O Ministério da Saúde recomenda (Ministério da Saúde, o que é isso?): a dose ideal de harmonia diária consiste no ato de estabelecer uma boa conversa com alguma pessoa lúcida.
O problema que costumeiramente
ocorre é que essa tal lucidez não é muito fácil de se encontrar atualmente e, em
geral, ocorre das mais inusitadas formas. Portanto, nem sempre estamos com o
radar atento para diferenciar diamante de bijuteria. Falta-nos lucidez?
Ao me deparar com um aviso de
tentativa de entrega, procurei pelo agende dos Correios, cujo tradicional veículo
amarelo se encontrava estacionado em frente ao escritório onde trabalho, de
modo que mostrei a ele o comunicado deixado na caixa de correspondências. Foi
um ato certeiro, pois minha encomenda ainda se encontrava em sua posse.
Por medidas de segurança o
funcionário pediu documento de identificação e, perante a impossibilidade de verificar
meu rosto parcialmente coberto pela máscara (nossa indispensável indumentária nesses
tempos de pandemia), pediu que eu a tirasse para comparar com a foto no
documento. Nenhum problema! Baixei o sufocante adereço e ele pode constatar que,
de fato, eu era mesmo o sujeito na foto em sua mão.
– Sabe, tem gente que vira o
bicho quando eu peço para retirar a máscara – comentou ele, enquanto me
indicava o local onde deveria assinar. Recusar-se a retirar a máscara nestes
tempos de negacionismo seria quase como um ato subversivo, mas obviamente não
era essa a razão da zanga coletiva a qual o entregador se referia.
– Eu viraria o bicho, caso
você entregasse minha encomenda para alguém que não fosse eu – redargui, quase
que automaticamente, vendo a obviedade do ato – Por que todo esse receio das
pessoas em cumprir normas de segurança?
– Sei lá... – disse ele, pensativo,
e coçou seu queixo igualmente encoberto – Acho que o brasileiro não sabe lidar
com a desconfiança, mesmo sabendo que somos um povo excessivamente desconfiado.
Meu interminável preconceito
achou aquela resposta sofisticada demais para vir de um entregador de correspondências.
Por sorte, o assunto era desconfiança, e eu sou o sujeito mais desconfiado de
meus próprios conceitos, principalmente aqueles que são estabelecidos de modo
automático..., afinal, pessoas lúcidas podem estar por toda parte e em qualquer
lugar. Sabedoria não é coisa exclusiva de guru. Sabedoria é coisa de ser
humano, e o ser humano é que nem barata: pode ser encontrado em todo canto.
– Talvez não seja uma questão
de nacionalidade – falei, em defesas de nós, cismados brasileiros –
Desconfiança faz parte da natureza humana.
– Só posso falar pelos
brasileiros... – reforçou o entregador – e nós desconfiamos demais porque bem sabemos
que quando não estamos sob forte vigilância, enfiamos os dois pés na jaca.
A metáfora da jaca me fez
pensar sobre a última vez em que entrei de sola no fruto desprotegido. Não me
ocorreu nenhuma lembrança terrível... Seria essa escassez de “aventura” a
explicação para o meu tédio recente? Percebi que só de pensar em transgredir,
meu corpo já sentiu aquele frio na barriga, típico de quem rompe sistemas em
nome da individualidade. A gente vive a tanto tempo acorrentado que atualmente
enfiar o pé na jaca já nem é por mero desejo pela fruta, mas a busca inerente
pela fuga das amarras.
– Você costuma ser assim? – minha
incapacidade argumentativa fez com que eu transferisse a pergunta para o
entregador. Mas não cessava de repeti-la, mentalmente, a mim mesmo – Tipo, se
comportar de forma imoral quando tem a chance?
– Muitas vezes... – respondeu ele,
sem sequer corar o rosto ou refletir a respeito – Mas a questão não é essa.
– E qual seria?
– A pergunta é: Por que nós
consideramos mais fácil conviver com a normatização da imoralidade?
Uau! Perguntas com o poder de
despertar reflexão são raras. Eu teria salientado que ele está na profissão
errada, ou ao menos convidado aquele sujeito intrigado com a natureza humana
para um café, onde poderíamos seguir com aquela introspectiva prosa. Mas o cara
parecia aflito com tantas entregas para fazer em curto prazo. Porém, antes deixar
que escapasse, quis dar-lhe algo simplório, que não deixasse transparecer minha
completa incapacidade em resolver o encalombado dilema:
– Farinha pouca, meu pirão
primeiro... é o que todos dizem, certo?
– Pode ser... Só que tem gente
por aí com o pirão prontinho e mesmo assim não abre mão de ser antiético em
momento algum. Parece que esperteza virou sinônimo de força, enquanto honestidade
é coisa de gente fraca.
O cara dos Correios foi embora
com os braços abarrotados de caixas endereçadas. E eu permaneci ali, parado, ao
lado do veículo amarelo, a mente também amarela e revirada, sustentando uma
única certeza: a de que eu não fazia ideia da razão de sermos tão idiotas na
convivência diária uns com os outros.
Seríamos todos essencialmente
cruéis? É saudável viver nosso cotidiano sob a insígnia da competitividade continuada?
O mundo está mais apertado ou nós estamos mais espaçosos? Confiança é um comportamento
inadequado? Tornamo-nos elos inseparáveis de uma extensa corrente do mal?
O aclamado escritor americano
Mark Twain lança ainda mais incerteza sobre esse assunto. Ele diz: “De que adianta aprender a fazer o certo,
quando é problemático fazer o certo, não é difícil fazer o errado, e o salário
é o mesmo?”.
Apesar
de parecer insinuar por meio de uma questão, o escritor sugere que pensemos
sobre a problemática situacional, que a nós parece óbvio: somos constantemente
tentados a fazer algo errado em benefício próprio. Principalmente após aquela
breve análise mental, cujo veredito quase sempre define como inofensivo e
irrelevante, nosso ato transgressor. E assim, seguimos com esse ciclo vicioso
de ruir com a convivência social, discretamente e aos poucos, como fazem os
vírus nocivos ao invadir um novo hospedeiro.
Às vezes penso exatamente igual a antropóloga Lilia Schwarcz: sou pessimista no atacado e otimista no varejo. E na contra mão da inevitável descrença no ser humano, desconfio de que a imoralidade, embora desproporcional, é mais barulhenta do que extensa, portanto, soa como presença constante. Já a gentileza é tímida e sutil; de circunstâncias difundidas e, por isso, quase imperceptível. O gentil não fala de sua gentileza, enquanto o canalha adora narrar suas transgressões e geralmente recebe aplausos por elas.
Mas se trata de apenas dúvidas intermináveis, que talvez amanhã eu tenha sorte de encontra outra dose de lucidez que me ajude a pensar sobre a complexidade da vida... Afinal, tem gente incrível por aí, perdidos no meio do caos, entregando nossa correspondência, dirigindo carros, enfurnados em escritórios fóbicos, limpando a sujeira coletiva, se divertindo em bares, escrevendo alguma bobagem, fazendo cálculos complexos, caminhando pelo calçadão, cuidando de algo ou de alguém... A boa e velha magia do ineditismo do mundo.