segunda-feira, 27 de abril de 2020

RESENHA DE LIVRO – HERANÇA DE MARIA


Certa feita, durante uma visita à minha querida mãe, ela me contou uma coisa que permaneceu suspensa em minha mente por toda a leitura que, posteriormente viria a fazer deste HERANÇA DE MARIA, obra de Domingos Pellegrini: mamãe disse que Maria era nome de mulher que sofre; que toda a Maria que pisou neste mundo, veio para sofrer.

Contudo, diferente da minha Maria, a Maria que intitula este comovente romance parece se orgulhar de seu nome, até nos momentos em que as coisas não foram como ela planejara. A Maria dentro dessas páginas engole seco, suspira fundo, e continua anunciando para todos os desafios que se apresentam diante de si: “Ou não sou Maria ou resolverei logo essa situação”.

Orgulhosa de seu nome a Maria narrada neste livro mostrou-me que essas mulheres Marias são seres comuns, embora distintas em sentimentos: a minha mãe Maria é humilde em reconhecer a dor incutida em seu registro; a Maria de Domingos é uma mulher austera e destemida, que sabe de seus limites e por isso os esconde com orgulho. Mas por fim, entende que é excepcional como todas as outras, ou do contrário, não seria Maria.

Este livro é, antes de qualquer outra definição, uma emocionante homenagem de um filho que amou e odiou sua mãe em diferentes etapas da vida. No entanto, independente do sentimento, aqui encontramos entre ficção e realidade, a história de uma mulher cuja presença audaciosa deixou marcas em sua alma para toda vida. Então, eis que ele, autor narrador, começa a contar a história de sua genitora voraz, agora irreparavelmente encamada, sob os cuidados de um filho que não sabe quanto tempo ela ainda vegetará daquela forma triste. Intercalando capítulos que vão ao passado de sua família e retornam ao presente, no quarto de casa, onde sua Maria espera pela providência divina.

O ponto mais alto da obra fica por conta da honestidade do autor que parece, de fato, relatar situações intensas de sua vida, de forma muito crua. A intimidade expressada aqui é tocante, profunda, mas não chega a suscitar comoção. Domingos Pellegrini parece externar lugares profundos de sua alma. Em momento algum ele economiza em descrever sua mãe, seja para criticar ou para enaltecer; nenhum dos extremos exerce função narrativa. O que encontramos aqui são apenas os fatos sendo expostos através das páginas da maneira mais crível possível.

Em termo de relato é um livro vigoroso, por isso a dúvida enorme dentro de minha percepção quanto ao que é fato e o que é ficção. Muito cru e essencial, parece colocar seus personagens como realmente foram, excluindo do leitor qualquer chance de suspeita, muito embora sempre haja elementos irreais adicionados por quem desenvolve literatura.

Dois pontos considerei como sendo ápices da beleza na trama: o capítulo em que nos é apresentada a história do canivete, e o capítulo sobre Olguinha que me emocionou bastante a ponto de me fazer ser grato por ter descoberto esse livro.

Talvez a obra incomode os leitores que não curtem esse tipo de narrativa prolixa, sem mocinhos ou vilões, mas altamente sensível e crua, que eleva a proximidade com o que existe de mais humano em nós. Alguns momentos em que são relatados os tempos de conflitos entre ditadura e grupos revolucionários podem incomodar os que não curtem política, mesmo que aqui tenhamos um olhar em primeira pessoa.

Em suma, pode ser que gerações mais jovens pouco se identifiquem com esta obra, embora isso não seja conclusivo. Mas as gerações intermediárias e as mais velhas, principalmente aquelas que tiveram uma Maria em suas vidas, certamente se sentirão representados e se emocionarão quando encontrarem similaridade com suas próprias vivências... Quem vive ou viveu perto de uma dessas incomparáveis Marias, vai saber exatamente do que estou falando.

NOTA: 8,1

quarta-feira, 15 de abril de 2020

RESENHA DE LIVRO – SÁBADOS INQUIETOS


Apesar de ser um homem que respira literatura, não foi através de um livro que conheci o escritor José Castello. Eu estava em casa assistindo a uma das muitas palestras que tanto aprecio sobre Clarice Lispector, ao reparar numa delas, um simplório senhor, com pernas cruzadas e olhar atento, que fazia comentários pertinentes e nos momentos certos, sinal inequívoco de lucidez. Era um dos mediadores. Dias depois voltei a ver o nome daquele senhor estampado na capa de um livro que encontrei por acaso num Sebo (é sempre por acaso que descubro boa literatura). Então, associei as possibilidades: um sujeito simpático, consciente e culto; uma seleção de crônicas de sua autoria... Deve se tratar de coisa boa.

Mas de que modo poderia eu resenhar o resenhista? Se após me deleitar com textos amplamente analíticos e charmosos, minhas palavras certamente sofrerão o inevitável efeito da comparação e, por consequência, a constatação de que sou um insípido leitor que se utiliza deste espaço de maneira irresponsável, afinal, falta-me o olhar aguçado e a sutileza crítica de um experiente exegeta como José Castello.

SÁBADOS INQUIETOS é uma coletânea das cem melhores crônicas de Castello, publicadas entre janeiro de 2007 e março de 2012 no jornal O Globo, aos sábados. E embora prefira se autodenominar como apenas um leitor comum, é evidente, já nos primeiros parágrafos de leitura, que estamos diante de um narrador sofisticado, analítico, mas ao mesmo tempo sensível; alguém que de fato esmiuçou cada obra examinada.

As crônicas são gostosas, cheias de referências do universo literário, recheadas de belas citações e aforismos de autores. Muitas vezes nos deparamos com elementos da vida do escritor alvo, curiosidades sobre sua vida ou sua obra, uma passagem interessante daquele livro criticado. Ou seja, José Castello é um engajado estudioso da literatura, o que torna a leitura de suas crônicas um exercício prazeroso. São textos indicativos que nos deixam com vontade de ler as obras referenciadas. Eu mesmo anotei pelo menos meia dúzia de obras que desconhecia, mas que minha vontade de ler fora despertada pela leitura deste amplo catálogo.

Para os leitores que não apreciam poesias, vale ressaltar que o autor é um confesso amante do gênero, portanto, grande parte das citações e autores incutidos em SÁBADOS INQUIETOS é acerca de nomes da poesia, consagrados ou não. Há diversos autores de prosa também, eu particularmente comungo da preferência de Castello por Clarice Lispector, mas é evidente que os escritores de poesias são amplamente mais citados nesta coletânea.

SÁBADOS INQUIETOS é um livro para se ler devagar, para que não se deixe perder as muitas referências charmosas e dicas preciosas. Vale muito como instrumento de pesquisa em diversidade literária, mas não somente, o livro destila seu charme o tempo inteiro, deixando um ar de leveza que distancia de outros trabalhos sistemáticos de críticos que odeiam ser enxergados como deveriam ser: os mais apaixonados e humildes leitores do universo dos livros.

NOTA: 7,7