terça-feira, 24 de novembro de 2020

RESENHA DE LIVRO –O ÚLTIMO MINUTO


A literatura é a arte que alcança indivíduos solitários, aqueles que se abstraem, isoladamente, na experiência secreta da leitura. E é precisamente a natureza soturna da personagem principal deste O ÚLTIMO MINUTO, o elemento que o faz querer contar sua história: uma espécie de descarrego do acúmulo de vida guardada no âmago de sua existência isolada.

O autor Marcelo Backes aqui conta a história de João, O Vermelho, ex-treinador de futebol, cujas lembranças de vida parecem inadiavelmente suspensas em sua mente, o que o faz relatar sua trajetória à um missionário. Desse modo, seguimos de perto acompanhando a elocução do narrador personagem.

De uma vida cosmopolita, João descende de russos, foi criado no sul do Brasil, buscou empreender na Europa, voltou ao Brasil como treinador de futebol, profissão que também desempenhou na Suíça. Um sujeito que foi do interior patriarcal para a cidade grande virulenta, é cheio das impressões descabidas que o faz contar sua história de modo a sempre adiar o desfecho final, talvez por um desejo íntimo de que não cesse o diálogo.

O futebol como alegoria da vida como ela é, suscita a curiosidade do leitor em avançar na leitura porque a representatividade mundana narrada entre as quatro linhas, parece tornar a complexidade social, digamos, menos complexa. Uma pena que este escopo aconteça tão poucas vezes durante a trama. Pelo menos foi essa impressão que tive.

Marcelo Backes consegue criar empatia no leitor, apesar do olhar equivocado de seu personagem. É que justamente por conta da opinião limitada de João, que alguns de seus pontos de vista acabam por se parecer com o nosso.

A problemática da não aceitação da personagem, que é conservadora por essência, em lidar com as mudanças sociais modernas é exposta aqui de forma contundente. João é um homem tradicionalista e bitolado. E como tipicamente ocorre com esse tipo de redução existencial, ele tece sua análise descabida sobre o mundo por quase toda a obra.

A característica que se faz notória na personagem de João é a nostalgia. Encarcerado, ele verbaliza sobre sua vida de modo apaixonado; demora a entregar o que seu interlocutor quer saber porque denota entusiasmo no exercício de retorno ao passado; quer que saibamos de todo o trajeto vivido, talvez como forma de justificativa para sua transgressão maior, ou simplesmente por sua incansável projeção com tempos que não retornam mais. Enfim, seguimos com a leitura porque ansiamos em saber como ele foi parar na cadeia.

A diagramação do livro me incomodou um pouco. Parágrafos longos deixaram a análise do narrador um pouco cansativa. Há instantes em que a leitura desacelera, se torna arrastada, que só não se converteram em algo maçante porque o livro é relativamente pequeno.

O ÚLTIMO MINUTO é como uma senóide, há instantes muito bons, quase sempre quando a personagem faz suas analogias futebolísticas, e outros momentos um pouco menos prazerosos, cujo entusiasmo cai significativamente, mas descamba num final que não decepciona. Trata-se de uma síntese da personagem sobre a própria vida, portanto, um olhar cheio de equívocos e carregado de conceitos contraditórios, que carece um tanto de imparcialidade do leitor.

NOTA: 5,9

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

RESENHA DE LIVRO – O CASAMENTO


“Pela torpeza das cenas descritas e linguagem indecorosa em que está vazado”, foi esse o argumento publicado em portaria pelo regime militar no ano de 1966 como justificativa para a proibição deste O CASAMENTO, único romance do dramaturgo Nelson Rodrigues. Pois eis que neste distante 2020 ainda se pode encontrar comentários pela internet assustadoramente semelhantes, de gente limpinha, cujo argumento de indignação parece emanar de um conflito interno.

“Livro nojento, que não acrescenta nada e somente busca chocar por meio de personagens incestuosos, preconceituosos e hipócritas”, este é um dos muitos comentários que encontrei em breve vasculha por sites de literatura. Mesmo após 54 anos, acho que ainda perdura um conservadorismo endêmico na sociedade, que sente desconforto ao se deparar com as complexidades da natureza humana.

Nelson Rodrigues tece uma literatura ausente de qualquer charme narrativo, apresenta seus personagens de modo imediato, pouco cerimonioso, os diálogos assemelham-se à uma metralhadora circunstancial, oferecendo ao leitor um aglomerado de “pessoas” e não “personagens”, cujo aspecto que causa rubor em puritanos é precisamente a maior virtude da obra: o dever de consciência com o lado crível de nossa existência.

Seria absolutamente compreensivo encontrar gente que desgostou da obra por aspectos literários, ou seja, desaprovação por questões de preferência de estilo. Mas a grande maioria de leitores que ainda hoje apedreja este brilhante trabalho, o despreza por considerar o conteúdo machista, preconceituoso ou por considerar o autor levianamente polêmico.

Ao que parece, os assuntos considerados tabus não agridem diretamente a sociedade, mas sim o desconforto quando se está diante de uma narrativa que mostra gente comum, destilando comportamento inadequado. Encontrar atitudes nocivas naquele que é identificado como vilão nos é aceitável, contudo, o dito “cidadão de bem” quando dotado de comportamento perverso costuma gerar asco social. E a grande sacada deste livro é dizer o indizível, porque a natureza confusa do ser humana, cheia de contradições que costumam chocar, jamais deve sair da instância sensorial.

A trama gira em torno de Sabino, empresário bem sucedido que vive com a família no Rio de Janeiro. Como sugere o título, a personagem está às vésperas do casamento de sua filha mais nova. Tipicamente num tom de fofoca, Sabino recebe uma revelação que o deixa transtornado, desencadeando em eventos que irão envolver outras pessoas.

O texto de Nelson é ágil e direto, sem muita preocupação com a estética, apenas segue narrando os eventos, entremeados com muitos diálogos e as inconstâncias dos protagonistas, porém, sem entrar em complexidades psicológicas, o autor concentra-se apenas em contar a história.

O romance como um todo pode ser entendido como uma crítica eloquente sobre a hipocrisia da sociedade, em especial, a famigerada classe média. E embora sabemos que a literatura rodrigueana costuma soar provocativa, os elementos que enriquecem a obra pairam na habilidade do autor em contar sua história. Nelson Rodrigues usa de uma sagacidade capaz de suscitar diferentes tipos de emoções no leitor. Quase que imediatamente ao começo da leitura, nos vemos tomado por uma ânsia irrefreável por saber mais um pouco sobre os eventos. É um livro que flui com facilidade incomparável e o estilo simplista do autor acentua esse aspecto.

Algo gostoso de se encontrar está em algumas gírias da sociedade daquela década de sessenta; o recato estabelecido e diretamente associado aos bons costumes que conferem o perfil do cidadão de bem. Então Nelson Rodrigues faz cortinas sociais caírem sucessivamente, enquanto suas personagens se esforçam para manter as aparências como de praxe. Há momentos em que a discrepância entre natureza e comportamento aprendido é mostrado de modo surpreendente. Não importa o que foi feito da vida, cedo ou tarde, o animal humano vem à tona.

O choque com a realidade muitas vezes soa como um soco na cara. Outras vezes nos faz dar boas risadas. O escopo da literatura rodrigueana insinua-se na mente do leitor, não apenas para mostrar a vida como ela é, mas acima de tudo, narrar uma história que de tão crível, parece deter aspectos documentais.

O CASAMENTO é um livro desses que me faz perguntar o porque de eu ter demorado tanto para descobrir. Não soa mais tão ousado, mas pelo que pude constatar em minhas pesquisas, ainda tem muita gente que se incomoda com o desnudar da natureza humana. Eis aqui uma obra estupenda, destemida e profundamente instigante.

NOTA: *10*