sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

RESENHA DE LIVRO – BUFO & SPALLANZANI


O imperador filósofo Marco Aurélio dizia que o escritor não deve deixar passar nenhum dia sem que seja escrito ao menos uma linha. Comecei a fazer resenhas de livro como uma forma de manter o exercício da escrita, principalmente em tempos de pouca inspiração e muito tédio. O intuito nunca foi o de me proclamar um crítico de literatura, mas a exposição de um leitor apaixonado, que na ausência de companhia para falar sobre livros, criou este espaço para se expressar.

Rubem Fonseca é um dos escritores brasileiros que mais li e resenhei aqui no blog, e sabendo que não há mais nada para se dizer sobre sua excelente bibliografia, não tinha nenhuma pretensão em falar sobre este BUFO & SPALLANZANI. Contudo, após o término da leitura, achei que valia à pena dispender alguns parágrafos sobre ele, dado seu conteúdo um pouco diferente dos romances policiais convencionais.

Temos aqui a história de um assassinato, cuja suspeita de autoria cai sobre os ombros do amante da vítima e narrador da trama, Gustavo Flavio. Logo somos apresentados a outro personagem potencialmente suspeito: o marido. Também não demora a surgir uma confissão do crime, que propositalmente soa um tanto leviana e fora de contexto. Porém, apesar do aparente estilo clichê dos romances policiais, o livro não se prende ao mistério do assassinato, optando por uma condução, digamos, descontinuada de progressão, o que até pode incomodar alguns leitores.

O livro é dividido em cinco partes. A primeira parte é mais curta e introdutória, porém, de uma profundidade extraordinária, o livro já me ganhou de cara! Esse capítulo narra a morte da vítima e a relação do narrador com a finada amante. A segunda parte conta sobre os tempos de juventude do narrador. O capítulo é muito bom, a genialidade de Rubem praticamente nos faz esquecer de que estávamos acompanhando o misterioso assassinato. Já a terceira parte o ritmo parece diminuir e a trama fica menos interessante. Relata um refúgio no qual o narrador, que esqueci de mencionar, é escritor de literatura, este resolve passar um tempo dedicado ao desenvolvimento de sua nova obra intitulada Bufo & Spallanzani.

Na quarta parte voltamos aos acontecimentos com o assassinato que principiou a trama. Aqui novas revelações que até soam um pouco óbvias, mas necessárias para que se retome o interesse pelo ocorrido. O livro aqui se renova e ganha fôlego. Então, seguimos para a conclusiva quinta parte, descobrimos um mistério paralelo que se fez durante a terceira parte, e claro, descobrimos o mistério do assassinato central.

BUFO & SPALLANZANI é um livro que parece brincar (ou zombar) com o gênero romance policial. Tem personagens centrais interessantes, algo tão característico de Rubem Fonseca, alguns personagens menos apreciáveis, principalmente no terceiro ato, uma conclusão pouco impactante, mas que não decepciona.

Enfim, esta obra de Rubem, como na maioria de suas outras, é interessante, bem escrita e de personagens instigantes. Não foi minha leitura favorita do mestre Rubem, mas busca fugir do lugar comum dentro do gênero e, claro, por isso, torna-se uma obra singular. Marasmo é algo que simplesmente não existe nas obras de Rubem Fonseca.

NOTA: 7

sábado, 18 de dezembro de 2021

RESENHA DE LIVRO – INFÂNCIA

Por razões que me escapam, Vidas Secas segue como obra que ainda não alcançou meu caminho de leituras. Graciliano Ramos continua, igualmente a outros gigantes da literatura nacional, uma grandiosidade assombrosa que intimida por seu pedestal alçado pela crítica erudita, mesmo que eu seja consciente de que a leitura de qualquer obra é uma experiência singular e distinta do escopo técnico e, portanto, nem um pouco opinativa. Careceria de mil anos para conhecer tudo de bom que a literatura mundial tem a oferecer; e é lamentável saber que não terei vida para desfrutar de tudo o que anseio ler.

A primeira porta que abri para o universo de Graciliano foi este INFÂNCIA, livro que mistura suas memórias primitivas com um tanto do desenvolvimento artístico do criador, recheado de elementos que denotam um propósito confessional seco, sem nenhuma pretensão ao eufemismo, tão comum nesse tipo de literatura.

INFÂNCIA se trata de uma narrativa das primeiras memórias do autor, construídas em capítulos curtos, com linguagem pouco cândida, mas vernizada por lirismos corteses. E embora a simplicidade do título ou a impressão que se tem de meras memórias de um passado longínquo, temos aqui uma obra que soa melhor como incursão autoanalítica mordaz e nem um pouco misericordiosa, quase um diário. É uma não criança falando da criança que um dia foi, sem a neutralidade da inocência, cujo cenário nordestino de pobreza, miséria e violência são quase palpáveis.

Temos aqui uma reunião de lembranças de tempos remotos misturados à ficção proposital, que como tal, é usada nesta obra talvez para preencher lacunas ou o cacoete característico do escritor fosse inseparável de sua literatura, mesmo quando esta possui uma premissa altamente biográfica.

É curioso a percepção que tive ao ler o relato que o autor fez de suas primeiras impressões com a literatura. Graciliano não se considera uma existência extraordinária, pelo contrário, vê-se como alguém ineficiente e incapacitado, que diferente do que pensa o senso comum, fez da literatura sua maneira de fugir da própria mediocridade. Não está lá implícito no texto, mas Graciliano deixa isso bem claro em muitos momentos. Foi a primeira vez que encontrei esse tipo de manifesto de escassez existencial, pela qual me identifiquei totalmente.

Há momentos em que algumas frases se perdem pela linguagem desusada e característica de uma comunidade. Contudo, mesmo isso não foi empecilho para que eu seguisse adiante com a leitura, até porque o charme da obra bebe da mesma fonte.

INFÂNCIA é um livro forte. Vai falar sobre a percepção de um olhar de menino, que equivocada ou não, denota a intensidade que este período da vida causa em cada um de nós; das violências verbais e físicas, a alienação existencial, falta de estrutura moral, psicológica e também social, um coquetel de traumas que moldará os alicerces de cada ser humano..., eis um livro necessário.

NOTA: 8,2

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

ANIVERSÁRIO DE CLARICE LISPECTOR

Em tempos extremos de desesperança por todos os âmbitos existenciais, onde quase não restam lugares de alento em que se possa buscar algum escape, eis que a literatura segue firme em sua função de amainar mentes em trevas. Parece que vivemos tempos de tragédia imutável, a qual nem é prudente dizer que não pode piorar, porque é uma falácia equivocada, cujos últimos dois anos nos ensinaram que, sim, sempre haverá espaço para piorar: uma pandemia interminável, um governo federal deliberadamente escroto, a fome que voltou a ser constante na vida dos brasileiros, violência por todos os lados..., talvez Sartre tivesse razão quando disse que o mundo poderia, sim, sobreviver sem a literatura, mas passaria muito melhor sem o homem.

Refletindo sobre essa ideia, sinto-me em conflito existencial justamente por conta da exoneração sugerida. Afinal, um mundo sem literatura seria, fatalmente, um lugar sem o homem (a definição homem aqui refere-se ao ser humano em geral. Vivemos tempos em que o óbvio precisa ser explicado, incessantemente). Sim, pois é o homem quem constrói a literatura..., talvez e, somente talvez, o mesmo Sartre estivesse correto, porém, relativamente destoante ao dizer que o inferno são os outros. Porque se isso for uma constante, deve-se também ser levado em consideração o fato de que o paraíso também são os outros.

Os grandes autores da literatura compuseram um verdadeiro éden ao alcance de qualquer um de nós que sustente o mínimo de interesse, disponibilidade substancial relativa ou uma biblioteca decente em sua cidade.

A aniversariante aqui homenageada nos deixou um legado incomensurável!

É impossível para este leitor que vos escreve esquecer do aniversário da nossa querida rainha. Além do fato de estar reverenciando a maior escritora judia desde Franz Kafka, Clarice Lispector nasceu um dia antes do meu aniversário. Portanto, na semana de seu nascimento eu costumo interromper minhas leituras para viver uma semana especial; uma semana de Clarice..., e o poder de sua literatura continua me salvando dos males mundanos.

Esta semana na companhia da senhorita Lispector eu escolhi reler A LEGIÃO ESTRANGEIRA. Deliciosa coletânea de contos que permeia, como é marca registrada da autora, os distúrbios e expectativas existenciais. O ser humano na literatura de Clarice é o objeto profundamente dissecado.

Atente-se, sobremaneira, para o estilo escritural da autora, regido sempre por uma sensibilidade extraordinária, Clarice demonstra através de seus personagens em que medida a tragédia e inconstância se movimentam e podem convergir para imagens de rara beleza e densidade.

A releitura é sempre um novo encontro. A evidente experiência situacional explicitada em cada conto, denota o encaixe preciso; cedo ou tarde o leitor será capturado pela sedução do texto. E geralmente o reencontro com o mesmo texto, transformado que foi o leitor pelo tempo, proporciona um novo prazer; um novo aprendizado..., a literatura de Clarice evolui conforme relemos. Não por acaso alguns críticos sugerem que a literatura de Clarice Lispector é como bruxaria.

Mas tentando evitar o requinte desnecessário, fica aqui apenas minha singela lembrança e recomendação para que você também descubra essa gênia da escrita. Permita-se! Não tenha medo de mergulhar no improvável escuro da alma humana. Logo após o assombro, vem a introspecção..., e por fim, o encantamento!

FELIZ ANIVERSÁRIO, QUERIDA CLARICE!!