É dia de saber do futuro! E
você, cético leitor, pode não acreditar nesse tipo de assunto sobre adivinhação,
mediunidade, gurus e feiticeiros, mas eu gosto de projetar as coisas boas que
me anunciam. Garanto que as melhores escolhas que fiz na vida, foram fundamentadas
pelas orientações de um xamã espiritual.
É bom deixar as
coisas bem esclarecidas, pois odeio ser acusada de não ter avisado em tempo
sobre aquilo que estou propondo em meus textos.
Entro em roupas leves e
práticas, não uso nada que leve mais de dez segundos para vestir; nada de
tiras, amarrados, lycras, apertos, dobras, redobras..., a leveza dos tecidos
serve apenas para encobrir meus mistérios epidérmicos. Meus cabelos são sempre
cortados muito curtos porque não os quero pentear. Maquiagem? De jeito nenhum!
Minha existência já foi naturalmente colorida pela vida.
Saio bem cedo para evitar o
trânsito. Tomo um ônibus e sigo até o endereço de minha mais recente cartomante.
É uma moça jovem, no máximo uns trinta anos de idade e acho que isso a incomoda;
este é um ramo em que as pessoas velhas costumam receber maior credibilidade.
Ela sustenta um ar exageradamente sério, usa óculos de grau e lenço sobre a
cabeça, tudo para parecer mais velha. Usa muitas joias no pescoço e nos pulsos;
tem um tique de ficar empurrando os óculos que escorregam pela base do nariz; vários
escritos tatuados ao longo dos braços os quais desconheço o idioma. Faz pausas
constantes durante suas poucas falas e gesticula muito com os braços. Vez ou
outra retira os óculos, fecha os olhos e encena um instante reflexivo... Sim,
ela finge! Mas acho que com o passar do tempo se livrará dessa autoimagem
clichê de guia espiritual.
Quando aperto o interfone ela
atende com voz mal-humorada. Seu elevado prestígio não permite que lhe acordem
tão cedo. Considera-se profissional requisitada demais e não precisa levantar
da cama antes das nove da manhã. Mas ela sabe de minha natureza ansiosa, e
quando estou em sua porta às sete e quinze da “madrugada”, ela resolve abrir
uma exceção.
Não é uma questão de gentileza;
a cartomante não me ignora porque eu pago três vezes mais para que me atenda
fora de seus horários estabelecidos... Não, eu não sou rica, se é o que está
pensando. Meu conceito de riqueza é um pouco diferente do senso comum: rico não
é aquele que possui mais dinheiro, e sim, aquele que dele menos precisa. Só não
me tomem como uma mulher medíocre, eu adoro dinheiro.
De qualquer forma, não há nada
que um bom café seja incapaz de elevar. E quando ela me viu parada em sua porta,
com dois expressos quentinhos, seu humor melhorou um pouco.
O consultório é a sala..., uma
sala ordinária demais para uma cartomante. Sua ânsia por parecer o modelo
incontestável de tradutora do futuro parece se resumir em sua aparência. Do
contrário, haveria mandalas, amuletos, talismãs e incenso por todo canto.
– Minha mãe disse que eu
preciso arranjar um emprego e não uma cartomante – comentei, enquanto ela me
encarava com atenção afetada – ela vive dizendo pra eu fazer coisas as quais
não estou envolvida: arranjar trabalho, fazer um curso de culinária, ler Augusto
Cury, voltar para igreja, começar uma dieta porque acha que estou deprimida...
– Por que Augusto Cury? – ela pergunta.
Eu havia dado um extenso
monólogo de sugestões e a outra se interessou apenas pelo escritor...
Definitivamente não devia deixar as previsões do meu futuro com alguém mais
jovem do que eu.
– É o autor favorito dela... –
falei, indiferente, acho que a cartomante notou mudança em meu comportamento,
porque de repente, ajeitou-se no tapete, como se o papo finalmente tornara-se
interessante – Mas quer saber: eu acho que mamãe vive me dando conselhos porque
ela deseja que eu me torne melhor para ela.
– Como assim?
– É isso mesmo que você
entendeu... Mamãe não quer que eu seja uma pessoa melhor, propriamente. O que
ela quer mesmo é que eu me torne mais fácil para ela.
A cartomante não disse nada.
Odeio conversar com gente que não expressa nenhuma opinião. Gosto que
discordem, concordem, mandem-me para a merda ou digam que sou louca. O silêncio
das pessoas me soa perigoso demais. Entretanto, não sei se uma consulta com uma
cartomante poderia ser considerada exatamente uma conversa.
– Por que você está deprimida?
– Eu não estou deprimida.
– Mas você acabou de dizer que
está deprimida.
– Eu disse que minha mãe acha
que estou deprimida e que uma dieta sempre ajuda a curar depressão.
Outra vez fez silêncio e
continuou o trabalho de organizar cartas sobre a mesa de centro... E eu ansiosa
pelas boas previsões! Até porque naquele momento já estávamos sem café.
Por que essa mulher vive me
pedindo para falar da minha mãe?
Quando fiz essa pergunta a cartomante
respondeu que eu já falava sobre ela sem que fosse preciso pedir. Mas então por
que cargas d’água ela segue me pedindo para falar sobre mamãe?
“Porque eu acho que quando
está falando sobre ela, na verdade é apenas uma projeção; você só está falando
de si mesma”.
Se essa resposta era pra ser
ofensiva não funcionou porque eu não entendi o que ela quis dizer. Não sou uma
narcisista que só sei falar de mim mesma. Nem retardada por falar de uma pessoa
me referindo à outra... E se o assunto “mamãe” vem à tona tantas vezes é porque
ela vive me perguntando, ora! Se eu quisesse falar do meu presente ou do meu
passado eu procuraria um terapeuta e não uma cartomante.
Falei para ela se concentrar
no meu futuro, então ela virou algumas cartas. Previu algo sobre eu ser o
entremeio de destinos esparsos, de expectativas muito perto de se concretizarem
e terminou dizendo que em breve eu farei uma viagem de lazer, mas que será
importante para aspectos profissionais.
– Mas eu nem tenho um emprego.
– Vai ver essa viagem abrirá
as portas de uma boa profissão.
– Eu não quero trabalhar...
Você disse que será uma viagem de lazer!
– Bom, é o que está dizendo as
cartas – ela odeia ser contrariada – O jogo apenas mostra o caminho. Trilhar é
uma decisão sua.
Dito isso, ficamos ambas
olhando uma para a cara da outra. Eu esperando mais um pouco dessas malditas
cartas, tipo o local exato em que irei viajar ou se estarei afetuosamente nos
braços de um homem charmoso. Quanto a cartomante, certamente me encarava porque
queria que eu me desse por satisfeita, afinal, aquilo eram cartas e não o google maps. É sério, isso foi ela quem
disse, do alto de seus péssimos modos.
Talvez eu devesse mesmo
procurar uma cartomante mais velha. Aquela garotinha ainda não sabia ler as
preciosas cartas com maior profundidade.
Após a sessão, fui me sentar
na pracinha perto do centro da cidade, esperando uma ligação que não vinha. Fico
um pouco receosa quando estou perto de espaços verdes, porque não gosto muito
de interagir com a natureza. Sempre considerei a natureza cruel, mas por mais
que tente me manter longe, ela sempre dá um jeito de me inserir em suas
diabruras.
A natureza nunca se esquece
dos seres que habitam suas entranhas.
De repente, um pássaro voou
bem perto da minha cabeça e pousou no gramado ao lado do banco onde eu estava.
Mais ou menos do tamanho de um pombo, era cinzento e parecia agitado,
procurando alguma coisa. Não demorou a encontrar no chão um fino rabo que
sacolejava isoladamente. A destemida ave reivindicou com o bico aquele rabo
perdido e o engoliu de uma só vez... Não satisfeita, voltou a procurar pela
suposta presa, que agora havia se tornado criatura cotó... Então a ave chegou
mais perto de mim, parou quase ao meu lado, a cabeça girando por todas as
direções à procura de um pobre animal sem rabo.
A obstinação daquele bicho me
surpreendeu. Ela receava minha presença, mas não a temia. Pelo contrário,
chegava cada vez mais perto. E imóvel no assento do banquinho, eu apenas
esperava pelo desfecho daquela aventura, talvez até torcendo pela ave corajosa
que se comportava com uma audácia que jamais vi num animal...
Mas após algum tempo, ela se
cansou e voou desapontada. Sua mortífera investida aérea lhe rendera apenas um esquelético
rabo.
Passados alguns minutos,
quando me convencera de que o celular não prestaria nenhum manifesto,
levantei-me para voltar pra casa e, nesse momento, ao erguer uma das pernas,
foi que encontrei o fugitivo sem rabo. Era uma lagartixa ou algo do tipo,
refugiada e imóvel sob o solado do meu pé esquerdo.
Petrificada, o bicho também
parecia me encarar, mas aquela era uma expressão totalmente diferente do olhar
do pássaro. Eu via temor na fixação congelante da lagartixa. Sem dúvida era uma
sobrevivente, mas permanecia atenta para o perigo que eu representava. Justo
eu, que sem querer havia salvado sua vida.
Por que será que eu sempre
tiro conclusões óbvias das coisas? De onde vem essa minha hipótese de que um caçador
que desafia os próprios limites para atingir seu objetivo, só pode ser mais
corajoso do que a caça que fornece uma parte do seu corpo para continuar viva?
Desejei boa sorte para a valente
lagartixa e voltei para casa sem minha ligação, mas com a mente cheia de
dúvidas advindas da natureza e sua interminável crueldade.
Antes precisei fazer uns
serviços numa agência bancária, que por sorte não estava muito cheia. Enquanto aguardava
com a senha na mão, notei (era impossível não notar) duas mulheres espremendo
espinha uma da outra. Inclinavam-se com unhas erguidas e afiadas, dedos que
pareciam prestes a atravessar o crânio, um enrosco obsceno que me fez pensar em
acasalamentos de espécimes exóticas.
Nada contra gente que curte
expressar afeição apertando cravo no rosto como macaco procurando insetos no
pelo do outro. Mas fazer isso dentro do banco pareceu exagerado e até
perigoso... Sim, pois estávamos correndo um sério risco de ter uma gosma branca
respingada sobre nós... Acredite no que digo: eu já vi espinha voar enormes
distâncias quando são explodidas do rosto das pessoas, parecem até um vulcão de
lava amarelada.
Um colega que não vejo há
muito tempo, disse, certa vez, que terminou um relacionamento de anos porque
não aguentava mais ser espremido pela garota. Falou que chegou a fazer um
tratamento intensivo contra acnes não por considerar cravos um incômodo, mas
porque odiava ser torturado pela parceira.
Fiquei pensando que talvez uma
das moças que se alternavam em espremidas dentro do banco fosse a ex citada por
meu colega... Vai ver ela finalmente encontrou alguém que adora garimpar
espinha tanto quanto ela. Se isso for verdade, eu terei que retirar o que disse,
afinal, talvez a natureza não seja tão má assim, pois une semelhantes.
A cartomante disse, uma vez,
que eu encontrarei um cara parecidíssimo comigo, mas que eu não deveria me
envolver porque seremos como polos iguais de uma corrente elétrica: ou nada
acontece ou a porra vai explodir violentamente.
Pra dizer a verdade, o
conselho dela não me deixou com medo. Aliás, eu estou convencida de que as
cartas revelam apenas o futuro das pessoas; o conselho fica por conta da
cartomante, que no caso dela, pareceu-me um conselho infestado de ressentimento,
sim pois as cartas costumam me revelar boas coisas que estão por vir. Talvez
quando jogue as cartas para si mesma o efeito seja estritamente o contrário.
Desde então vivo atenta para o
encontro com esse tal cara parecidíssimo comigo, porque se seremos assim, tão semelhantes,
logo nos veremos dentro de um banco espremendo espinha um do outro, feito dois
chipanzés...
Mas sinceramente, ou
esse pedaço de mau caminho está demorando demais, ou ele passou pela minha vida
e, destrambelhada que sou, acabei não notando...