sábado, 2 de setembro de 2023

RESENHA DE LIVRO – ESTAÇÃO CARANDIRU

Em 1989, o médico Drauzio Varella aceitou exercer um trabalho voluntário de prevenção à AIDS, dentro da maior casa de detenção da América do Sul, a Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida como Carandiru, por estar situada no bairro de mesmo nome. Seus muros abrigavam algo em torno de 7.200 presos, era praticamente uma pequena cidade.

A obra Estação Carandiru é o resultado dessa rica experiência vivida pelo médico, durante seu tempo de trabalho no recinto. Temos aqui uma compilação de histórias de vidas de gente que, ausentes de recursos substanciais ou de ferramentas de inclusão social, a contingencia os conduziram ao mundo do crime, geralmente pela via da necessidade de ganhar dinheiro ou por conta de relacionamentos conflituosos, salvo raras exceções.

Ao longo de uma década na convivência com os mais distintos indivíduos cumprindo pena, Drauzio foi uma presença constante, não somente no trabalho de prevenção no qual havia sido contratado, mas estabelecendo-se na Detenção como figura de confiança e apoio, fazendo amizades que duram ainda hoje, mal sabia o médico precisar a riqueza de conteúdo que encontraria naquele lugar improvável.

Este é, portanto, o ponto mais alto desta obra, ganhadora dos prêmios Jabuti de não ficção e livro do ano de 1999: os mais distintos e inusitados relatos das pessoas que viveram parte de suas vidas naquele espaço precário e fóbico; pessoas comuns, que transgrediram a sociedade vigente, cometeram crimes bárbaros e foram retirados do meio de convivência. Engana-se o leitor que acha que Estação Carandiru relata apenas o fato mais conhecido sobre o presídio: a trágica chacina ocorrida em 1992, quando a tropa de choque da polícia invadiu o presídio e abateu 111 presos. Engana-se também quem pensa que estamos diante de uma crônica da vida de bandidos.

Não. Este livro é um retrato da precariedade dos cidadãos mais abundantes no país: pessoas vindas da classe menos favorecida, que por vício ou falta de oportunidade, fizeram o que fizeram e foram parar naquele imenso aglomerado de condenados, num espaço físico minúsculo onde existe um rígido código de leis não escritas, elaboradas pela própria população carcerária, na qual a contravenção geralmente resulta na pena de morte sumária. É claro que é preciso uma boa dose de ausência de julgamentos por parte do leitor para que nasça essa leitura enriquecida.

A condução narrativa do autor é de viés jornalístico, o que contribui para a fluidez. Atribui-se a isso, uma linguagem leve, ágil e imparcial. Drauzio se limita a contar o que lhe fora relatado, sem opinar ou interferir com moralismos, aqui encontramos justamente o palco montado na exatidão de seus envolvidos. O trabalho do autor foi o de deixar que ele exista...

Até mesmo a fluência da linguagem, o peculiar estilo dialogal da “malandragem” se manteve fiel aos relatos. Quando é a vez de um preso narrar, o que foi parar no corpo do livro é sua precisa descrição, sem que houvesse intervenções gramaticais por parte dos editores.

Estação Carandiru é um belo trabalho documental, cuja premissa não é a de meramente fazer alguma denúncia da precariedade do sistema prisional brasileiro, embora a evidência seja inevitável para o leitor. Creio que maior do que o problema das penitenciárias deficientes, é a alienação da sociedade mais pobre, totalmente ignorada pelas instituições estatais desse país, o indivíduo desassistido sabe que o inferno da detenção espreita sua existência, quase como se isso fosse um projeto político.

NOTA: **10**

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