sexta-feira, 15 de setembro de 2023

RESENHA DE LIVRO – COMO PROUST PODE MUDAR SUA VIDA

O filósofo Michel Foucault sugeriu que toda obra escrita possui autonomia e se basta. Segundo ele, “À crítica não cabe destacar as relações da obra com o autor, nem querer reconstituir através dos textos um pensamento ou uma experiência; ela deve antes analisar a obra em sua estrutura, em sua arquitetura, em sua forma intrínseca e no jogo de suas relações internas”.

Diante do exposto, podemos levantar duas hipóteses a respeito desse belo trabalho do também filósofo Alain De Botton, intitulado COMO PROUST PODE MUDAR SUA VIDA: estamos diante de uma excelente análise sobre a obra de Marcel Proust, que mais do que esmiuçar a sensibilidade literária, serve como conteúdo de orientação que nos ajuda a viver melhor e, portanto, fazendo completa oposição ao que Foucault disse. Ou podemos dizer que, de fato um clássico da literatura se basta por si, não cabendo à crítica nenhum tipo de contextualização, e precisamente foi o que fez De Botton ao jogar luz sobre a obra e, no lugar da análise, apenas nos deu um vislumbre mais amplo de um gênio chamado Marcel Proust.

Pensando que é quase impossível para um escritor que analisa a obra de um companheiro de profissão se manter imparcial, creio que aqui encontraremos ao longo da leitura, um bocado das impressões de Alain De Botton, o que particularmente considerei um acréscimo requintado.

COMO PROUST MODE MUDAR SUA VIDA se trata de um exame detalhado do mais aclamado livro de Marcel Proust, EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO, o autor se utiliza de uma linguagem humorada, cheia de aspectos de autoajuda e, porque não dizer, quase terapêutica. De Botton nos revela este mundo de Proust como um sistema composto de diferentes perspectivas, indo das mais corriqueiras, às mais complexas.

A motivação do autor é um tanto pertinente e convidativa, faz com que participemos de seu ponto de vista. De modo a priorizar a simplificação de sua escrita, De Botton nos oferece lições no lugar de filosofar. Ou talvez estivesse apenas simplificando algo a tal ponto que transformou a contemplação implícita na filosofia em algo altamente didático.

Sem se ater à conceitos universais, ou seja, algo que sirva para todos, o propósito do autor é precisamente aquilo que fez com que ele fundasse sua famosa School of Life (escola da vida): a chance de vivermos melhor. Apesar da estrutura feita em capítulos curtos sempre apontando para uma lição específica, além de um título similar a obras de autoajuda, pois usa o termo “como” para dar ênfase a algo que o conteúdo oferece, não considero esta obra, uma autoajuda em seu estado bruto. Vejo este trabalho mais como um guia sugestivo de possibilidades.

COMO PROUST PODE MUDAR SUA VIDA não é nem de perto uma análise precisa ou uma biografia de Marcel Proust, apesar das muitas referências e relatos sobre sua vida. Mas pessoalmente falando, sinto como se a leitura desse livro fosse uma viagem singular, além de deliciosa, pois li sobre um autor sem antes ter lido sua obra..

NOTA: 9,1

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

CRÔNICA - QUASE IMPORTÂNCIA

É dia de saber do futuro! E você, cético leitor, pode não acreditar nesse tipo de assunto sobre adivinhação, mediunidade, gurus e feiticeiros, mas eu gosto de projetar as coisas boas que me anunciam. Garanto que as melhores escolhas que fiz na vida, foram fundamentadas pelas orientações de um xamã espiritual.

É bom deixar as coisas bem esclarecidas, pois odeio ser acusada de não ter avisado em tempo sobre aquilo que estou propondo em meus textos.

Entro em roupas leves e práticas, não uso nada que leve mais de dez segundos para vestir; nada de tiras, amarrados, lycras, apertos, dobras, redobras..., a leveza dos tecidos serve apenas para encobrir meus mistérios epidérmicos. Meus cabelos são sempre cortados muito curtos porque não os quero pentear. Maquiagem? De jeito nenhum! Minha existência já foi naturalmente colorida pela vida.

Saio bem cedo para evitar o trânsito. Tomo um ônibus e sigo até o endereço de minha mais recente cartomante. É uma moça jovem, no máximo uns trinta anos de idade e acho que isso a incomoda; este é um ramo em que as pessoas velhas costumam receber maior credibilidade. Ela sustenta um ar exageradamente sério, usa óculos de grau e lenço sobre a cabeça, tudo para parecer mais velha. Usa muitas joias no pescoço e nos pulsos; tem um tique de ficar empurrando os óculos que escorregam pela base do nariz; vários escritos tatuados ao longo dos braços os quais desconheço o idioma. Faz pausas constantes durante suas poucas falas e gesticula muito com os braços. Vez ou outra retira os óculos, fecha os olhos e encena um instante reflexivo... Sim, ela finge! Mas acho que com o passar do tempo se livrará dessa autoimagem clichê de guia espiritual.

Quando aperto o interfone ela atende com voz mal-humorada. Seu elevado prestígio não permite que lhe acordem tão cedo. Considera-se profissional requisitada demais e não precisa levantar da cama antes das nove da manhã. Mas ela sabe de minha natureza ansiosa, e quando estou em sua porta às sete e quinze da “madrugada”, ela resolve abrir uma exceção.

Não é uma questão de gentileza; a cartomante não me ignora porque eu pago três vezes mais para que me atenda fora de seus horários estabelecidos... Não, eu não sou rica, se é o que está pensando. Meu conceito de riqueza é um pouco diferente do senso comum: rico não é aquele que possui mais dinheiro, e sim, aquele que dele menos precisa. Só não me tomem como uma mulher medíocre, eu adoro dinheiro.

De qualquer forma, não há nada que um bom café seja incapaz de elevar. E quando ela me viu parada em sua porta, com dois expressos quentinhos, seu humor melhorou um pouco.

O consultório é a sala..., uma sala ordinária demais para uma cartomante. Sua ânsia por parecer o modelo incontestável de tradutora do futuro parece se resumir em sua aparência. Do contrário, haveria mandalas, amuletos, talismãs e incenso por todo canto.

– Minha mãe disse que eu preciso arranjar um emprego e não uma cartomante – comentei, enquanto ela me encarava com atenção afetada – ela vive dizendo pra eu fazer coisas as quais não estou envolvida: arranjar trabalho, fazer um curso de culinária, ler Augusto Cury, voltar para igreja, começar uma dieta porque acha que estou deprimida...

– Por que Augusto Cury? – ela pergunta.

Eu havia dado um extenso monólogo de sugestões e a outra se interessou apenas pelo escritor... Definitivamente não devia deixar as previsões do meu futuro com alguém mais jovem do que eu.

– É o autor favorito dela... – falei, indiferente, acho que a cartomante notou mudança em meu comportamento, porque de repente, ajeitou-se no tapete, como se o papo finalmente tornara-se interessante – Mas quer saber: eu acho que mamãe vive me dando conselhos porque ela deseja que eu me torne melhor para ela.

– Como assim?

– É isso mesmo que você entendeu... Mamãe não quer que eu seja uma pessoa melhor, propriamente. O que ela quer mesmo é que eu me torne mais fácil para ela.

A cartomante não disse nada. Odeio conversar com gente que não expressa nenhuma opinião. Gosto que discordem, concordem, mandem-me para a merda ou digam que sou louca. O silêncio das pessoas me soa perigoso demais. Entretanto, não sei se uma consulta com uma cartomante poderia ser considerada exatamente uma conversa.

– Por que você está deprimida?

– Eu não estou deprimida.

– Mas você acabou de dizer que está deprimida.

– Eu disse que minha mãe acha que estou deprimida e que uma dieta sempre ajuda a curar depressão.

Outra vez fez silêncio e continuou o trabalho de organizar cartas sobre a mesa de centro... E eu ansiosa pelas boas previsões! Até porque naquele momento já estávamos sem café.

Por que essa mulher vive me pedindo para falar da minha mãe?

Quando fiz essa pergunta a cartomante respondeu que eu já falava sobre ela sem que fosse preciso pedir. Mas então por que cargas d’água ela segue me pedindo para falar sobre mamãe?

“Porque eu acho que quando está falando sobre ela, na verdade é apenas uma projeção; você só está falando de si mesma”.

Se essa resposta era pra ser ofensiva não funcionou porque eu não entendi o que ela quis dizer. Não sou uma narcisista que só sei falar de mim mesma. Nem retardada por falar de uma pessoa me referindo à outra... E se o assunto “mamãe” vem à tona tantas vezes é porque ela vive me perguntando, ora! Se eu quisesse falar do meu presente ou do meu passado eu procuraria um terapeuta e não uma cartomante.

Falei para ela se concentrar no meu futuro, então ela virou algumas cartas. Previu algo sobre eu ser o entremeio de destinos esparsos, de expectativas muito perto de se concretizarem e terminou dizendo que em breve eu farei uma viagem de lazer, mas que será importante para aspectos profissionais.

– Mas eu nem tenho um emprego.

– Vai ver essa viagem abrirá as portas de uma boa profissão.

– Eu não quero trabalhar... Você disse que será uma viagem de lazer!

– Bom, é o que está dizendo as cartas – ela odeia ser contrariada – O jogo apenas mostra o caminho. Trilhar é uma decisão sua.

Dito isso, ficamos ambas olhando uma para a cara da outra. Eu esperando mais um pouco dessas malditas cartas, tipo o local exato em que irei viajar ou se estarei afetuosamente nos braços de um homem charmoso. Quanto a cartomante, certamente me encarava porque queria que eu me desse por satisfeita, afinal, aquilo eram cartas e não o google maps. É sério, isso foi ela quem disse, do alto de seus péssimos modos.

Talvez eu devesse mesmo procurar uma cartomante mais velha. Aquela garotinha ainda não sabia ler as preciosas cartas com maior profundidade.

Após a sessão, fui me sentar na pracinha perto do centro da cidade, esperando uma ligação que não vinha. Fico um pouco receosa quando estou perto de espaços verdes, porque não gosto muito de interagir com a natureza. Sempre considerei a natureza cruel, mas por mais que tente me manter longe, ela sempre dá um jeito de me inserir em suas diabruras.

A natureza nunca se esquece dos seres que habitam suas entranhas.

De repente, um pássaro voou bem perto da minha cabeça e pousou no gramado ao lado do banco onde eu estava. Mais ou menos do tamanho de um pombo, era cinzento e parecia agitado, procurando alguma coisa. Não demorou a encontrar no chão um fino rabo que sacolejava isoladamente. A destemida ave reivindicou com o bico aquele rabo perdido e o engoliu de uma só vez... Não satisfeita, voltou a procurar pela suposta presa, que agora havia se tornado criatura cotó... Então a ave chegou mais perto de mim, parou quase ao meu lado, a cabeça girando por todas as direções à procura de um pobre animal sem rabo.

A obstinação daquele bicho me surpreendeu. Ela receava minha presença, mas não a temia. Pelo contrário, chegava cada vez mais perto. E imóvel no assento do banquinho, eu apenas esperava pelo desfecho daquela aventura, talvez até torcendo pela ave corajosa que se comportava com uma audácia que jamais vi num animal...

Mas após algum tempo, ela se cansou e voou desapontada. Sua mortífera investida aérea lhe rendera apenas um esquelético rabo.

Passados alguns minutos, quando me convencera de que o celular não prestaria nenhum manifesto, levantei-me para voltar pra casa e, nesse momento, ao erguer uma das pernas, foi que encontrei o fugitivo sem rabo. Era uma lagartixa ou algo do tipo, refugiada e imóvel sob o solado do meu pé esquerdo.

Petrificada, o bicho também parecia me encarar, mas aquela era uma expressão totalmente diferente do olhar do pássaro. Eu via temor na fixação congelante da lagartixa. Sem dúvida era uma sobrevivente, mas permanecia atenta para o perigo que eu representava. Justo eu, que sem querer havia salvado sua vida.

Por que será que eu sempre tiro conclusões óbvias das coisas? De onde vem essa minha hipótese de que um caçador que desafia os próprios limites para atingir seu objetivo, só pode ser mais corajoso do que a caça que fornece uma parte do seu corpo para continuar viva?

Desejei boa sorte para a valente lagartixa e voltei para casa sem minha ligação, mas com a mente cheia de dúvidas advindas da natureza e sua interminável crueldade.

Antes precisei fazer uns serviços numa agência bancária, que por sorte não estava muito cheia. Enquanto aguardava com a senha na mão, notei (era impossível não notar) duas mulheres espremendo espinha uma da outra. Inclinavam-se com unhas erguidas e afiadas, dedos que pareciam prestes a atravessar o crânio, um enrosco obsceno que me fez pensar em acasalamentos de espécimes exóticas.

Nada contra gente que curte expressar afeição apertando cravo no rosto como macaco procurando insetos no pelo do outro. Mas fazer isso dentro do banco pareceu exagerado e até perigoso... Sim, pois estávamos correndo um sério risco de ter uma gosma branca respingada sobre nós... Acredite no que digo: eu já vi espinha voar enormes distâncias quando são explodidas do rosto das pessoas, parecem até um vulcão de lava amarelada.

Um colega que não vejo há muito tempo, disse, certa vez, que terminou um relacionamento de anos porque não aguentava mais ser espremido pela garota. Falou que chegou a fazer um tratamento intensivo contra acnes não por considerar cravos um incômodo, mas porque odiava ser torturado pela parceira.

Fiquei pensando que talvez uma das moças que se alternavam em espremidas dentro do banco fosse a ex citada por meu colega... Vai ver ela finalmente encontrou alguém que adora garimpar espinha tanto quanto ela. Se isso for verdade, eu terei que retirar o que disse, afinal, talvez a natureza não seja tão má assim, pois une semelhantes.

A cartomante disse, uma vez, que eu encontrarei um cara parecidíssimo comigo, mas que eu não deveria me envolver porque seremos como polos iguais de uma corrente elétrica: ou nada acontece ou a porra vai explodir violentamente.

Pra dizer a verdade, o conselho dela não me deixou com medo. Aliás, eu estou convencida de que as cartas revelam apenas o futuro das pessoas; o conselho fica por conta da cartomante, que no caso dela, pareceu-me um conselho infestado de ressentimento, sim pois as cartas costumam me revelar boas coisas que estão por vir. Talvez quando jogue as cartas para si mesma o efeito seja estritamente o contrário.

Desde então vivo atenta para o encontro com esse tal cara parecidíssimo comigo, porque se seremos assim, tão semelhantes, logo nos veremos dentro de um banco espremendo espinha um do outro, feito dois chipanzés...

Mas sinceramente, ou esse pedaço de mau caminho está demorando demais, ou ele passou pela minha vida e, destrambelhada que sou, acabei não notando...

sábado, 2 de setembro de 2023

RESENHA DE LIVRO – ESTAÇÃO CARANDIRU

Em 1989, o médico Drauzio Varella aceitou exercer um trabalho voluntário de prevenção à AIDS, dentro da maior casa de detenção da América do Sul, a Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida como Carandiru, por estar situada no bairro de mesmo nome. Seus muros abrigavam algo em torno de 7.200 presos, era praticamente uma pequena cidade.

A obra Estação Carandiru é o resultado dessa rica experiência vivida pelo médico, durante seu tempo de trabalho no recinto. Temos aqui uma compilação de histórias de vidas de gente que, ausentes de recursos substanciais ou de ferramentas de inclusão social, a contingencia os conduziram ao mundo do crime, geralmente pela via da necessidade de ganhar dinheiro ou por conta de relacionamentos conflituosos, salvo raras exceções.

Ao longo de uma década na convivência com os mais distintos indivíduos cumprindo pena, Drauzio foi uma presença constante, não somente no trabalho de prevenção no qual havia sido contratado, mas estabelecendo-se na Detenção como figura de confiança e apoio, fazendo amizades que duram ainda hoje, mal sabia o médico precisar a riqueza de conteúdo que encontraria naquele lugar improvável.

Este é, portanto, o ponto mais alto desta obra, ganhadora dos prêmios Jabuti de não ficção e livro do ano de 1999: os mais distintos e inusitados relatos das pessoas que viveram parte de suas vidas naquele espaço precário e fóbico; pessoas comuns, que transgrediram a sociedade vigente, cometeram crimes bárbaros e foram retirados do meio de convivência. Engana-se o leitor que acha que Estação Carandiru relata apenas o fato mais conhecido sobre o presídio: a trágica chacina ocorrida em 1992, quando a tropa de choque da polícia invadiu o presídio e abateu 111 presos. Engana-se também quem pensa que estamos diante de uma crônica da vida de bandidos.

Não. Este livro é um retrato da precariedade dos cidadãos mais abundantes no país: pessoas vindas da classe menos favorecida, que por vício ou falta de oportunidade, fizeram o que fizeram e foram parar naquele imenso aglomerado de condenados, num espaço físico minúsculo onde existe um rígido código de leis não escritas, elaboradas pela própria população carcerária, na qual a contravenção geralmente resulta na pena de morte sumária. É claro que é preciso uma boa dose de ausência de julgamentos por parte do leitor para que nasça essa leitura enriquecida.

A condução narrativa do autor é de viés jornalístico, o que contribui para a fluidez. Atribui-se a isso, uma linguagem leve, ágil e imparcial. Drauzio se limita a contar o que lhe fora relatado, sem opinar ou interferir com moralismos, aqui encontramos justamente o palco montado na exatidão de seus envolvidos. O trabalho do autor foi o de deixar que ele exista...

Até mesmo a fluência da linguagem, o peculiar estilo dialogal da “malandragem” se manteve fiel aos relatos. Quando é a vez de um preso narrar, o que foi parar no corpo do livro é sua precisa descrição, sem que houvesse intervenções gramaticais por parte dos editores.

Estação Carandiru é um belo trabalho documental, cuja premissa não é a de meramente fazer alguma denúncia da precariedade do sistema prisional brasileiro, embora a evidência seja inevitável para o leitor. Creio que maior do que o problema das penitenciárias deficientes, é a alienação da sociedade mais pobre, totalmente ignorada pelas instituições estatais desse país, o indivíduo desassistido sabe que o inferno da detenção espreita sua existência, quase como se isso fosse um projeto político.

NOTA: **10**