sábado, 26 de fevereiro de 2022

RESENHA DE LIVRO – A ELITE DO ATRASO

Por conta do extremismo de direita cada vez mais acentuado, a desigualdade social escancarada e a interminável pandemia do Corona Vírus, a sociedade brasileira vive tempos praticamente inomináveis, tamanha é nossa perplexidade perante o desalento e desesperança do cidadão comum. Violência se tornou medida considerável, a intolerância perdeu a vergonha em se expor, o racismo prolifera e segue cada vez mais indelével, o fantasma da fome está de volta ao país.

Tempos de crise dessa magnitude trazem a oportunidade de se repensar a sociedade, suas raízes, a legitimação de sua história, a desconstrução de ideias que parecem consensual e até incontestáveis. É o que o sociólogo Jessé Souza nos propõe neste conteúdo necessário, que foi revisado recentemente: um ponto de vista fora da caixa; uma reflexão mais enxuta capaz de diagnosticar a bárbara realidade em que nos encontramos.

Para se chegar à compreensão da famigerada elite do tema de sua obra, Jessé percorre três aspectos centrais ao longo deste A ELITE DO ATRASO: nossa enraizada escravidão; a luta de classes por privilégios e distinções presente na política do Brasil moderno; estes dois chegando ao profundo diagnóstico do momento atual do país. Eis o convite a singularidade analítica do autor; o tipo de conteúdo que tenho buscado recentemente, pelo meu anseio de tentar compreender a tragédia na qual estamos inseridos.

Jessé Souza inicia seu trabalho analisando as bases do poder social legitimado, cuja chave de acesso à tal consagração está no pensamento intelectual; e desse ponto de vista, logo conclui-se dois nomes imprescindíveis de influência do pensamento coletivo: o historiador Sergio Buarque de Holanda e o sociólogo Raymundo Faoro. Segundo o autor, estes intelectuais difundiram como nenhum outro a forte propagação da ideia de culturalismo e patrimonialismo incutidas em suas respectivas obras referenciais: “As Raízes do Brasil” e “Os Donos do Poder”, determinando assim o arquétipo específico no pensamento coletivo. Trata-se de um horizonte de definição dos pressupostos para qualquer tipo de conhecimento. Tais obras trouxeram à tona os malefícios que a propagação dos paradigmas do patrimonialismo e culturalismo racista incutidos na sociedade brasileira como um todo. Isso fica explicitado em “Raízes do Brasil”, quando o autor reforça o viralatismo do brasileiro, ou seja, a ideia de que nosso povo, por ser conhecido pela sua afetividade e informalidade, tenderia a práticas corruptas. “Normalmente todas as pessoas são influenciadas pelo paradigma na qual estão inseridas e ninguém, em condições normais, pensa além de seu tempo”, (pág. 15). A escassez de interpretação dominante é apontada e intensificada de modo contundente:

Por conta disso, quem controla a produção das ideias dominantes controla o mundo. E também por isso, as ideias dominantes são sempre produto das elites dominantes. É necessário, para quem domina e quer continuar dominando, se apropriar da produção de ideias para interpretar e justificar tudo o que acontece de acordo com seus interesses”. (pág. 26).

O golpe de 2013 fundamentou o agravamento da desigualdade social, políticas públicas de desconcentração de renda foram adotadas pelos governos de esquerda, fazendo com que as classes mais pobres galgassem melhores condições sociais; tiveram poder de compra e acesso à educação superior (universidades). Isso despertou rancor e indignação das elites brasileiras (exemplo das incursões das domésticas na CLT e o acesso das classes menos favorecidas em ambientes tomados como exclusivos das elites, como aeroportos). Jessé elucida:

O ódio ao pobre hoje em dia é a continuação do ódio devotado ao escravo de antes. Quando as classes médias indignadas saíram às ruas a partir de junho de 2013, não foi, certamente, pela corrupção do PT, já que os revoltados ficaram em casa quando a corrupção dos partidos da elite veio à tona. Por que a corrupção do PT provocou tano ódio e a corrupção de partidos elitistas é encarada com tanta naturalidade? É que o ódio ao PT, na realidade, foi o ódio devotado ao único partido que diminuiu as distâncias sociais entre as classes no Brasil moderno” (pág. 70).

Segundo o autor, o principal foco do patrimonialismo é tornar invisível a privatização do público pelas elites, deixando o Estado como espantalho; mero bode expiatório que camufla o real assalto aos recursos públicos, tornando o caminho livre para o mercado, verdadeiro agente de rapina da sociedade. Nas palavras de Jessé:

Na verdade, o Estado é privatizado em todo lugar, e a noção de patrimonialismo apenas esconde mais esse fato fundamental, possibilitando uma dupla invisibilização: dos interesses privados que realmente dominam o Estado e do rebaixamento geral dos brasileiros, que passam a tratar não apenas os estrangeiros, mas os interesses estrangeiros, como superiores e produto de uma moralidade superior” (pág. 145).

A economista Maria Lúcia Fattorelli, líder da associação Auditoria da Dívida Cidadã, aponta para o que seria o maior entrave em nossa economia e alienação de recursos: a dívida pública brasileira; chaga que consome mais de 38,27% do PIB nacional e, “curiosamente”, passa despercebido pela grande mídia. Este, que considero a principal problemática que atravanca nosso crescimento, também recebe o olhar do autor:

A taxa de juros reais no Brasil é a maior do mundo para remunerar precisamente o 1% mais rico que, no nosso caso, deixa literalmente de pagar impostos. O orçamento estatal, agora pago pela classe média e pelos pobres em sua maior parte, deixa de ser usado em serviços essenciais para pagar de volta aos ricos, por meio da “dívida pública”, o que eles deveriam ter pago como todos os outros cidadãos. Os ricos não só não pagam o que deveriam, como ficam ainda mais ricos porque cobram uma sobretaxa, que é a maior do mundo no caso brasileiro, pelo dinheiro que emprestam e que deveriam ter pago como imposto” (pág. 173).

Eu poderia seguir destacando partes do livro que são elucidativas de suas ideias e temas, mas isso estenderia ainda mais esta já alongada resenha. Vou apenas exibir uma última citação para reforçar a importância da obra e, posteriormente, elencar o único ponto que me incomodou ao longo da leitura:

... grande corrupção brasileira está localizada no Banco Central e é gerenciada por pessoas com doutorado em Chicago, onde aprenderam todas as manhas para transferir o resultado do trabalho coletivo para as mãos de uma meia dúzia. Uma “dívida pública” que não é nem “dívida”, posto que sem contraprestação à sociedade, nem “pública”, posto que cheia de falcatruas privadas, daí que jamais auditada e de conteúdo secreto, assegura o controle do orçamento público pago pelos pobres e pela classe média. Juros extorsivos, onze vezes maiores que os praticados num país de juros médio como a França, garantem uma forma de apropriação da riqueza coletiva de modo opaco e invisível para a população endividada e achacada pelo rentismo” (pág.  238).

Um ponto que me incomodou um pouco foi a forma com que o livro releva as responsabilidades do PT. Qualquer brasileiro que não seja fanático sabe que foi o governo de Lula que fez acordos com gente torpe, como Eduardo Cunha (ele recebeu o sistema Furnas para fazer o que sabia melhor: roubar); que segundo a Secretaria do Tesouro Nacional, enquanto o petista esteve no poder, foi transferido para os barões do sistema financeiro, via juros bancários, mais de 4 trilhões de reais. De fato, foi o PT o governo que implantou importantes sistemas de inclusão dos mais pobres, mas foi também o PT que fez pactos com todo tipo de canalha numa tentativa de se perpetuar no poder.

Enfim, A ELITE DO ATRASO é amplamente rico em discernimento e traz uma diferente perspectiva de nossa tragédia, bem distante do lugar comum ao qual estamos acostumados. É um trabalho que faz questão de destacar que a herança escravocrata ainda é o maior retrocesso da nossa sociedade e não se acovarda ao definir culpados (por exemplo a mídia brasileira) pela tragédia que nos levou a eleição de figuras deploráveis, como a de Jair Bolsonaro em 2018..., um livro fundamental!

NOTA: 8,5

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