Costumeiramente, os autores mais aclamados da literatura são aqueles que escrevem sobre grandes acontecimentos ou narram feitos extraordinários de suas personagens. O tipo de obra que percorre o mundo e encanta os leitores precisa contar com feitos raros, singulares ou extremos. E apesar de também me ver enquadrado dentro dessa universalidade que aprecia grandes sagas, tenho que confessar que me encanto por artistas que estão mais interessados em narrar trivialidade e a nada admirável epopeia de gente como a gente.
É o caso dessa fabulosa
portuguesa chamada Dulce Maria Cardoso (uma presença contínua aqui no
blog): sua admirável capacidade de direcionar nossa atenção para aquilo que
geralmente passaria despercebido; de nos fazer olhar para o objeto de
desinteresse, ignorado justamente por ser tão parecido com a nossa realidade.
A Eliete do título é um
complemento de outras mulheres que compõem o universo literário dessa autora;
são mulheres que levam suas vidas de modo simples, alheias a grandes ambições e
até desprovidas de perspectiva quanto ao futuro. Mulheres que vivem cada dia
como se o mundo fosse apenas um lugar de espera..., espera pelo fim de mais um
dia, pelo término de uma tarefa, espera pela inevitável finitude. E no meio
disso tudo há o adversário definitivo de suas vidas: a amofinação.
Eliete é o arquétipo perfeito
do subtítulo da obra: o que há de mais evidente numa vida comum. Mulher de meia
idade, casada com um homem decente, mãe de duas filhas saudáveis, corretora de
imóvel mediana, adquiriu casa, carro e natais em família. Basicamente era a
materialização da vida que sempre sonhou.
Contudo, a percepção da
personagem sobre a própria vida começa a mudar quando sua avó é acometida de
doença e hospitalizada; o diagnóstico recebido é o Alzheimer. Desse modo, a
fragilidade de um parente próximo faz com que Eliete volte sua atenção para si
própria, e a colocar em perspectivas os eventos do passado e presente, numa
inquietante e inusitada autoanálise.
Junte-se a isso outras duas
personagens que me parecem centrais na trama: a mãe de Eliete e a já citada
avó. Trata-se de três gerações de mulheres que vivem conflitos distintos e são
completamente descaracterizadas uma das outras, como se a consanguinidade não
fosse algo suficiente para angariar semelhanças.
E apesar de todo esse cenário
banal da vida humana, a narrativa de Dulce Maria Cardoso não deve ser
subestimada. Aqui encontramos na voz da personagem principal que narra a
história, reflexões ricas, alguns fluxos de consciências e o encontro com
aspectos que nos parecem óbvios, mas que de alguma forma, não gostamos ou não
sabemos verbalizar.
A personagem então vai em busca de sentido, de significado, e como nos é mais típico, procura isso de modo descabido e um pouco desesperado. Ela cria uma conta falsa num aplicativo de encontros amorosos, estabelecendo relações efêmeras advindas das redes sociais de internet, tão comuns na atual modernidade. E através do olhar de sua protagonista, Dulce Maria vai nos aproximando das crises contemporâneas e a complexidade de se sustentar uma vida pública e outra privada.
No livro do Apocalipse da Bíblia, há um agouro sobre Deus que alega: “porque não és quente nem frio, ei de vomitar-te”. Ou seja, uma vida morna e cheia de banalidade é algo categoricamente desprezado pelo criador. Mas no caso deste Eliete: A Vida Normal, aquilo que seria desinteressante é justamente o que há de mais sedutor: a nossa própria identificação perante a contraditória e inescapável banalidade. É um retrato íntimo, pessoal e ao mesmo tempo coletivo, que exibe gerações diferentes de mulheres em conflito constante. Eliete é o reflexo do enfado por uma vida que se realizou na precisão que se buscava, e desse ponto em diante, busca-se desesperadamente uma outra forma de experimentação.
NOTA: 8,7