Em 1989, o médico Drauzio
Varella aceitou exercer um trabalho voluntário de prevenção à AIDS, dentro
da maior casa de detenção da América do Sul, a Casa de Detenção de São Paulo,
mais conhecida como Carandiru, por estar situada no bairro de mesmo nome. Seus
muros abrigavam algo em torno de 7.200 presos, era praticamente uma pequena
cidade.
A obra Estação Carandiru
é o resultado dessa rica experiência vivida pelo médico, durante seu tempo de
trabalho no recinto. Temos aqui uma compilação de histórias de vidas de gente
que, ausentes de recursos substanciais ou de ferramentas de inclusão social, a
contingencia os conduziram ao mundo do crime, geralmente pela via da
necessidade de ganhar dinheiro ou por conta de relacionamentos conflituosos,
salvo raras exceções.
Ao longo de uma década na
convivência com os mais distintos indivíduos cumprindo pena, Drauzio foi uma
presença constante, não somente no trabalho de prevenção no qual havia sido
contratado, mas estabelecendo-se na Detenção como figura de confiança e apoio,
fazendo amizades que duram ainda hoje, mal sabia o médico precisar a riqueza de
conteúdo que encontraria naquele lugar improvável.
Este é, portanto, o ponto mais
alto desta obra, ganhadora dos prêmios Jabuti de não ficção e livro do ano de
1999: os mais distintos e inusitados relatos das pessoas que viveram parte de suas
vidas naquele espaço precário e fóbico; pessoas comuns, que transgrediram a
sociedade vigente, cometeram crimes bárbaros e foram retirados do meio de
convivência. Engana-se o leitor que acha que Estação Carandiru relata
apenas o fato mais conhecido sobre o presídio: a trágica chacina ocorrida em
1992, quando a tropa de choque da polícia invadiu o presídio e abateu 111
presos. Engana-se também quem pensa que estamos diante de uma crônica da vida
de bandidos.
Não. Este livro é um retrato
da precariedade dos cidadãos mais abundantes no país: pessoas vindas da classe
menos favorecida, que por vício ou falta de oportunidade, fizeram o que fizeram
e foram parar naquele imenso aglomerado de condenados, num espaço físico minúsculo
onde existe um rígido código de leis não escritas, elaboradas pela própria
população carcerária, na qual a contravenção geralmente resulta na pena de
morte sumária. É claro que é preciso uma boa dose de ausência de julgamentos
por parte do leitor para que nasça essa leitura enriquecida.
A condução narrativa do autor
é de viés jornalístico, o que contribui para a fluidez. Atribui-se a
isso, uma linguagem leve, ágil e imparcial. Drauzio se limita a contar o que
lhe fora relatado, sem opinar ou interferir com moralismos, aqui encontramos justamente
o palco montado na exatidão de seus envolvidos. O trabalho do autor foi o de
deixar que ele exista...
Até mesmo a fluência da
linguagem, o peculiar estilo dialogal da “malandragem” se manteve fiel aos
relatos. Quando é a vez de um preso narrar, o que foi parar no corpo do livro é
sua precisa descrição, sem que houvesse intervenções gramaticais por parte dos
editores.
Estação Carandiru é um belo trabalho documental, cuja premissa não é a de meramente fazer alguma denúncia da precariedade do sistema prisional brasileiro, embora a evidência seja inevitável para o leitor. Creio que maior do que o problema das penitenciárias deficientes, é a alienação da sociedade mais pobre, totalmente ignorada pelas instituições estatais desse país, o indivíduo desassistido sabe que o inferno da detenção espreita sua existência, quase como se isso fosse um projeto político.
NOTA: **10**
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