A hipótese de que Freud, ao
escapar da invasão nazista, teria deixado suas irmãs para trás, é um tema
sedutor demais para ser deixado de lado pelo cenário literário. Sempre foi
assim: as pessoas querem saber da conduta de figuras centrais da história da
humanidade e Freud foi um dos pensadores mais importantes do século XX.
Se o pai da psicanálise foi
responsável ou não, isso talvez jamais seja descoberto. O único fato que se
sabe é que Freud fugiu de Vienna quando a cidade foi ocupada pelo regime
opressivo de Hitler, sem levar as irmãs que acabaram mortas em campos de
concentração. Apenas isso. Se foi um ato de negligência, se havia possibilidade
de levá-las (o que soa provável, afinal, na lista de nomes que Freud foi
autorizado a incluir estão o médico e sua família, duas assistentes, a cunhada
e até o cachorro), são detalhes inconclusivos. Ou seja, as irmãs dele não
conseguiram fugir por descaso ou não havia nada a ser feito? A situação era
favorável? Por que esse homem optou por levar até a família do médico, mas
esqueceu de seu próprio sangue?
Este momento turvo na vida de
Freud foi o escopo que despertou o interesse do escritor GOCE SMILEVISKI
pela vida do famoso psicanalista. Ou simplesmente o faro pela oportunidade de
se contar uma boa história, afinal, o cenário parecia promissor: um escândalo
dessa magnitude seria uma mancha irreparável na vida do grande Freud. Caberia
ao pretenso contador da história a habilidade de aproximar ao máximo a hipótese
da realidade. Se Smileviski conseguiu realizar esse feito, eu levantarei aqui
algumas dúvidas. Contudo, o cara levou o Prêmio da União Europeia para
Literatura. Portanto, falemos um pouco da obra:
A IRMÃ DE FREUD é
narrado pela mulher abandonada do título. Adolfine é a protagonista cujo olhar
acompanhamos ao longo das 334 páginas de uma trama que se inicia de modo
decisivo, pois estamos diante das irmãs indo encontrar Freud para cobrarem uma
explicação que justifique elas não estarem incluídas na lista feita pelo irmão.
Imagina-se que aqui estaremos diante de um embate difícil entre familiares, de
enfrentamento fortes, acusações, ressentimentos, a mágoa nublando o
discernimento dos esquecidos. Mas isso quase não acontece, as irmãs se
comportam de modo insípido e submisso, sem nenhum sinal de pânico ou
desequilíbrio. Enquanto Freud se comporta de modo alheio a tudo, uma figura
quase apática.
Mesmo assim, o livro começa aceitável.
Adolfine narra situações de medo generalizado e muita insegurança em relação
aos dias vindouros, até o instante em que ela vai parar no campo de
concentração de Terezin. A personagem remete-nos ao seu olhar e apenas isso. O
leitor acompanha o caos por meio do que Adolfine nos conta, elevando a
credibilidade do texto a ponto de parecer um diário.
Outro aspecto positivo na
trama é que GOCE SMILEVSKI não permite que o texto sucumba à sombra
sedutora do irmão famoso, concentrando-se apenas em Adolfine (acredite, é muito
comum autores se deixarem seduzir por figuras heroicas quando a proposta era
narrar a história de um personagem paralelo do mesmo). Goce não permite que a
majestade de Freud ofusque sua protagonista.
Contudo, a obra comporta
alguns probleminhas. O primeiro deles está na própria narradora. Adolfine perde
um pouco em autenticidade porque sendo ela irmã, portanto, alguém muito íntima
de Freud, seu relato soa indiferente e algumas vezes até descabido. Não há
embates ou conflitos de opiniões, nem mesmo quando Adolfine está imersa em
pensamentos. A irmã apenas vai narrando tudo, como se fosse uma figura neutra.
O autor também parece ter se acovardado em sua condução. Apesar do tema central polêmico, Goce evita inserir elementos questionáveis ou comportamentos contraditórios em seus personagens. Freud, por exemplo, é retratado aqui como um homem monótono, quase blasé. E no lugar de aproximar sua história das inconstâncias existenciais dos envolvidos, o autor passa todo o tempo tentando justificar a existência sofrida e alienada de Adolfine. A chance de termos um relato mais orgânico, mesmo sendo ele fictício, se perde quando Adolfine é retratada como o estereótipo medíocre de personagem cujo sofrimento de vida explica-se no âmbito da obviedade.
A IRMÃ DE FREUD é talvez um exemplo de livro que não soube explorar melhor o grande tema que possuía em sua espinha dorsal. Possui momentos bons, principalmente no começo, mas acaba derrapando na veemência em registrar apenas os motivos que fizeram de sua protagonista, alguém tão infeliz.
NOTA: 6,2