sábado, 5 de março de 2022

RESENHA DE LIVRO – O FILHO DE MIL HOMENS

O dramaturgo espanhol Jacinto Benavente, salientou que “ninguém aprende a viver pela experiência alheia; a vida seria muito triste se, ao começarmos a viver, já soubéssemos que viveríamos apenas para renovar a dor dos que viveram antes de nós”. Partindo dessa reflexão de Benavente podemos considerar que o ineditismo da vida é fundamento que nos tira do enfado, muito embora a espécie humana, sendo altamente sociável, desenvolve suas experiências através da interatividade com as experiências do semelhante. E a literatura possui alguns títulos pertinentes para pensarmos essa ideia.

Cada vez mais admirador da literatura portuguesa, sempre que tenho a chance, vasculho em livrarias e sebos à procura de escritores lusitanos. E chegou a vez de conhecer Valter Hugo Mãe e sua mesclagem de vivências humanas que compõem este belíssimo O FILHO DE MIL HOMENS.

Novamente o tipo de livro cuja sinopse é insuficiente no sentido de determinar seu conteúdo ou causar interesse imediato: tomado pela mais ardilosa maledicência que invade o ser humano, vazio existencial, o pescador Crisóstomo quer encontrar um filho (veja que não é encontrar o filho, mas encontrar um filho), e por meio disso expurgar sua inadequação permanente. Convencido de que este seria o meio eficaz para eliminar a falta de sentido existencial, o protagonista acredita que um filho vai sanar essa falta. Entremeio, outros personagens logo surgem, em capítulos aparentemente distintos, mas que se trata de outras vidas em busca de preenchimento para o mesmo mal que parece quase inerente ao personagem.

A problemática do anseio de cada um esbarra nos conceitos sociais vigentes, o que impossibilita que a autenticidade individual seja aflorada, restando ressentimentos e dúvidas, então a noção de vazio segue irremediável na vida de todos, porém de forma diferente, revelando cada um deles como individualidades aleatórias e desesperançadas.

O enredo em sua essência é um enfoque da aceitação de quem somos como fundamento para uma vida menos triste. Parece coisa de autoajuda, mas passa longe disso. Valter Hugo Mãe destila os mais distintos personagens e, através de seus conflitos existenciais, a mensagem parece estar lá o tempo inteiro. Sem parecer piegas, aqui os eventos apenas comprovam que a aceitação do lugar onde se está é o fundamento para que vivamos melhor. Não se trata de atributo intrínseco dos envolvidos. Cada personagem narrado nesta bela obra vai encontrar com outro personagem, e o choque de imperfeição deste servirá como encaixe preciso na existência do outro.

Apesar de termos em Crisóstomo como sendo o personagem central, mencionado na sinopse do livro e o capítulo que dá nome a obra é exclusivamente sobre ele, aqui ninguém parece ter demasiado destaque. Todos os personagens dividem espaço de importância democraticamente, o que fez com que a importância de todos fosse notada. Seria um problema caso alguns personagens fossem menos instigantes do que outros, porém, Valter Hugo Mãe soube contornar isso, destilando aspectos distintos na composição de cada um de seus narrados, tornando a todos protagonistas os quais o leitor quer conhecer.

Basicamente todos são necessários por conta da mensagem do livro.

Aqui o sentido da vida está no outro! Essa mensagem permeia quase que toda a obra, assim como é o combustível que os move para longe de suas insignificâncias. Lugar doloroso que carece do convívio para reestabelecer a esperança. E quanto mais inadequado o ser, maior o anseio pela reciprocidade, que geralmente surge em instantes inimagináveis da vida.

O FILHO DE MIL HOMENS é uma obra delicada, de personagens críveis em suas misérias, cuja esperança parece ser o único elemento que jamais morre. Um livro que não adoça as coisas e nos conduz a um lugar de efervescência e espanto, que se situa entre as tragédias e ironias da vida. Sem nenhuma pretensão de ser um mero indicativo de que a felicidade possui uma fórmula, Valter Hugo Mãe, por meio de seus personagens complexos, nos mostra que, onde quer que estejamos, o que nos resta é apenas a vida.

NOTA: 8

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