Por conta do extremismo de direita cada vez mais acentuado, a desigualdade social escancarada e a interminável pandemia do Corona Vírus, a sociedade brasileira vive tempos praticamente inomináveis, tamanha é nossa perplexidade perante o desalento e desesperança do cidadão comum. Violência se tornou medida considerável, a intolerância perdeu a vergonha em se expor, o racismo prolifera e segue cada vez mais indelével, o fantasma da fome está de volta ao país.
Tempos de crise dessa
magnitude trazem a oportunidade de se repensar a sociedade, suas raízes, a
legitimação de sua história, a desconstrução de ideias que parecem consensual e
até incontestáveis. É o que o sociólogo Jessé Souza nos propõe neste
conteúdo necessário, que foi revisado recentemente: um ponto de vista fora da
caixa; uma reflexão mais enxuta capaz de diagnosticar a bárbara realidade em
que nos encontramos.
Para se chegar à compreensão
da famigerada elite do tema de sua obra, Jessé percorre três aspectos centrais
ao longo deste A ELITE DO ATRASO: nossa enraizada escravidão; a luta de
classes por privilégios e distinções presente na política do Brasil moderno; estes
dois chegando ao profundo diagnóstico do momento atual do país. Eis o convite a
singularidade analítica do autor; o tipo de conteúdo que tenho buscado
recentemente, pelo meu anseio de tentar compreender a tragédia na qual estamos
inseridos.
Jessé Souza
inicia seu trabalho analisando as bases do poder social legitimado, cuja chave
de acesso à tal consagração está no pensamento intelectual; e desse ponto de
vista, logo conclui-se dois nomes imprescindíveis de influência do pensamento
coletivo: o historiador Sergio Buarque de Holanda e o sociólogo Raymundo Faoro.
Segundo o autor, estes intelectuais difundiram como nenhum outro a forte
propagação da ideia de culturalismo e patrimonialismo incutidas em suas
respectivas obras referenciais: “As Raízes do Brasil” e “Os Donos do Poder”,
determinando assim o arquétipo específico no pensamento coletivo. Trata-se de
um horizonte de definição dos pressupostos para qualquer tipo de conhecimento.
Tais obras trouxeram à tona os malefícios que a propagação dos paradigmas do
patrimonialismo e culturalismo racista incutidos na sociedade brasileira como
um todo. Isso fica explicitado em “Raízes do Brasil”, quando o autor reforça o
viralatismo do brasileiro, ou seja, a ideia de que nosso povo, por ser
conhecido pela sua afetividade e informalidade, tenderia a práticas corruptas. “Normalmente
todas as pessoas são influenciadas pelo paradigma na qual estão inseridas e
ninguém, em condições normais, pensa além de seu tempo”, (pág. 15). A escassez
de interpretação dominante é apontada e intensificada de modo contundente:
“Por conta disso, quem
controla a produção das ideias dominantes controla o mundo. E também por isso,
as ideias dominantes são sempre produto das elites dominantes. É necessário,
para quem domina e quer continuar dominando, se apropriar da produção de ideias
para interpretar e justificar tudo o que acontece de acordo com seus interesses”.
(pág. 26).
O golpe de 2013 fundamentou o
agravamento da desigualdade social, políticas públicas de desconcentração de
renda foram adotadas pelos governos de esquerda, fazendo com que as classes
mais pobres galgassem melhores condições sociais; tiveram poder de compra e
acesso à educação superior (universidades). Isso despertou rancor e indignação
das elites brasileiras (exemplo das incursões das domésticas na CLT e o acesso
das classes menos favorecidas em ambientes tomados como exclusivos das elites,
como aeroportos). Jessé elucida:
“O ódio ao pobre hoje em
dia é a continuação do ódio devotado ao escravo de antes. Quando as classes
médias indignadas saíram às ruas a partir de junho de 2013, não foi,
certamente, pela corrupção do PT, já que os revoltados ficaram em casa quando a
corrupção dos partidos da elite veio à tona. Por que a corrupção do PT provocou
tano ódio e a corrupção de partidos elitistas é encarada com tanta
naturalidade? É que o ódio ao PT, na realidade, foi o ódio devotado ao único
partido que diminuiu as distâncias sociais entre as classes no Brasil moderno”
(pág. 70).
Segundo o autor, o principal
foco do patrimonialismo é tornar invisível a privatização do público pelas
elites, deixando o Estado como espantalho; mero bode expiatório que camufla o real
assalto aos recursos públicos, tornando o caminho livre para o mercado,
verdadeiro agente de rapina da sociedade. Nas palavras de Jessé:
“Na verdade, o Estado é
privatizado em todo lugar, e a noção de patrimonialismo apenas esconde mais
esse fato fundamental, possibilitando uma dupla invisibilização: dos interesses
privados que realmente dominam o Estado e do rebaixamento geral dos brasileiros,
que passam a tratar não apenas os estrangeiros, mas os interesses estrangeiros,
como superiores e produto de uma moralidade superior” (pág. 145).
A economista Maria Lúcia
Fattorelli, líder da associação Auditoria da Dívida Cidadã, aponta para o que
seria o maior entrave em nossa economia e alienação de recursos: a dívida
pública brasileira; chaga que consome mais de 38,27% do PIB nacional e,
“curiosamente”, passa despercebido pela grande mídia. Este, que considero a principal
problemática que atravanca nosso crescimento, também recebe o olhar do autor:
“A taxa de juros reais no
Brasil é a maior do mundo para remunerar precisamente o 1% mais rico que, no nosso caso, deixa
literalmente de pagar impostos. O orçamento estatal, agora pago pela classe
média e pelos pobres em sua maior parte, deixa de ser usado em serviços
essenciais para pagar de volta aos ricos, por meio da “dívida pública”, o que
eles deveriam ter pago como todos os outros cidadãos. Os ricos não só não pagam
o que deveriam, como ficam ainda mais ricos porque cobram uma sobretaxa, que é
a maior do mundo no caso brasileiro, pelo dinheiro que emprestam e que deveriam
ter pago como imposto” (pág. 173).
Eu
poderia seguir destacando partes do livro que são elucidativas de suas ideias e
temas, mas isso estenderia ainda mais esta já alongada resenha. Vou apenas
exibir uma última citação para reforçar a importância da obra e,
posteriormente, elencar o único ponto que me incomodou ao longo da leitura:
“...
grande corrupção brasileira está localizada no Banco Central e é gerenciada por
pessoas com doutorado em Chicago, onde aprenderam todas as manhas para
transferir o resultado do trabalho coletivo para as mãos de uma meia dúzia. Uma
“dívida pública” que não é nem “dívida”, posto que sem contraprestação à sociedade,
nem “pública”, posto que cheia de falcatruas privadas, daí que jamais auditada
e de conteúdo secreto, assegura o controle do orçamento público pago pelos
pobres e pela classe média. Juros extorsivos, onze vezes maiores que os
praticados num país de juros médio como a França, garantem uma forma de
apropriação da riqueza coletiva de modo opaco e invisível para a população
endividada e achacada pelo rentismo” (pág.
238).
Um
ponto que me incomodou um pouco foi a forma com que o livro releva as
responsabilidades do PT. Qualquer brasileiro que não seja fanático sabe que foi
o governo de Lula que fez acordos com gente torpe, como Eduardo Cunha (ele
recebeu o sistema Furnas para fazer o que sabia melhor: roubar); que segundo a
Secretaria do Tesouro Nacional, enquanto o petista esteve no poder, foi
transferido para os barões do sistema financeiro, via juros bancários, mais de
4 trilhões de reais. De fato, foi o PT o governo que implantou importantes sistemas
de inclusão dos mais pobres, mas foi também o PT que fez pactos com todo tipo
de canalha numa tentativa de se perpetuar no poder.
Enfim, A ELITE DO ATRASO é amplamente rico em discernimento e traz uma diferente perspectiva de nossa tragédia, bem distante do lugar comum ao qual estamos acostumados. É um trabalho que faz questão de destacar que a herança escravocrata ainda é o maior retrocesso da nossa sociedade e não se acovarda ao definir culpados (por exemplo a mídia brasileira) pela tragédia que nos levou a eleição de figuras deploráveis, como a de Jair Bolsonaro em 2018..., um livro fundamental!
NOTA: 8,5