Falar de um mundo onde os livros foram extintos da humanidade por meio de um projeto estatal de destituição social, imediatamente atraiu meu interesse, assim como a vontade de deixar alguns parágrafos aqui sobre o assunto. Na sociedade imaginada pelo escritor norte americano Ray Bradbury, os livros são considerados uma ameaça; uma plataforma que deve ser destruída em prol da manutenção da ignorância coletiva. Neste FAHRENHEIT 451 o ser humano está inserido numa organização social avançada tecnologicamente e de imbecilização generalizada, tornada massa de manobra incapaz de senso crítico..., e infelizmente a semelhança com nossa realidade atual, por enquanto menos trágica do que no livro, facilmente será notada pelo leitor.
A personagem
principal da trama é o bombeiro Guy Montag, cuja função da instituição foi
invertida; aqui os bombeiros não mais zelam pela segurança da sociedade, mas
fazem o trabalho de invadir e queimar livros que são encontrados nas casas de
alguns transgressores, como uma espécie de polícia fiscalizadora. Porém, a
rotina do bombeiro é quebrada quando ele conhece sua nova vizinha, Clarisse
McClellan, moça completamente distinta do modelo padrão alienado, ambos
estabelecem alguns poucos diálogos, mas que são suficientes para atormentar a
mente de Guy, tornando-o um crítico de seu próprio labor.
O autor prefere
seguir uma linha narrativa totalmente pessoal, passamos toda a leitura
vislumbrando apenas aquilo que Guy enxerga do mundo. Não há aqui explanações
sobre como aquela constituição social se fez, nem as complexidades ocasionadas
por um mundo de gente vivendo feito zumbis. Bradbury opta por uma visão menos
didática, faz com que aprendamos sobre seu universo através do que está
ocorrendo com suas personagens, quase uma leitura em primeira pessoa.
Conforme
interage com a vizinha, Guy percebe a discrepância relacional existente na
interação com Clarisse e quando está com sua esposa, por exemplo. O bombeiro
vislumbra o modo desprendido, interessado, questionador e autêntico da vizinha,
enquanto a esposa é o arquétipo perfeito do resto da sociedade: uma mulher
superficial e insossa, cuja existência é inteiramente voltada para o
entretenimento tecnológico.
O filósofo
Ortega y Gasset escreveu: “vivemos num
tempo de chantagem universal, que toma duas formas complementares de escárnio:
a chantagem da violência e a chantagem do entretenimento. Uma e outra servem
sempre para a mesma coisa: manter o homem simples longe do centro dos
acontecimentos”. A chantagem do entretenimento citada pelo pensador é o
principal elemento usado na alienação coletiva aqui; por meio das muitas
distrações tecnológicas os cidadãos deixaram de ser criaturas reflexivas, não
mais notam o ambiente no qual estão inseridos..., perderam as características
que lhes eram mais naturais: empatia, gentileza e socialização. Então, quando a
chantagem do entretenimento deixa de funcionar, entra a chantagem da violência
e a ordem das coisas se restabelece... Eis a maior semelhança com o nosso mundo
atual.
Logo ao iniciar
a leitura, percebe-se que o universo distópico criado pelo autor já está
internalizado na sociedade; a proliferação de uma humanidade alienada se mostra
irredutível e o trabalho dos bombeiros como rotina, sendo eles os responsáveis
por expurgar os resquícios que ficaram soltos após a massificação da
ignorância. As lacunas devem ser fechadas para que o sistema de mediocridade e
cegueira se mantenha intacto. Quem são os arquitetos desse sistema? Ray
Bradbury não nos conta, embora a ambientação narrativa faça o trabalho de
fornecer ao leitor um vislumbre do que aconteceu com a sociedade.
Outros autores
também se aventuraram a narrar esse tipo de contenção da humanidade. Saramago
com seu Ensaio Sobre a Cegueira nos mostra uma sociedade cuja cegueira vai
muito além da ausência da visão, mas aponta os prejuízos causados pela falta de
um olhar crítico sobre a sociedade e da necessidade de zelo daqueles que podem ver.
George Orwell, com uma trama mais parecida com a de Bradbury, nos entregou 1984
e seu olhar distópico de um mundo tomado pelo totalitarismo nos moldes
fascistas. Temos também Aldous Huxley com o aclamado Admirável Mundo Novo e uma
sociedade futurista, cujos habitantes são condicionados biológica e
psicologicamente a viverem em harmonia com as leis sociais estabelecidas. O que
difere a obra de Bradbury de todas as demais citadas é que aqui não há a
preocupação em esmiuçar as origens daquela organização social, nem fazer
reflexões acerca das problemáticas ocasionada pela mesma. No universo de FAHRENHEIT
451 o leitor é atirado sem nenhuma cerimônia e vamos aprendendo sobre
aquela sociedade através das experiências e diálogos de suas personagens.
Particularmente, este modo de condução não me incomodou, mas pode desagradar
alguns leitores.
Mais me incomodou foi a escassa presença da personagem Clarisse, que encanta logo que aparece, mas é rapidamente retirada da trama. Também achei pouco aproveitado o comandante dos bombeiros Beatty, figura visivelmente estereotipada do vilão casca dura e ao mesmo tempo intelectualizado; ambas as personagens poderiam ter sido melhor aproveitados.
FAHRENHEIT 451 é um livro inteligente, de leitura descomplicada, cuja trama de fácil compreensão nos remete ao universo pessimista de Ray Bradbury para nos fazer compreender, entre muitas lições, sobre a importância dos livros, que mesmo num mundo moderno onde a tecnologia seduz e nos rouba atenção, ainda é a maior fonte de sustentação de conhecimento.
NOTA: 7,4