências de reviver o encontro com a morte.

– Eu agradeço por me oferecer essa irresistível possibilidade – respondi, sem muita convicção e, por isso mesmo, torcia para ela não ser persuasiva – mas eu vou recusar sua oferta.

– Não deseja rever seu irmão uma vez mais?

– Desejo muito, senhora. Mas não sei se aguento passar por aquilo tudo novamente.

Ela estava a me olhar daquele jeito, direto, então precisei virar o rosto para evitar que ela me visse enxugando uma lagrima que escapou e desceu pela minha face. Sempre tive vergonha de chorar na presença das pessoas, embora era fato que nas últimas semanas eu andava a chorar copiosamente e em qualquer lugar, como nunca havia chorado antes. Mas naquele momento, ali no banco da praça, voltei a sentir vergonha de chorar.

– A dor vai passar, acredite – disse ela e se levantou – quando passar só restará a saudade. E desse ponto em diante, as lembranças serão prazerosas.

A mulher se afastou em uma direção qualquer, até desaparecer no meio da urbanização. Sozinho no banco da praça, eu senti um estranho arrepio que me fez retirar o telefone do bolso pra verificar a data. O que vi causou-me alívio, pois ainda estava no presente e eu não precisaria passar novamente por aqueles dias sombrios do passado recente.

Sim, eu teria adorado rever meu irmãozinho. Mas como aquela doce senhora garantiu, a dor já vai passar. E quando isso acontecer poderei revê-lo nas minhas lembranças, poder sustentar o melhor dele, sem que para isso eu tenha que vivenciar de novo os piores dias da minha vida...

Li em algum lugar que o mundo se torna mais difícil de se suportar, na medida em que morrem pessoas que gostavam da gente... Agora eu sei que isso é a mais pura verdade.

***

Em memória de meu querido irmão

18/03/1989 - 20/10/2023


sábado, 11 de novembro de 2023

RESENHA DE LIVRO – POSITIVAMENTE IRRACIONAL

Não importa qual o aspecto da vida humana esteja em pauta. A complexidade que nos é tão característico, faz com que qualquer especificidade seja de difícil compreensão. Conclusões racionais definitivamente estão fora de hipóteses quando se pensa no ser humano. Há diversas nuances que interferem ou que influenciam a equação do nosso comportamento. Talvez este seja o elemento mais agradável quando se inicia uma leitura como a desse POSITIVAMENTE IRRACIONAL: uma análise absolutamente convencida dessa complexidade e, portanto, tem por finalidade a espinhosa função de desbancar certezas desse enorme quebra-cabeça chamado humano.

O americano Dan Ariely é professor de psicologia e economia comportamental. Com inesgotável inquietação por compreender a nossa espécie, seus trabalhos são constantemente citados em distintas plataformas. Este aqui é seu segundo livro, que soa como uma espécie de continuação temática. O primeiro chama-se Previsivelmente Irracional. Em ambos a conduta do homem é o escopo essencial do autor.

No primeiro livro, Dan nos mostra implicações de tomadas de decisões aparentemente irracionais do ponto de vista comportamental, mas que fazemos de modo automático ou sem uma devida reflexão. O livro tem como premissas repensar o modo como nós agimos no cotidiano. Já POSIVITAMENTE IRRACIONAL busca responder questões como por que recompensas financeiras nem sempre funcionam? Por que superestimamos o que fazemos? Por que consideramos nossas ideias sempre melhores do que as dos outros?

Uma característica desse autor que aparece no primeiro livro e se repete neste, é para com sua didática experimental do comportamento humano. Dan Ariely se aprofunda em pesquisas da conduta econômica, coleta dados e nos faz um resumo de seu trabalho, usando uma linguagem acessível e às vezes até divertida. Também faz uso de sua própria experiência de vida para fazer associações com outros dados, como uma verdadeira cobaia da vida.

A irracionalidade está incutida em quase todas as nossas decisões de vida, de modo inconsciente. E inevitavelmente, isso reflete nos resultados futuros ou até geram conflitos inéditos e danos irreversíveis. Ter alguma noção de como funciona a mente humana é a premissa, talvez um tanto utópica, a qual o livro reconhece tamanha impossibilidade.

O autor faz parte de uma equipe de colaboradores do notório MIT – Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Os resultados de diversos testes sociológicos feitos pela equipe validam algumas perspectivas de como agimos sob a influência de padrões emotivos de comportamento, e de como tais padrões podem afetar nossa vida a longo prazo.

Também faz parte da análise da obra certos padrões comportamentais que inconscientemente estabelecemos na vida, sem nos darmos conta de que tais comportamentos foram estabelecidos em nossa conduta por um padrão condicional efêmero, como por exemplo, quando agimos tomados por emoções de curto prazo, que acabam se tornando algo normativo e achamos que isso é um aspecto de nossa natureza, em vez de comportamento aprendido.

POSITIVAMENTE IRRACIONAL é um interessante trabalho, inconclusivo por excelência, de linguagem acessível e recheado de curiosidades sobre nossa natureza. Busca compreender um pedacinho da complexidade humana, oferece novas perspectivas e verdades sobre nossas reais motivações na convivência profissional e pessoal e o que torna o ser humano quase inerentemente procrastinador.

NOTA: 9,3