sábado, 30 de janeiro de 2021

RESENHA DE LIVRO – A IRMÃ DE FREUD

A hipótese de que Freud, ao escapar da invasão nazista, teria deixado suas irmãs para trás, é um tema sedutor demais para ser deixado de lado pelo cenário literário. Sempre foi assim: as pessoas querem saber da conduta de figuras centrais da história da humanidade e Freud foi um dos pensadores mais importantes do século XX.

Se o pai da psicanálise foi responsável ou não, isso talvez jamais seja descoberto. O único fato que se sabe é que Freud fugiu de Vienna quando a cidade foi ocupada pelo regime opressivo de Hitler, sem levar as irmãs que acabaram mortas em campos de concentração. Apenas isso. Se foi um ato de negligência, se havia possibilidade de levá-las (o que soa provável, afinal, na lista de nomes que Freud foi autorizado a incluir estão o médico e sua família, duas assistentes, a cunhada e até o cachorro), são detalhes inconclusivos. Ou seja, as irmãs dele não conseguiram fugir por descaso ou não havia nada a ser feito? A situação era favorável? Por que esse homem optou por levar até a família do médico, mas esqueceu de seu próprio sangue?

Este momento turvo na vida de Freud foi o escopo que despertou o interesse do escritor GOCE SMILEVISKI pela vida do famoso psicanalista. Ou simplesmente o faro pela oportunidade de se contar uma boa história, afinal, o cenário parecia promissor: um escândalo dessa magnitude seria uma mancha irreparável na vida do grande Freud. Caberia ao pretenso contador da história a habilidade de aproximar ao máximo a hipótese da realidade. Se Smileviski conseguiu realizar esse feito, eu levantarei aqui algumas dúvidas. Contudo, o cara levou o Prêmio da União Europeia para Literatura. Portanto, falemos um pouco da obra:

A IRMÃ DE FREUD é narrado pela mulher abandonada do título. Adolfine é a protagonista cujo olhar acompanhamos ao longo das 334 páginas de uma trama que se inicia de modo decisivo, pois estamos diante das irmãs indo encontrar Freud para cobrarem uma explicação que justifique elas não estarem incluídas na lista feita pelo irmão. Imagina-se que aqui estaremos diante de um embate difícil entre familiares, de enfrentamento fortes, acusações, ressentimentos, a mágoa nublando o discernimento dos esquecidos. Mas isso quase não acontece, as irmãs se comportam de modo insípido e submisso, sem nenhum sinal de pânico ou desequilíbrio. Enquanto Freud se comporta de modo alheio a tudo, uma figura quase apática.

Mesmo assim, o livro começa aceitável. Adolfine narra situações de medo generalizado e muita insegurança em relação aos dias vindouros, até o instante em que ela vai parar no campo de concentração de Terezin. A personagem remete-nos ao seu olhar e apenas isso. O leitor acompanha o caos por meio do que Adolfine nos conta, elevando a credibilidade do texto a ponto de parecer um diário.

Outro aspecto positivo na trama é que GOCE SMILEVSKI não permite que o texto sucumba à sombra sedutora do irmão famoso, concentrando-se apenas em Adolfine (acredite, é muito comum autores se deixarem seduzir por figuras heroicas quando a proposta era narrar a história de um personagem paralelo do mesmo). Goce não permite que a majestade de Freud ofusque sua protagonista.

Contudo, a obra comporta alguns probleminhas. O primeiro deles está na própria narradora. Adolfine perde um pouco em autenticidade porque sendo ela irmã, portanto, alguém muito íntima de Freud, seu relato soa indiferente e algumas vezes até descabido. Não há embates ou conflitos de opiniões, nem mesmo quando Adolfine está imersa em pensamentos. A irmã apenas vai narrando tudo, como se fosse uma figura neutra.

O autor também parece ter se acovardado em sua condução. Apesar do tema central polêmico, Goce evita inserir elementos questionáveis ou comportamentos contraditórios em seus personagens. Freud, por exemplo, é retratado aqui como um homem monótono, quase blasé. E no lugar de aproximar sua história das inconstâncias existenciais dos envolvidos, o autor passa todo o tempo tentando justificar a existência sofrida e alienada de Adolfine. A chance de termos um relato mais orgânico, mesmo sendo ele fictício, se perde quando Adolfine é retratada como o estereótipo medíocre de personagem cujo sofrimento de vida explica-se no âmbito da obviedade.

A IRMÃ DE FREUD é talvez um exemplo de livro que não soube explorar melhor o grande tema que possuía em sua espinha dorsal. Possui momentos bons, principalmente no começo, mas acaba derrapando na veemência em registrar apenas os motivos que fizeram de sua protagonista, alguém tão infeliz.

NOTA: 6,2

sábado, 23 de janeiro de 2021

CONTO - A MÁSCARA DA VERDADE

 

Há muito tempo, quando homens ainda eram seres honrados a ponto de que lhes fosse permitido estabelecer interações com o divino, eis que um Deus pagão presenteou estimado rei por toda sua equidade, dando ao homem a Máscara de Aravín, um item singular que tinha o poder de revelar qualquer verdade desejada, bastando apenas que seu portador a colocasse no rosto. Havia somente um único requisito: uma vez usada, a máscara perderia seu efeito.

Sabendo da preciosidade a qual tornara-se possuidor, o rei guardou zelosamente a Máscara de Aravín para somente usá-la quando fosse, de fato, por uma causa extremamente importante.

Por muitas vezes o rei se viu tentado a descobrir verdades, como quando esteve em guerra contra outros reinos e ansiava por descobrir quais eram os planos do inimigo. Porém, sempre que buscava a máscara para utilizar seu poder de descobrir a verdade, pairava em sua mente o receio de que no futuro, urgência maior poderia surgir e ele já não contaria com o poder extraordinário da máscara. Afinal, aquela imposição de que, uma vez usada, a máscara perderia seu poder, inundava a mente do rei de incertezas quanto a hora certa de utilizar.

Então o tempo passou e quando o rei se deu conta, estava velho, acamado e enfermo, perto do fim de sua vida monárquica. Não havia mais nenhuma certeza a qual ele quisesse saber; a morte estava perto demais para que restasse algum anseio sobre um mundo no qual em breve ele não faria mais parte. O rei mandou chamar seu filho, sucessor do trono, e a ele deu a Máscara de Aravín.

“Use-a com sabedoria, meu filho”, orientou o rei “porque a máscara só lhe dará uma chance de descobrir a verdade”.

O herdeiro assumiu o trono e manteve o presente divino seguro. Considerava-se um homem estrategista e sensato. Ele saberia o momento certo de usar o item mágico. E de fato, o jovem rei resistiu aos maiores ímpetos, como suspeitas de traições entre seus generais, curas para enfermidades horrendas... Nem mesmo uma crise paranoica, sobre rumores de que sua amada esposa estivesse lhe traindo, foi capaz de fazer com que o rei retirasse a máscara de sua arca secreta e a aproximasse do rosto. Quando diante do objeto sublime, o rei sempre hesitava, temendo que uma catástrofe futura acometesse seu reino e ele já não pudesse mais contar com a revelação da verdade.

E assim, a Máscara de Aravín foi transferida para os sucessores do trono, sem que nenhum deles encontrasse o instante crucial em que devesse ser usada. Até chegarmos à idade média, em que reinos foram desfeitos e a máscara foi parar em um museu da região norte da Europa. Aberto a visitação, a inigualável peça deixou de ser vista como instrumento de descoberta da verdade, para ser encarada como mero objeto de antiguidade. Pessoas contavam sobre a surpreendente história da Máscara de Aravín e seu poder de conceber a verdade, como se fosse apenas um mito alegórico.

Então a idade moderna chegou e, com ela, as duas grandes guerras mundiais. A devastação do período fez com que a máscara se perdesse em escombros, também houveram rumores dizendo que ela fora extraviada e vendida no mercado negro. Permaneceu desaparecida até os anos atuais, quando um jovem turista passeando pela Ásia encontrou a máscara numa singela loja de antiquários. Achou-a bela e comprou por valor simbólico, sem saber de sua história fantástica. Antes de sair da loja, o rapaz perguntou ao vendedor sobre o endereço de um teatro específico. Sem dar muita importância, o vendedor disse desconhecer o local.

Percorrendo ruas, o turista seguiu seu passeio despretensioso, ciente de que, cedo ou tarde, encontraria o referido teatro. E sentado numa praça, acometeu-se de ato jocoso e colocou a Máscara de Aravín no rosto para fazer uma self e mandar para sua namorada.

Naquele instante, sentado no meio da praça, a face coberta pelo instrumento divino, algo se iluminou na mente do rapaz. Então ele se levantou e foi em direção ao seu intento, sem entender como foi que, milagrosamente, se via conhecedor do caminho até o teatro que ansiava conhecer.