“Pela torpeza das cenas descritas e linguagem indecorosa em que está vazado”, foi esse o argumento publicado em portaria pelo regime militar no ano de 1966 como justificativa para a proibição deste O CASAMENTO, único romance do dramaturgo Nelson Rodrigues. Pois eis que neste distante 2020 ainda se pode encontrar comentários pela internet assustadoramente semelhantes, de gente limpinha, cujo argumento de indignação parece emanar de um conflito interno.
“Livro nojento, que não
acrescenta nada e somente busca chocar por meio de personagens incestuosos,
preconceituosos e hipócritas”, este é um dos muitos
comentários que encontrei em breve vasculha por sites de literatura. Mesmo após
54 anos, acho que ainda perdura um conservadorismo endêmico na sociedade, que
sente desconforto ao se deparar com as complexidades da natureza humana.
Nelson Rodrigues tece
uma literatura ausente de qualquer charme narrativo, apresenta seus personagens
de modo imediato, pouco cerimonioso, os diálogos assemelham-se à uma
metralhadora circunstancial, oferecendo ao leitor um aglomerado de “pessoas” e
não “personagens”, cujo aspecto que causa rubor em puritanos é precisamente a
maior virtude da obra: o dever de consciência com o lado crível de nossa
existência.
Seria absolutamente
compreensivo encontrar gente que desgostou da obra por aspectos literários, ou
seja, desaprovação por questões de preferência de estilo. Mas a grande maioria
de leitores que ainda hoje apedreja este brilhante trabalho, o despreza por
considerar o conteúdo machista, preconceituoso ou por considerar o autor
levianamente polêmico.
Ao que parece, os assuntos
considerados tabus não agridem diretamente a sociedade, mas sim o desconforto
quando se está diante de uma narrativa que mostra gente comum, destilando
comportamento inadequado. Encontrar atitudes nocivas naquele que é identificado
como vilão nos é aceitável, contudo, o dito “cidadão de bem” quando dotado de
comportamento perverso costuma gerar asco social. E a grande sacada deste livro
é dizer o indizível, porque a natureza confusa do ser humana, cheia de
contradições que costumam chocar, jamais deve sair da instância sensorial.
A trama gira em torno de Sabino,
empresário bem sucedido que vive com a família no Rio de Janeiro. Como sugere o
título, a personagem está às vésperas do casamento de sua filha mais nova.
Tipicamente num tom de fofoca, Sabino recebe uma revelação que o deixa
transtornado, desencadeando em eventos que irão envolver outras pessoas.
O texto de Nelson é ágil e
direto, sem muita preocupação com a estética, apenas segue narrando os eventos,
entremeados com muitos diálogos e as inconstâncias dos protagonistas, porém,
sem entrar em complexidades psicológicas, o autor concentra-se apenas em contar
a história.
O romance como um todo pode
ser entendido como uma crítica eloquente sobre a hipocrisia da sociedade, em
especial, a famigerada classe média. E embora sabemos que a literatura rodrigueana
costuma soar provocativa, os elementos que enriquecem a obra pairam na
habilidade do autor em contar sua história. Nelson Rodrigues usa de uma
sagacidade capaz de suscitar diferentes tipos de emoções no leitor. Quase que
imediatamente ao começo da leitura, nos vemos tomado por uma ânsia irrefreável
por saber mais um pouco sobre os eventos. É um livro que flui com facilidade
incomparável e o estilo simplista do autor acentua esse aspecto.
Algo gostoso de se encontrar
está em algumas gírias da sociedade daquela década de sessenta; o recato
estabelecido e diretamente associado aos bons costumes que conferem o perfil do
cidadão de bem. Então Nelson Rodrigues faz cortinas sociais caírem
sucessivamente, enquanto suas personagens se esforçam para manter as aparências
como de praxe. Há momentos em que a discrepância entre natureza e comportamento
aprendido é mostrado de modo surpreendente. Não importa o que foi feito da
vida, cedo ou tarde, o animal humano vem à tona.
O choque com a realidade
muitas vezes soa como um soco na cara. Outras vezes nos faz dar boas risadas. O
escopo da literatura rodrigueana insinua-se na mente do leitor, não apenas para
mostrar a vida como ela é, mas acima de tudo, narrar uma história que de tão
crível, parece deter aspectos documentais.
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