O poeta João Cabral de Melo
Neto usava a gaveta de sua escrivaninha como se fosse uma espécie de cápsula,
em que ele enterrava seus rascunhos para tirá-los, tempos depois, quando a
releitura identificaria se aqueles eram bons poemas ou não. O escritor
australiano Markus Zusak (autor do
aclamado A MENINA QUE ROUBAVA LIVROS) deixou seus leitores esperando um novo trabalho
por trezes anos. Se esse foi o tempo de produção ou se rascunhos ficaram enterrados
em gavetas por anos, não sabemos. O fato é que no ano de 2018 ele finalmente
tirou de sua cápsula este aguardado O
CONSTRUTOR DE PONTES.
Pessoalmente eu diria que
não sustentei tanta expectativa assim quanto a novos projetos do autor
(atualmente ando conhecendo muita coisa boa, aqui mesmo, em páginas
tupiniquins), muito embora eu confesse que fiquei satisfeito ao ver este lançamento
nas prateleiras. São poucos os escritores que posso dizer que gostei de todas
as obras que nasceram de sua mente, e o “papai” da roubadora de livros é um
deles.
Então vamos falar da obra:
O
CONSTRUTOR DE PONTES conta a história de cinco irmãos cheios de
peculiaridades e que vivem sozinhos num lar desolado e em desconstrução. Após o
ressurgimento do patriarca que os abandonou, o quarto irmão, Clay, resolve
atender um inusitado pedido do velho e parte em busca de uma empreitada que, de
certa forma, transformará a vida de todos na família.
A trama aqui é narrada em
primeira pessoa. O irmão mais velho, Matthew, sentado à mesa da cozinha, digita
suas memórias e conta a história, que é focada no já mencionado quarto irmão. Clay
é a figura central dos acontecimentos e o escopo narrativo se mantém nele,
afinal, seu ato imprevisto de acatar o pedido do pai é como o punhal que reabre
feridas mal cicatrizadas. No entanto, já surge aqui uma decisão do autor que considerei
equivocada, mas pode não ser um problema para outros leitores... Eu explico:
Ocorre que a pessoalidade do
narrador, por se tratar do irmão mais velho da família, parece ter resultado
numa certa escassez de imparcialidade; Matthew é uma personagem que não cativa
porque sua credibilidade esbarra no sentimentalismo, como se em vários momentos
ele quisesse invocar comoção em lugares onde isso não existe. Outro entrave é
que Matthew sustenta aspectos destrutivos semelhantes aos de seus irmãos e sua
visão de mundo se torna limitada, porque ele é parte de um todo fragmentado,
cuja crueza enfraquece a literalidade poética. Sei que parecem argumentos
ranzinzas, mas diferente do que houve no livro passado, em que Markus Zusak acerta em cheio ao
escolher a morte como sua narradora, aqui o contador da história se tornou
vítima de seu próprio olhar equivocado.
Os cinco irmãos da família
Dunbar também parecem terem sofrido certa redução de seu autor. De um modo
geral, todos eles são grosseiros e selvagens em alguma medida, seja expondo
seus modos rudimentares com agressividade ou com introversão, mas sempre agindo
como se não soubessem o que fazer ou como fazer. Nenhum problema, afinal, incerteza
é uma característica notória do ser humano. Contudo, para quem já conhece as
demais obras de Markus Zusak, talvez
note certa familiaridade entre outras personagens de sua bibliografia.
Atrevo-me a dizer que com exceção de Ed Kenedy (do livro EU SOU O MENSAGEIRO), que
é um sujeito pessimista, inerte e sensível, todos os demais protagonistas são
parecidos em essência: eles são deslocados em seus universos, brutais quando
não sabem como agir, vivem a efervescência da adolescência intransigente e quase
sempre são hesitantes. Até Liesel Meminger (do livro A MENINA QUE ROUBAVA
LIVROS), mesmo sendo uma personagem feminina, também sustenta características
semelhantes aos demais. Ou seja, a família Dunbar inserida aqui soa como mais
do mesmo. É como ler os mesmos personagens em histórias diferentes.
O livro também é um pouco
longo; há capítulos soltos aqui que considerei descartáveis e tornou alguns
instantes enfadonhos. Muitas personagens para terem sua trajetória narrada
também colaboraram para aumentar o tamanho. Mas como sempre digo: o tamanho do
livro não é um problema, propriamente. Porém, é preciso ter cuidado para que o
receio de cortar partes não torne a história cansativa. Pelo menos a
diagramação é limpa e bem organizada, o que ajuda na hora de encarar longos
textos.
Mas não são somente
problemas estruturais que preenchem este livro:
A boa linguagem coloquial de
Zusak continua afiada; é impressionante como este escritor consegue tornar seus
diálogos tão fiéis às conversas entre pessoas reais. Trejeitos, manias,
hesitação, irreverência, emoção, aspectos críveis se espalham por toda a
narrativa.
Também é gostoso reencontrar
as pausas em parágrafos curtos, às vezes de apenas uma linha, que se sucede em
diversos momentos e nos ensina a vislumbrar intensidade na história em
instantes fugazes. É como se o leitor fosse convidado a refletir sobre um
momento ordinário e que passaria despercebido, mas que se tornou belo
justamente porque nos foi mostrado em pouquíssimas palavras. São pequenos focos
de cenário, quebrados para te mostrar um pedacinho de cada vez... Acho esse
método altamente imersivo.
Tentando não cometer nenhum
spoiler, vale ainda ressaltar que a ponte incutida no título da obra vai além
da estrutura física; a ponte aqui funciona como uma metáfora. Porque pontes
são, basicamente, conexões entre pontos distintos. Na obra de Zusak, a ponte
funciona como a religação entre personagens cujas relações passadas resultaram
em rompimentos. E o fato de a empreitada de Clay ser a reconstrução de uma
ponte que se rompeu, deu-nos então a direção para a mensagem que a história
queria apontar.
Sei que esta resenha ficou
um pouco maior do que costumeiramente faço, mas é que considerei fundamental esmiuçar
alguns pontos do livro para que se justifique meu parecer quanto a considerar
este trabalho mediano.
O CONSTRUTOR DE PONTES é um livro sobre
perdas, sobre descoberta de identidades e a inconstância do ser humano perante
o ineditismo da vida. Usa em favor próprio uma peculiar narrativa sensível, mas
derrapa ao propor um contador de história que não transmite credibilidade por
insistir em tentar extrair ao menos uma lágrima do leitor.
NOTA: 7