quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

CONTO: INCONSONÂNCIA


– Oi, eu posso me sentar do seu lado? As outras mesas estão cheias.

– Pode. – só deixei porque eu já havia terminado de comer. Qualquer tipo de alimento perde totalmente o gosto quando se está comendo sob os olhares de um estranho.

Vasculhei ao redor e vi que era mentira. Havia outros lugares disponíveis, alguns até na companhia de gente mais agradável do que eu. Restou-me a perspicácia de tentar desvendar os motivos que o levaram a querer se sentar do meu lado.

Ele era velho. Pelo menos uns cinquenta anos. Poucos fios lhe restavam na cabeça, a maioria ladeando seu expressivo cocuruto. O rosto arredondado como um balão de festas; a barba grisalha e mal distribuída; os olhos pequenos e sôfregos, cercados por cavidades negras... O queixo movia-se pra frente quando ele mastigava.

Estava comendo um desses sanduíches enormes e coloridos com tantos ingredientes que um sabor acaba anulando o outro. Usava uma camisa de uniforme azul claro; no pescoço pendia um crachá onde pude ler o seu nome.

Baltazar.

O sobrenome continha cinco letras e apenas uma vogal. Era simplesmente impronunciável.
Muito delicadamente ele retirava alguma coisa que não gostava no lanche. Usando as pontas dos dedos como se fossem pinças, ele pescava o objeto indesejado e o deixava na bandeja.

Não devia ser um homem sedentário, pois tinha braços musculosos, ambos abertos feitos asas para melhor envolver o pobre sanduiche. Mordia com tamanha fúria, que cheguei a temer ele se enganar e arrancar um de seus dedos. O corpo aparentemente atlético não condizia nem um pouco com a idade avançada. Era o rosto cansado que lhe traía.

Não sei explicar as razões, mas eu fiquei o tempo inteiro olhando para ele comer, mesmo já tendo terminado com minha refeição. Eu fingia estar mexendo no celular e o olhava cautelosamente, por cima da tela, tentando entender minha inesperada atração pela repugnância.

– Posso usar a sua maionese? – perguntou.

– Pode. – Por que diabos eu sempre cedo a todas as vontades dos outros? Por que me é tão difícil dizer não para um estranho? Eu estava guardando os sachês de maionese para levar pra casa, portanto, ele não poderia usar. Mas lá estava eu lhe entregando a contragosto todos os meus sachês, que ele usou para lambrecar o lanche.

E por cima do telefone eu testemunhava um sanduíche ser destruído de maneira impiedosa e em pouquíssimos minutos. Devia se tratar de um consultor e talvez estivesse atrasado. Pra ajudar a descer o pão pela garganta ele virou um copo duplo de Coca-Cola. Verificou ao redor e constatou que não tinha pegado guardanapos, então usou as costas da mão para limpar a boca. Por um instante eu cheguei a pensar que ele fosse arrotar bem na minha cara.

Se ele estava me olhando de canto de olho, não deixou que eu visse. Na verdade não parecia nem um pouco interessado em mim. Enquanto havia um lanche em sua frente ele não fez cerimônias. E após descê-lo goela abaixo, ficou a olhar distraidamente para o cenário ao redor, como quem está desconectado com este mundo.

Outra vez tomada pela dúvida, eu não conseguia compreender qual era a daquele coroa. Se estivesse tentando uma aproximação furtiva, a estratégia esbarrou em sua incorrigível timidez. Se só procurava um lugar sossegado para lanchar, este era absurdamente desatento ou dotado de percepção elevada ao identificar que eu seria a pessoa a lhe arranjar mais maionese.

Ele fez movimentos estranhos com o pescoço. Ameaçou se levantar duas vezes e desistiu por alguma razão. Verificou algo no celular, afrouxou a gola da camisa por conta do calor, depois ameaçou uma terceira levantada.

Acho que exagerei no meu comportamento conspícuo. Porque o coroa estava em vias de ir embora sem sequer ter me notado. Sei que não sou uma mulher do tipo que faz o trânsito parar, mas eu sei que notam minha beleza quando conversam comigo.

Talvez tivesse sido legal conversar com aquele sujeito estranho.

Mas acho que definitivamente as coisas não são como nos filmes, porque se assim o fosse, ele teria usado seu charme e puxado um papo inteligente comigo. Eu lhe daria um sorriso discreto e iniciaríamos uma conversa sofisticada e sedutora. Marcaríamos outros encontros, cada vez mais estreitos e invasivos, até o dia em que encontraríamos a virtuosa intimidade. E vazios da descoberta, nós voltaríamos a ser solitários almoços na praça de alimentação, lugar em que o maior apetite é despertado pela diversidade de indivíduos com feições de possibilidade... A possibilidade de um dia alguém sedutor se sentar ao nosso lado e pedir os sachês de maionese emprestados.

***

O cheiro do lanche estava maravilhoso. Achei que seria capaz de devorá-lo com uma só bocada! A praça de alimentação estava bem cheia, então levei algum tempo até avistar uma moça que parecia já estar terminando sua refeição.

– Oi, eu posso me sentar do seu lado? – perguntei, tentando ser o mais discreto possível – As outras mesas estão cheias.

– Pode. – respondeu ela friamente.

Não foi nada inesperado, sei muito bem o tipo de homem que se reflete diante de mim no espelho. As mulheres costumam ter repulsa de mim no primeiro contato. Tudo bem, eu só precisava comer rapidinho e voltar ao trabalho.

Fiquei me perguntando o que eu diria praquela moça se ela fosse minha próxima cliente? Deixe-me ver: seus cabelos estavam presos num coque e as unhas não tinham esmalte, o que significava que era uma mulher que gostava de praticidade. Possuía o dom da curiosidade, pois desde que me sentei ela não parou de me olhar. Ficava despistando com o telefone na mão, mas eu sabia que ela me olhava. E por falar nisso, seus olhos estavam muito maquiados com sombra escura, condição que não contribuía para o seu disfarce de garota resolvida. Devia ter em torno de vinte e cinco, mas eu achei que isso era intencional, ela usava roupas que a fazia parecer mais velha... Talvez tivesse uns dezenove. O nariz era afinado e os lábios compridos. Apesar de enrustida, era uma bela jovem de pele amarronzada.

Enquanto eu dava mordidas monstruosas no pão, pairavam em minha mente quais seriam as possibilidades caso eu quisesse convencer a minha acompanhante de mesa a fazer um plano de saúde. Concluí que não deveria ser muito difícil, apesar de achá-la jovem demais. Talvez sugerir algo dessa natureza para alguém que quer se parecer mais velho, certamente atiçaria seu interesse, porque as pessoas não costumam oferecer planos de saúde para gente nova... Jovens acham que são imortais.

Meu público alvo são os velhos! Estes sim apreciam qualquer negócio que os façam pensar que estão barganhando com a morte; os velhos sabem de seus limites existenciais e do tempo curto que lhes restam. E eu vendia o serviço que poderia assegurar sua estadia no mundo por mais algum tempo.

Passei o olhar rapidamente sobre ela e vi que seus olhos estavam concentrados na altura da gola da minha camisa, tentando ler o nome no crachá... Gosto de almoçar com o crachá porque isso facilita na hora de tentar proximidade.

Eu teria encarado diretamente nos seus olhos, mas isso pareceria deselegante demais pra alguém que só está dividindo a mesa de refeição. Mulheres não são nem um pouco ariscas, mas fazem de tudo para se parecerem assim.

Meu lanche estava seco demais. Ou isto, ou era eu que estava engolindo muito depressa. De qualquer forma, isso me deu uma ideia de aproximação. Ela não me parecia ser alguém muito inteligente, então talvez com uma bem elaborada abordagem eu conseguisse iniciar uma conversa que terminasse com outra assinatura pra ajudar a bater a meta do dia.

– Posso usar a sua maionese? – junto com a indagação expus um sorriso amigável, já armado para dar continuidade ao papo.

– Pode.

De maneira desajeitada, ela pegou todas as maioneses e colocou diante da minha bandeja. Imaginei que fosse me dar só uma ou duas, mas ela colocou todos os sachês ao meu dispor. Em seguida, tentou arrumar atrás da orelha um fio rebelde que se desprendeu do coque. O olhar se movendo muito rápido por todos os lados, como quem anseia por uma fuga.

Definitivamente ela era muito acanhada com estranhos. Talvez fosse casada, apesar de não ter nenhum anel em seus dedos. Voltou para a tela do celular, mas era nítido o desinteresse no objeto; ela estava usando o aparelho como escudo para se proteger de mim.

Por que ela não foi embora? Afinal, já havia terminado sua refeição há tempos.

Como manda a cartilha do bom vendedor, eu sei que devo evitar comportamentos que denotem minha audácia. Os caras que mais enriquecem no meu ramo sabem conduzir aproximação furtiva com requintes de desvelo. É preciso caçar feito um felino na minha profissão; saber encontrar o local certo para espreitar; esperar pacientemente o momento mais oportuno; dar o bote certeiro para que não haja desperdício de energia.

Um tigre sabe exatamente o que fazer quando está diante de uma suculenta gazela, mas eu não sei... Sou espécie treinada para morder, mas não possuo dentes. Então terminamos nossas refeições, mudos, de braços abanando, cientes da inconsonância da alma: a dela a olhar para as demais com elevada cautela; enquanto a minha só enxerga outros dos seus como se fossem meras mercadorias.

Ali naquela mesa tornamo-nos a escassez um do outro; a comprovação existencial de nossa própria precariedade. Isso causa desconforto... Sim, foi neste instante de renúncia que juntos, eu e ela, nos levantamos, cada um de um lado da mesa, e fomos embora, em direções opostas. Porque talvez mais difícil do que vender planos de saúde, seja promover a nossa própria existência...