domingo, 24 de maio de 2020

RESENHA DE LIVRO – O CONSTRUTOR DE PONTES


O poeta João Cabral de Melo Neto usava a gaveta de sua escrivaninha como se fosse uma espécie de cápsula, em que ele enterrava seus rascunhos para tirá-los, tempos depois, quando a releitura identificaria se aqueles eram bons poemas ou não. O escritor australiano Markus Zusak (autor do aclamado A MENINA QUE ROUBAVA LIVROS) deixou seus leitores esperando um novo trabalho por trezes anos. Se esse foi o tempo de produção ou se rascunhos ficaram enterrados em gavetas por anos, não sabemos. O fato é que no ano de 2018 ele finalmente tirou de sua cápsula este aguardado O CONSTRUTOR DE PONTES.

Pessoalmente eu diria que não sustentei tanta expectativa assim quanto a novos projetos do autor (atualmente ando conhecendo muita coisa boa, aqui mesmo, em páginas tupiniquins), muito embora eu confesse que fiquei satisfeito ao ver este lançamento nas prateleiras. São poucos os escritores que posso dizer que gostei de todas as obras que nasceram de sua mente, e o “papai” da roubadora de livros é um deles.

Então vamos falar da obra:

O CONSTRUTOR DE PONTES conta a história de cinco irmãos cheios de peculiaridades e que vivem sozinhos num lar desolado e em desconstrução. Após o ressurgimento do patriarca que os abandonou, o quarto irmão, Clay, resolve atender um inusitado pedido do velho e parte em busca de uma empreitada que, de certa forma, transformará a vida de todos na família.

A trama aqui é narrada em primeira pessoa. O irmão mais velho, Matthew, sentado à mesa da cozinha, digita suas memórias e conta a história, que é focada no já mencionado quarto irmão. Clay é a figura central dos acontecimentos e o escopo narrativo se mantém nele, afinal, seu ato imprevisto de acatar o pedido do pai é como o punhal que reabre feridas mal cicatrizadas. No entanto, já surge aqui uma decisão do autor que considerei equivocada, mas pode não ser um problema para outros leitores... Eu explico:

Ocorre que a pessoalidade do narrador, por se tratar do irmão mais velho da família, parece ter resultado numa certa escassez de imparcialidade; Matthew é uma personagem que não cativa porque sua credibilidade esbarra no sentimentalismo, como se em vários momentos ele quisesse invocar comoção em lugares onde isso não existe. Outro entrave é que Matthew sustenta aspectos destrutivos semelhantes aos de seus irmãos e sua visão de mundo se torna limitada, porque ele é parte de um todo fragmentado, cuja crueza enfraquece a literalidade poética. Sei que parecem argumentos ranzinzas, mas diferente do que houve no livro passado, em que Markus Zusak acerta em cheio ao escolher a morte como sua narradora, aqui o contador da história se tornou vítima de seu próprio olhar equivocado.

Os cinco irmãos da família Dunbar também parecem terem sofrido certa redução de seu autor. De um modo geral, todos eles são grosseiros e selvagens em alguma medida, seja expondo seus modos rudimentares com agressividade ou com introversão, mas sempre agindo como se não soubessem o que fazer ou como fazer. Nenhum problema, afinal, incerteza é uma característica notória do ser humano. Contudo, para quem já conhece as demais obras de Markus Zusak, talvez note certa familiaridade entre outras personagens de sua bibliografia. Atrevo-me a dizer que com exceção de Ed Kenedy (do livro EU SOU O MENSAGEIRO), que é um sujeito pessimista, inerte e sensível, todos os demais protagonistas são parecidos em essência: eles são deslocados em seus universos, brutais quando não sabem como agir, vivem a efervescência da adolescência intransigente e quase sempre são hesitantes. Até Liesel Meminger (do livro A MENINA QUE ROUBAVA LIVROS), mesmo sendo uma personagem feminina, também sustenta características semelhantes aos demais. Ou seja, a família Dunbar inserida aqui soa como mais do mesmo. É como ler os mesmos personagens em histórias diferentes.

O livro também é um pouco longo; há capítulos soltos aqui que considerei descartáveis e tornou alguns instantes enfadonhos. Muitas personagens para terem sua trajetória narrada também colaboraram para aumentar o tamanho. Mas como sempre digo: o tamanho do livro não é um problema, propriamente. Porém, é preciso ter cuidado para que o receio de cortar partes não torne a história cansativa. Pelo menos a diagramação é limpa e bem organizada, o que ajuda na hora de encarar longos textos.

Mas não são somente problemas estruturais que preenchem este livro:

A boa linguagem coloquial de Zusak continua afiada; é impressionante como este escritor consegue tornar seus diálogos tão fiéis às conversas entre pessoas reais. Trejeitos, manias, hesitação, irreverência, emoção, aspectos críveis se espalham por toda a narrativa.

Também é gostoso reencontrar as pausas em parágrafos curtos, às vezes de apenas uma linha, que se sucede em diversos momentos e nos ensina a vislumbrar intensidade na história em instantes fugazes. É como se o leitor fosse convidado a refletir sobre um momento ordinário e que passaria despercebido, mas que se tornou belo justamente porque nos foi mostrado em pouquíssimas palavras. São pequenos focos de cenário, quebrados para te mostrar um pedacinho de cada vez... Acho esse método altamente imersivo.

Tentando não cometer nenhum spoiler, vale ainda ressaltar que a ponte incutida no título da obra vai além da estrutura física; a ponte aqui funciona como uma metáfora. Porque pontes são, basicamente, conexões entre pontos distintos. Na obra de Zusak, a ponte funciona como a religação entre personagens cujas relações passadas resultaram em rompimentos. E o fato de a empreitada de Clay ser a reconstrução de uma ponte que se rompeu, deu-nos então a direção para a mensagem que a história queria apontar.

Sei que esta resenha ficou um pouco maior do que costumeiramente faço, mas é que considerei fundamental esmiuçar alguns pontos do livro para que se justifique meu parecer quanto a considerar este trabalho mediano.

O CONSTRUTOR DE PONTES é um livro sobre perdas, sobre descoberta de identidades e a inconstância do ser humano perante o ineditismo da vida. Usa em favor próprio uma peculiar narrativa sensível, mas derrapa ao propor um contador de história que não transmite credibilidade por insistir em tentar extrair ao menos uma lágrima do leitor.

NOTA: 7

sábado, 9 de maio de 2020

RESENHA DE LIVRO – A IMORTALIDADE


Considerei difícil classificar ou resenhar este livro, porque no instante em que sua trama causa determinada impressão, logo esta é desconstruída mais adiante. E isso não significa nenhum estorvo, mas sim, uma inusitada condução narrativa, que segundo as palavras do próprio Milan Kundera: “a única razão de um romance é dizer o que somente o romance pode dizer”.

Ao que parece, o autor se viu descontente com a adaptação de uma de suas obras mais aclamada, A Insustentável leveza do Ser. Sendo assim, Kundera quis desenvolver um livro que fosse nada menos que um texto impossível de ser adaptado.

A IMORTALIDADE é um livro um pouco complexo, mas não por ter uma linguagem difícil ou sofisticada, pelo contrário, Milan Kundera escreve de forma acessível. O problema é que o autor narra perspectivas distintas para mostrar um mesmo tema; esmiúça aspectos de diferentes personagens em tempos distintos inseridos na obra. Condensa tudo para chegar ao escopo que intitula a obra: a imortalidade que habita em cada um de nós.

A narrativa intromete-se pouco no que tange aproximar a pessoalidade do autor – que no caso aqui é também a personagem que narra a história, ou pelo menos houve a tentativa de confundir o leitor com tal sugestão – Milan Kundera simplesmente discorre sobre quem somos do ponto de vista situacional dentro da vida de cada um de seus narrados, deixando por conta do leitor qualquer forma de julgamento. Contudo, sacralizando a máxima desejante enraizada no ser humano desde que o mundo é mundo: o anseio de ser inesquecível.

Num universo atemporal, a trama divide seu espaço de importância entre diversas personagens; Agnes é a protagonista que desperta no autor a inspiração para a narrativa, um breve gesto e está criado o encanto que faz o criador querer contar uma história. Dispersando os universos, deparamo-nos com o famoso escritor Goethe envolto numa relação tempestuosa com a jovem e bela Bettina; temos Laura, a irmã de Agnes, mulher depressiva cuja mente vive desenvolvendo meios de tirar a própria vida; ainda há passagens em que acompanhamos a aparição de personagens ilustres como Beethoven, Napoleão Bonaparte e até diálogos entre o já citado Goethe e Ernest Hemingway.

O livro não é linear, seus capítulos pareceram-me independentes, não sendo necessário que sejam lidos na ordem em que estão inseridos. Os diálogos são caprichados e merecem o devido cuidado do leitor para frear em certos instantes. Do contrário, corre-se o risco de que seu conteúdo filosófico seja perdido.

Esse método de capítulos individuais e diversos personagens dividindo o espaço do livro pode ter seu lado bom no aspecto de discorrer determinado tema sob situações e ações distintas. No entanto, há o inevitável problema com algumas partes que são mais agradáveis do que outras, assim como podemos considerar personagens carismáticos e outros nem tanto. Quando nosso favorito desaparece por muito tempo das páginas, consequentemente o livro perde em prestígio.

 A IMORTALIDADE é um livro sofisticado como um todo. Incerto quanto ao público alvo, mas apreciadíssimo pela maioria das opiniões que encontrei pela internet, seja de leitores comuns ou de críticos literários. O tipo de obra que precisa de tempo para ser digerida, que carece releituras, de conteúdo inesgotável e acessível, mas que pode incomodar leitores desavisados que desconhecem o estilo singular de seu autor.

NOTA: 7,8