sábado, 20 de novembro de 2021

CRÔNICA - O ÔNIBUS

O destino geral todos conhecem ou desconfiam. O destino individual ninguém sabe, à menos que este mesmo indivíduo esteja caracterizado. Alguns mudam de rota, outros desistem, não raro alguém desce imediatamente após embarcar, certamente esqueceu algo importante. Há aqueles cujo intento foi modificado durante o trajeto, influenciados que foram por outros usuários. Mas independente do lugar para onde estejam indo, que todos sejam reconhecidos por sua nomenclatura correta: eles são passageiros.

A preocupação com a definição se deve ao fato de que eles não desejam permanecer para sempre no interior do veículo. Passageiro é um termo direto que reconhece a todos como indivíduos submetidos a um procedimento transitório; que nada acontece no mundo enquanto estiverem ali, dentro da caixa metálica, sendo transportados de um espaço para outro. Ali é o intervalo da vida, nada acontece dentro do veículo e nunca alguém buscou seus serviços por estar com saudade daquele sacolejo constante, daquele sobe e desce de gente estranha. Eis um aglomerado humano onde todos buscam a mesma coisa: o destino.

O ônibus é o neutro em movimento.

O cinema já explorou à exaustão o tema da máquina do tempo. Comumente, trata-se de uma cabine hermética, cujo usuário é transportado para determinado lugar do passado, inserindo suas coordenadas temporais num painel cheio de botões. Pois bem, agora imagine se um ônibus coletivo não tivesse janelas e as imediações do motorista fossem impedidas aos passageiros, como acontece nas cabines dos aviões comerciais. Ou seja, nestas condições estaríamos presos dentro de uma caixa sem saber o que está acontecendo do lado de fora, e somente reestabeleceríamos o contato com o mundo quando chegasse o momento de desembarcar. Sabe aquela sensação estranha quando saímos de um elevador? De repente, adentramos uma caixa metálica posicionada no térreo de um edifício, então, magicamente essa caixa se abre e sentimos vertigem por conta da repentina visão de uma cidade há quilômetros de profundidade. Saímos de um mundo, aparecemos noutro. Assim deve ser a sensação de se viajar numa máquina do tempo...

Pois um ônibus sem janelas seria como um elevador; usuários conspirariam a possibilidade de que o trajeto não existe; que o ônibus simplesmente se teletransporta de um lugar para o outro. Afinal, o passageiro só conhece o ponto de embarque/desembarque e o interior da máquina. Ninguém sabe como é ou como funciona o poço de um elevador.

Mas as janelas dos ônibus nos permitem o testemunho do trajeto, muitas vezes até proporcionam a apreciação de uma bela paisagem. É através das janelas que sabemos identificar nosso destino, e o instante preciso de puxar a cordinha. Da janela somos todos isentos, observando o mundo continuar sem nós por algum tempo. Vez ou outra, paira a noção de que talvez não seja tão ruim assim estar dentro do ônibus, afinal, do lado de fora está sempre acontecendo um instante de estresse, uma briga no trânsito, um acidente. Abençoado ônibus que nos ofereceu a condição de expectadores da vida ordinária. Quem está dentro do ônibus não tem nada a ver com o mundo lá fora.

Mas e esses passageiros, quem são? De onde aparece tanta gente?

Sei que vai parecer estranho a comparação, mas os humanos são meio que como baratas: estão em toda parte, surgem do nada e a gente nunca sabe de onde aquela criatura veio. Talvez Franz Kafka compreendesse o que quero dizer, afinal, o escritor foi ao limite do absurdo em sua comparação do ser humano com um inseto.

Enfim, este distinto e corrosivo ser andante vai surgindo de vários pontos e todos se reúnem em específico local, à margem de uma rua. Todos espremidos na calçada, entediados pela repetição do ato, quase não se falam. Olham para o chão, verificam o celular, fones nos ouvidos, um ou outro comenta sobre o tempo maluco. A espera faz os minutos parecerem horas. Então, irrompe no horizonte o caixote retangular de rodas, que estaciona diante do aglomerado humano e todos desaparecem da calçada.

Encontram-se agora espremidos em seu interior, entediados pela repetição do ato, quase não se falam. Olham para a janela, verificam o celular, fones nos ouvidos, um ou outro fala sobre o tempo maluco, talvez o mesmo sujeito que o fez lá na calçada há pouco. Por que essas pessoas resolveram sair de suas casas ao mesmo tempo? É tanta gente junta que quase não cabe no ônibus, elas se encolhem para entrar, penduram-se na porta, corpos imprensados, compartilhando calor, suor, fluídos salivares, bactérias..., um verdadeiro enlatado humano.

Gente branca, preta, amarela, marrom, cinza. Vestem todo tipo de indumentária, jeans, malha, moletom, manga longa, manga curta, short, bermuda, saia, vestido, macacão, uniforme, terno e gravata. Mochilas, bolsas, sacolas de supermercado, sacola de loja de utilidades em geral, sacolas plásticas, sacolas de papel, bolsa de viagem, bolsa tiracolo, chapéu, boné, tiara, pregadeira, caneta prendendo os cabelos na cabeça..., cabelos pretos, loiros, ruivos, encaracolados, crespos, compridos, curtos, grisalhos, cabeças sem nenhum cabelo... Dezenas e dezenas de cabeças reunidas.

De repente, um inesperado buraco e as rodas sofrem o impacto, um tranco fugaz e todos os ombros chacoalham ao mesmo tempo. Logo depois, uma freada brusca, e a pressão exercida pela frenagem faz aquelas muitas cabeças reverenciarem em sincronia. Alguém se levanta e sai amassando e sendo amassado por outros corpos, puxa a cordinha, o busão, que estava em movimento, diminui até parar. Lá fora, outro grupo de pessoas juntas na margem da pista. Humanos trocam olhares, descem dois, entram quatro. As portas se fecham com dificuldade, a lata gigante de sardinha dá seta para retomar o percurso. Alguém puxa a cordinha de novo, mas o condutor não tem paciência, ainda tem muito chão pela frente, não há tempo a perder.

Peraê, motor!

O ônibus espera um pouco mais. Alguém está bloqueado no emaranhado de corpos. Ele puxa, estica, aperta, empurra, chuta, pisa e é pisado, busca mais um espacinho, vai lutando por cada centímetro em direção à porta de saída.

Do lado de fora, o outro aglomerado de humanos observa a caixa de metal carregada de gente, e acha aquele cenário natural; aguardam avidamente pela chegada de seu ônibus, todos juntinhos, entediados pela repetição do ato, quase não se falam, olham para aquela caixa parada que não lhes serve, depois voltam a verificar o celular, fones nos ouvidos, alguém comenta sobre o calor infernal..., os de fora invejam a sorte dos de dentro, porque já estão no caminho de seus destinos. Os de dentro anseiam a liberdade dos de fora, porque eles respiram ar limpo, possuem distanciamento decente e correm menos riscos de infecções respiratórias. Os de fora têm uma visão do futuro que os esperam ao contemplar os de dentro, enquanto os de dentro reveem o próprio passado recente ao observar os de fora.

Uma mulher audaciosa consegue entrar, ela veio correndo, surgiu não se sabe de onde, exatamente como são as baratas. Dá alguns socos na porta do ônibus e então a mesma se abre. Vitoriosa, espreme-se até a roleta, recebe e devolve ofensas com o trocador porque só tinha uma nota de cinquenta e é difícil trocar uma nota de cinquenta. Trocadores odeiam notas de cinquenta, mais até do que as de cem, pois na crise atual estas são raras. Todos acompanham o bate-boca sem se alterarem, afinal, isso acontece todo dia.

E como num milagre da urbanização, a mulher consegue um lugar para estacionar sua massa orgânica entre o emaranhado de corpos. A expressão de ódio por conta da recente discussão se desfazendo, aos poucos, até virar tédio e ela se transforma em parte do cenário. Então ela olha pela janela, depois verifica o celular, põe os fones de ouvidos, um cara ao lado comenta que esse calorão só pode ser chuva mais tarde...

sábado, 13 de novembro de 2021

RESENHA DE LIVRO – DESAMPARO

Encontrei este DESAMPARO em promoção num Sebo. A capa com o rosto de uma mulher me soou familiar (meses depois descobri a fonte desta impressão: é que já tinha visto o livro na estante de minha esposa), li a sinopse rapidinho e decidi acrescentá-lo a minha pilha de compras, tipicamente esse é o tipo de aquisição para se conhecer novos autores. E como foi gratificante saber que a autora é portuguesa. Tive certeza de que estava adquirindo coisa boa. A literatura lusitana tem muita gente boa, e Inês Pedrosa apenas surgiu para validar essa opinião.

A trama deste romance contemporâneo gira em torno da personagem Jacinta, mulher nascida em Portugal, porém, veio para o Brasil muito jovem, ela retorna ao país de origem meio século depois para conhecer a genitora da qual foi arrancada muito cedo. Jacinta é como o ponto de origem para explicar muitos outros personagens, todavia, ela segue como figura central, mesmo em capítulos em que pouco dela nos é apresentado, mesmo assim, sua essência permanece circundando toda a leitura.

O reencontro acontece numa pequena aldeia, onde ela se estabelece em definitivo porque precisa cuidar da mãe. Neste ínterim, o livro alterna para outros capítulos em que nos são apresentados novos personagens, alguns mais interessantes do que outros, sendo o mais complexo e meu favorito, Raul, que em determinado instante também se encontra instalado em Portugal para cuidar de sua mãe, Jacinta, exatamente como ela houvera feito antes, num ciclo altruísta no cerne daquela família.

Raul é figura singular, carrega problemas existenciais, tem conflitos familiares com seus irmãos desgarrados, é consciente de suas limitações de uma forma quase lamentável, sente-se fracassado na profissão e no amor. Este personagem, juntamente com Jacinta, são os pontos mais altos da trama.

O livro resvala num segmento introspectivo, quase um fluxo de consciência, mas o mergulho não desce tão fundo em tais reflexões idiossincráticas, ficando mais próximo do verniz; de uma prosa deliciosa, engraçada, triste e muitas vezes carregada de análises conflitantes, de personagens tomados demais dessa natureza humana cheia de inconstâncias.

Mas apesar de instigar, é justamente aqui que o livro resvala num problema.

Muitos personagens inseridos comprometeram aquilo que seria este mergulho mais fundo na leitura da alma humana. Talvez Inês tenha exagerado na dose, despejou demais os tipos diferentes que nos são apresentados, e terminamos por conhecer bem menos do que gostaríamos de cada um deles..., uma pena.

De qualquer forma, é um livro gostoso de se ler, fluído e crível, onde o desamparo do título paira o tempo inteiro ao redor de seus envolvidos, porém, deixou-me com a sensação de que faltou arrancar camadas de seus personagens, o que talvez fosse possível, caso a trama tivesse se concentrado em um ou dois indivíduos. Opinião à parte, esta obra é mais um acréscimo que eleva minha admiração pela literatura portuguesa, Inês Pedrosa é mais uma autora que passarei a procurar avidamente.

NOTA: 7,7