sábado, 17 de abril de 2021

CRÔNICA: SANIDADE COMO EXCEÇÃO

O Ministério da Saúde recomenda (Ministério da Saúde, o que é isso?): a dose ideal de harmonia diária consiste no ato de estabelecer uma boa conversa com alguma pessoa lúcida.

O problema que costumeiramente ocorre é que essa tal lucidez não é muito fácil de se encontrar atualmente e, em geral, ocorre das mais inusitadas formas. Portanto, nem sempre estamos com o radar atento para diferenciar diamante de bijuteria. Falta-nos lucidez?

Ao me deparar com um aviso de tentativa de entrega, procurei pelo agende dos Correios, cujo tradicional veículo amarelo se encontrava estacionado em frente ao escritório onde trabalho, de modo que mostrei a ele o comunicado deixado na caixa de correspondências. Foi um ato certeiro, pois minha encomenda ainda se encontrava em sua posse.

Por medidas de segurança o funcionário pediu documento de identificação e, perante a impossibilidade de verificar meu rosto parcialmente coberto pela máscara (nossa indispensável indumentária nesses tempos de pandemia), pediu que eu a tirasse para comparar com a foto no documento. Nenhum problema! Baixei o sufocante adereço e ele pode constatar que, de fato, eu era mesmo o sujeito na foto em sua mão.

– Sabe, tem gente que vira o bicho quando eu peço para retirar a máscara – comentou ele, enquanto me indicava o local onde deveria assinar. Recusar-se a retirar a máscara nestes tempos de negacionismo seria quase como um ato subversivo, mas obviamente não era essa a razão da zanga coletiva a qual o entregador se referia.

– Eu viraria o bicho, caso você entregasse minha encomenda para alguém que não fosse eu – redargui, quase que automaticamente, vendo a obviedade do ato – Por que todo esse receio das pessoas em cumprir normas de segurança?

– Sei lá... – disse ele, pensativo, e coçou seu queixo igualmente encoberto – Acho que o brasileiro não sabe lidar com a desconfiança, mesmo sabendo que somos um povo excessivamente desconfiado.

Meu interminável preconceito achou aquela resposta sofisticada demais para vir de um entregador de correspondências. Por sorte, o assunto era desconfiança, e eu sou o sujeito mais desconfiado de meus próprios conceitos, principalmente aqueles que são estabelecidos de modo automático..., afinal, pessoas lúcidas podem estar por toda parte e em qualquer lugar. Sabedoria não é coisa exclusiva de guru. Sabedoria é coisa de ser humano, e o ser humano é que nem barata: pode ser encontrado em todo canto.

– Talvez não seja uma questão de nacionalidade – falei, em defesas de nós, cismados brasileiros – Desconfiança faz parte da natureza humana.

– Só posso falar pelos brasileiros... – reforçou o entregador – e nós desconfiamos demais porque bem sabemos que quando não estamos sob forte vigilância, enfiamos os dois pés na jaca.

A metáfora da jaca me fez pensar sobre a última vez em que entrei de sola no fruto desprotegido. Não me ocorreu nenhuma lembrança terrível... Seria essa escassez de “aventura” a explicação para o meu tédio recente? Percebi que só de pensar em transgredir, meu corpo já sentiu aquele frio na barriga, típico de quem rompe sistemas em nome da individualidade. A gente vive a tanto tempo acorrentado que atualmente enfiar o pé na jaca já nem é por mero desejo pela fruta, mas a busca inerente pela fuga das amarras.

– Você costuma ser assim? – minha incapacidade argumentativa fez com que eu transferisse a pergunta para o entregador. Mas não cessava de repeti-la, mentalmente, a mim mesmo – Tipo, se comportar de forma imoral quando tem a chance?

– Muitas vezes... – respondeu ele, sem sequer corar o rosto ou refletir a respeito – Mas a questão não é essa.

– E qual seria?

– A pergunta é: Por que nós consideramos mais fácil conviver com a normatização da imoralidade?

Uau! Perguntas com o poder de despertar reflexão são raras. Eu teria salientado que ele está na profissão errada, ou ao menos convidado aquele sujeito intrigado com a natureza humana para um café, onde poderíamos seguir com aquela introspectiva prosa. Mas o cara parecia aflito com tantas entregas para fazer em curto prazo. Porém, antes deixar que escapasse, quis dar-lhe algo simplório, que não deixasse transparecer minha completa incapacidade em resolver o encalombado dilema:

– Farinha pouca, meu pirão primeiro... é o que todos dizem, certo?

– Pode ser... Só que tem gente por aí com o pirão prontinho e mesmo assim não abre mão de ser antiético em momento algum. Parece que esperteza virou sinônimo de força, enquanto honestidade é coisa de gente fraca.

O cara dos Correios foi embora com os braços abarrotados de caixas endereçadas. E eu permaneci ali, parado, ao lado do veículo amarelo, a mente também amarela e revirada, sustentando uma única certeza: a de que eu não fazia ideia da razão de sermos tão idiotas na convivência diária uns com os outros.

Seríamos todos essencialmente cruéis? É saudável viver nosso cotidiano sob a insígnia da competitividade continuada? O mundo está mais apertado ou nós estamos mais espaçosos? Confiança é um comportamento inadequado? Tornamo-nos elos inseparáveis de uma extensa corrente do mal?

O aclamado escritor americano Mark Twain lança ainda mais incerteza sobre esse assunto. Ele diz: “De que adianta aprender a fazer o certo, quando é problemático fazer o certo, não é difícil fazer o errado, e o salário é o mesmo?”.

Apesar de parecer insinuar por meio de uma questão, o escritor sugere que pensemos sobre a problemática situacional, que a nós parece óbvio: somos constantemente tentados a fazer algo errado em benefício próprio. Principalmente após aquela breve análise mental, cujo veredito quase sempre define como inofensivo e irrelevante, nosso ato transgressor. E assim, seguimos com esse ciclo vicioso de ruir com a convivência social, discretamente e aos poucos, como fazem os vírus nocivos ao invadir um novo hospedeiro.

Às vezes penso exatamente igual a antropóloga Lilia Schwarcz: sou pessimista no atacado e otimista no varejo. E na contra mão da inevitável descrença no ser humano, desconfio de que a imoralidade, embora desproporcional, é mais barulhenta do que extensa, portanto, soa como presença constante. Já a gentileza é tímida e sutil; de circunstâncias difundidas e, por isso, quase imperceptível. O gentil não fala de sua gentileza, enquanto o canalha adora narrar suas transgressões e geralmente recebe aplausos por elas.

Mas se trata de apenas dúvidas intermináveis, que talvez amanhã eu tenha sorte de encontra outra dose de lucidez que me ajude a pensar sobre a complexidade da vida... Afinal, tem gente incrível por aí, perdidos no meio do caos, entregando nossa correspondência, dirigindo carros, enfurnados em escritórios fóbicos, limpando a sujeira coletiva, se divertindo em bares, escrevendo alguma bobagem, fazendo cálculos complexos, caminhando pelo calçadão, cuidando de algo ou de alguém... A boa e velha magia do ineditismo do mundo.

sexta-feira, 2 de abril de 2021

RESENHA DE LIVRO – SOBRE O AUTORITARISMO BRASILEIRO

 

“Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la”.

Essa frase de George Santayana, deveria soar para a nação brasileira como um alerta para o que está acontecendo em nosso país, e talvez sobre a égide desse prenúncio agourento, não permitirmos que lideranças populistas tentem reinventar o passado do Brasil, transformando atos hediondos, irresponsáveis e traumáticos de nossa história em razoabilidade patriótica. Apossar-se da memória de um povo é submeter este mesmo povo à um eterno retorno de desgraças.

A grande premissa por trás dessa excelente obra da antropóloga Lilia Schwarcz, é trazer à tona temas aparentemente escondidos ou disfarçados da sociedade brasileira, justamente para que o público leigo reflita sobre nossos problemas com o enfoque no cerne da enfermidade, sem se deixar seduzir por caminhos fáceis e soluções milagrosas. A autora aqui nos convida a uma verdadeira terapia social.

Não me excluo desse meio que precisa desenvolver melhor o pensar e, portanto, antecipei a leitura desse livro por conta do atual momento em que estamos vivendo; um cenário onde a sociedade brasileira parece fadada a um futuro desesperançoso. SOBRE O AUTORITARISMO BRASILEIRO é uma obra pra ser lida agora, por todos nós, quase em caráter de urgência.

Sim, precisamente o livro é premente, pois sua premissa é tentar explicar, de um modo introdutório, quais foram as mazelas que resultaram na ascensão dessa nova direita extremamente autoritária e populista. Mas então seria o autoritarismo, incutido no título da obra, algo exclusivo de uma parcela de nossa sociedade? Em outras palavras, o viés extremista é aspecto exclusivo desse pensamento direitista?

É o que Lilia Schwarcz através de uma linguagem simples e acessível procura nos mostrar: o autoritarismo brasileiro não é elemento de determinado grupo, ou de meia dúzia de pessoas sem caráter. Não. O autoritarismo é resultado de um país que ainda se sustenta em bases apodrecidas dos tempos de colonialismo, onde imperava um sistema latifundiário patriarcal, escravocrata e misógino, onde a figura central, que alimenta e carece da continuidade expressiva de desigualdade social, era e ainda é a figura do “mito”, do salvador da pátria.

A concentração de poder, dentro da instância pública, tornou nosso sistema político inchado, refém de um clientelismo quase que inerente e que nunca deixou de existir. Os entraves desse “jeitinho brasileiro” de ser, é apenas uma das muitas práticas que se repetem ainda em tempos atuais, de um povo que ainda sofre as consequências de um sistema escravocrata, cuja estrutura latifundiária expansiva reduz à um punhado as riquezas da nação.  

É um livro, sobretudo, que trata da permanência do nosso passado. Somos um povo explicitamente movidos pelo ressentimento por termos sidos colonizados, de termos mandonismos localizados, nossos governantes são formados ainda por coronelismo, ou seja, famílias que eram donas do poder nos tempos de Brasil colônia e a coisa parece seguir do mesmo modo; somos regidos por um sentimento patriarcal que nos soa normativo, mas que nos induz a acreditar em heróis de terno e gravata.

Alguns livros precisam ser indicados, não pelo mero prazer da leitura (aliás, muitos são laboriosos), mas pela obrigação que temos de elevar o conhecimento em prol de um mundo melhor. SOBRE O AUTORITARISMO BRASILEIRO é esse modelo de livro, pois me parece um tapa na cara de nossa hipocrisia. Chega de empurrar para debaixo do tapete a nossa sujeira de cinco séculos! Não dá mais para continuar ignorando este modelo de democracia dissimulada, cuja sordidez está tão enraizada, que consequências ainda mais graves estarão a nos esperar, se não abrirmos de uma vez nossos olhos turvos.

NOTA: 8