– Oi, eu posso me sentar do
seu lado? As outras mesas estão cheias.
– Pode. – só deixei porque
eu já havia terminado de comer. Qualquer tipo de alimento perde totalmente o
gosto quando se está comendo sob os olhares de um estranho.
Vasculhei ao redor e vi que
era mentira. Havia outros lugares disponíveis, alguns até na companhia de gente
mais agradável do que eu. Restou-me a perspicácia de tentar desvendar os
motivos que o levaram a querer se sentar do meu lado.
Ele era velho. Pelo menos
uns cinquenta anos. Poucos fios lhe restavam na cabeça, a maioria ladeando seu
expressivo cocuruto. O rosto arredondado como um balão de festas; a barba
grisalha e mal distribuída; os olhos pequenos e sôfregos, cercados por
cavidades negras... O queixo movia-se pra frente quando ele mastigava.
Estava comendo um desses
sanduíches enormes e coloridos com tantos ingredientes que um sabor acaba
anulando o outro. Usava uma camisa de uniforme azul claro; no pescoço pendia um
crachá onde pude ler o seu nome.
Baltazar.
O sobrenome continha cinco
letras e apenas uma vogal. Era simplesmente impronunciável.
Muito delicadamente ele
retirava alguma coisa que não gostava no lanche. Usando as pontas dos dedos
como se fossem pinças, ele pescava o objeto indesejado e o deixava na bandeja.
Não devia ser um homem
sedentário, pois tinha braços musculosos, ambos abertos feitos asas para melhor
envolver o pobre sanduiche. Mordia com tamanha fúria, que cheguei a temer ele
se enganar e arrancar um de seus dedos. O corpo aparentemente atlético não
condizia nem um pouco com a idade avançada. Era o rosto cansado que lhe traía.
Não sei explicar as razões,
mas eu fiquei o tempo inteiro olhando para ele comer, mesmo já tendo terminado
com minha refeição. Eu fingia estar mexendo no celular e o olhava
cautelosamente, por cima da tela, tentando entender minha inesperada atração
pela repugnância.
– Posso usar a sua maionese?
– perguntou.
– Pode. – Por que diabos eu
sempre cedo a todas as vontades dos outros? Por que me é tão difícil dizer não
para um estranho? Eu estava guardando os sachês de maionese para levar pra
casa, portanto, ele não poderia usar. Mas lá estava eu lhe entregando a
contragosto todos os meus sachês, que ele usou para lambrecar o lanche.
E por cima do telefone eu
testemunhava um sanduíche ser destruído de maneira impiedosa e em pouquíssimos
minutos. Devia se tratar de um consultor e talvez estivesse atrasado. Pra
ajudar a descer o pão pela garganta ele virou um copo duplo de Coca-Cola.
Verificou ao redor e constatou que não tinha pegado guardanapos, então usou as
costas da mão para limpar a boca. Por um instante eu cheguei a pensar que ele
fosse arrotar bem na minha cara.
Se ele estava me olhando de
canto de olho, não deixou que eu visse. Na verdade não parecia nem um pouco
interessado em mim. Enquanto havia um lanche em sua frente ele não fez
cerimônias. E após descê-lo goela abaixo, ficou a olhar distraidamente para o
cenário ao redor, como quem está desconectado com este mundo.
Outra vez tomada pela dúvida,
eu não conseguia compreender qual era a daquele coroa. Se estivesse tentando
uma aproximação furtiva, a estratégia esbarrou em sua incorrigível timidez. Se
só procurava um lugar sossegado para lanchar, este era absurdamente desatento
ou dotado de percepção elevada ao identificar que eu seria a pessoa a lhe
arranjar mais maionese.
Ele fez movimentos estranhos
com o pescoço. Ameaçou se levantar duas vezes e desistiu por alguma razão. Verificou
algo no celular, afrouxou a gola da camisa por conta do calor, depois ameaçou
uma terceira levantada.
Acho que exagerei no meu
comportamento conspícuo. Porque o coroa estava em vias de ir embora sem sequer
ter me notado. Sei que não sou uma mulher do tipo que faz o trânsito parar, mas
eu sei que notam minha beleza quando conversam comigo.
Talvez tivesse sido legal
conversar com aquele sujeito estranho.
Mas acho que definitivamente
as coisas não são como nos filmes, porque se assim o fosse, ele teria usado seu
charme e puxado um papo inteligente comigo. Eu lhe daria um sorriso discreto e
iniciaríamos uma conversa sofisticada e sedutora. Marcaríamos outros encontros,
cada vez mais estreitos e invasivos, até o dia em que encontraríamos a virtuosa
intimidade. E vazios da descoberta, nós voltaríamos a ser solitários almoços na
praça de alimentação, lugar em que o maior apetite é despertado pela
diversidade de indivíduos com feições de possibilidade... A possibilidade de um
dia alguém sedutor se sentar ao nosso lado e pedir os sachês de maionese
emprestados.
***
O cheiro do lanche estava
maravilhoso. Achei que seria capaz de devorá-lo com uma só bocada! A praça de
alimentação estava bem cheia, então levei algum tempo até avistar uma moça que
parecia já estar terminando sua refeição.
– Oi, eu posso me sentar do
seu lado? – perguntei, tentando ser o mais discreto possível – As outras mesas
estão cheias.
– Pode. – respondeu ela
friamente.
Não foi nada inesperado, sei
muito bem o tipo de homem que se reflete diante de mim no espelho. As mulheres
costumam ter repulsa de mim no primeiro contato. Tudo bem, eu só precisava
comer rapidinho e voltar ao trabalho.
Fiquei me perguntando o que
eu diria praquela moça se ela fosse minha próxima cliente? Deixe-me ver: seus
cabelos estavam presos num coque e as unhas não tinham esmalte, o que significava
que era uma mulher que gostava de praticidade. Possuía o dom da curiosidade,
pois desde que me sentei ela não parou de me olhar. Ficava despistando com o
telefone na mão, mas eu sabia que ela me olhava. E por falar nisso, seus olhos
estavam muito maquiados com sombra escura, condição que não contribuía para o seu
disfarce de garota resolvida. Devia ter em torno de vinte e cinco, mas eu achei
que isso era intencional, ela usava roupas que a fazia parecer mais velha...
Talvez tivesse uns dezenove. O nariz era afinado e os lábios compridos. Apesar
de enrustida, era uma bela jovem de pele amarronzada.
Enquanto eu dava mordidas
monstruosas no pão, pairavam em minha mente quais seriam as possibilidades caso
eu quisesse convencer a minha acompanhante de mesa a fazer um plano de saúde. Concluí
que não deveria ser muito difícil, apesar de achá-la jovem demais. Talvez
sugerir algo dessa natureza para alguém que quer se parecer mais velho,
certamente atiçaria seu interesse, porque as pessoas não costumam oferecer
planos de saúde para gente nova... Jovens acham que são imortais.
Meu público alvo são os
velhos! Estes sim apreciam qualquer negócio que os façam pensar que estão
barganhando com a morte; os velhos sabem de seus limites existenciais e do
tempo curto que lhes restam. E eu vendia o serviço que poderia assegurar sua
estadia no mundo por mais algum tempo.
Passei o olhar rapidamente
sobre ela e vi que seus olhos estavam concentrados na altura da gola da minha camisa,
tentando ler o nome no crachá... Gosto de almoçar com o crachá porque isso facilita
na hora de tentar proximidade.
Eu teria encarado
diretamente nos seus olhos, mas isso pareceria deselegante demais pra alguém
que só está dividindo a mesa de refeição. Mulheres não são nem um pouco
ariscas, mas fazem de tudo para se parecerem assim.
Meu lanche estava seco
demais. Ou isto, ou era eu que estava engolindo muito depressa. De qualquer
forma, isso me deu uma ideia de aproximação. Ela não me parecia ser alguém
muito inteligente, então talvez com uma bem elaborada abordagem eu conseguisse
iniciar uma conversa que terminasse com outra assinatura pra ajudar a bater a
meta do dia.
– Posso usar a sua maionese? –
junto com a indagação expus um sorriso amigável, já armado para dar
continuidade ao papo.
– Pode.
De maneira desajeitada, ela
pegou todas as maioneses e colocou diante da minha bandeja. Imaginei que fosse
me dar só uma ou duas, mas ela colocou todos os sachês ao meu dispor. Em
seguida, tentou arrumar atrás da orelha um fio rebelde que se desprendeu do
coque. O olhar se movendo muito rápido por todos os lados, como quem anseia por
uma fuga.
Definitivamente ela era muito
acanhada com estranhos. Talvez fosse casada, apesar de não ter nenhum anel em
seus dedos. Voltou para a tela do celular, mas era nítido o desinteresse no
objeto; ela estava usando o aparelho como escudo para se proteger de mim.
Por que ela não foi embora?
Afinal, já havia terminado sua refeição há tempos.
Como manda a cartilha do bom
vendedor, eu sei que devo evitar comportamentos que denotem minha audácia. Os caras
que mais enriquecem no meu ramo sabem conduzir aproximação furtiva com
requintes de desvelo. É preciso caçar feito um felino na minha profissão; saber
encontrar o local certo para espreitar; esperar pacientemente o momento mais
oportuno; dar o bote certeiro para que não haja desperdício de energia.
Um tigre sabe exatamente o
que fazer quando está diante de uma suculenta gazela, mas eu não sei... Sou espécie
treinada para morder, mas não possuo dentes. Então terminamos nossas refeições,
mudos, de braços abanando, cientes da inconsonância da alma: a dela a olhar
para as demais com elevada cautela; enquanto a minha só enxerga outros dos seus
como se fossem meras mercadorias.