Certa feita, durante uma
visita à minha querida mãe, ela me contou uma coisa que permaneceu suspensa em
minha mente por toda a leitura que, posteriormente viria a fazer deste HERANÇA DE MARIA, obra de Domingos Pellegrini: mamãe disse que
Maria era nome de mulher que sofre; que toda a Maria que pisou neste mundo,
veio para sofrer.
Contudo, diferente da minha
Maria, a Maria que intitula este comovente romance parece se orgulhar de seu
nome, até nos momentos em que as coisas não foram como ela planejara. A Maria dentro
dessas páginas engole seco, suspira fundo, e continua anunciando para todos os
desafios que se apresentam diante de si: “Ou
não sou Maria ou resolverei logo essa situação”.
Orgulhosa de seu nome a
Maria narrada neste livro mostrou-me que essas mulheres Marias são seres
comuns, embora distintas em sentimentos: a minha mãe Maria é humilde em
reconhecer a dor incutida em seu registro; a Maria de Domingos é uma mulher
austera e destemida, que sabe de seus limites e por isso os esconde com
orgulho. Mas por fim, entende que é excepcional como todas as outras, ou do
contrário, não seria Maria.
Este livro é, antes de
qualquer outra definição, uma emocionante homenagem de um filho que amou e
odiou sua mãe em diferentes etapas da vida. No entanto, independente do
sentimento, aqui encontramos entre ficção e realidade, a história de uma mulher
cuja presença audaciosa deixou marcas em sua alma para toda vida. Então, eis
que ele, autor narrador, começa a contar a história de sua genitora voraz,
agora irreparavelmente encamada, sob os cuidados de um filho que não sabe
quanto tempo ela ainda vegetará daquela forma triste. Intercalando capítulos
que vão ao passado de sua família e retornam ao presente, no quarto de casa, onde
sua Maria espera pela providência divina.
O ponto mais alto da obra
fica por conta da honestidade do autor que parece, de fato, relatar situações
intensas de sua vida, de forma muito crua. A intimidade expressada aqui é
tocante, profunda, mas não chega a suscitar comoção. Domingos Pellegrini parece externar lugares profundos de sua alma. Em
momento algum ele economiza em descrever sua mãe, seja para criticar ou para
enaltecer; nenhum dos extremos exerce função narrativa. O que encontramos aqui são
apenas os fatos sendo expostos através das páginas da maneira mais crível possível.
Em termo de relato é um livro vigoroso, por
isso a dúvida enorme dentro de minha percepção quanto ao que é fato e o que é
ficção. Muito cru e essencial, parece colocar seus personagens como realmente
foram, excluindo do leitor qualquer chance de suspeita, muito embora sempre haja
elementos irreais adicionados por quem desenvolve literatura.
Dois pontos considerei
como sendo ápices da beleza na trama: o capítulo em que nos é apresentada a
história do canivete, e o capítulo sobre Olguinha que me emocionou bastante a
ponto de me fazer ser grato por ter descoberto esse livro.
Talvez a obra incomode os
leitores que não curtem esse tipo de narrativa prolixa, sem mocinhos ou vilões,
mas altamente sensível e crua, que eleva a proximidade com o que existe de mais
humano em nós. Alguns momentos em que são relatados os tempos de conflitos
entre ditadura e grupos revolucionários podem incomodar os que não curtem
política, mesmo que aqui tenhamos um olhar em primeira pessoa.
Em suma, pode ser que
gerações mais jovens pouco se identifiquem com esta obra, embora isso não seja
conclusivo. Mas as gerações intermediárias e as mais velhas, principalmente
aquelas que tiveram uma Maria em suas vidas, certamente se sentirão
representados e se emocionarão quando encontrarem similaridade com suas
próprias vivências... Quem vive ou viveu perto de uma dessas incomparáveis
Marias, vai saber exatamente do que estou falando.
NOTA: 8,1