terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

RESENHA DE LIVRO – FAHRENHEIT 451

Falar de um mundo onde os livros foram extintos da humanidade por meio de um projeto estatal de destituição social, imediatamente atraiu meu interesse, assim como a vontade de deixar alguns parágrafos aqui sobre o assunto. Na sociedade imaginada pelo escritor norte americano Ray Bradbury, os livros são considerados uma ameaça; uma plataforma que deve ser destruída em prol da manutenção da ignorância coletiva. Neste FAHRENHEIT 451 o ser humano está inserido numa organização social avançada tecnologicamente e de imbecilização generalizada, tornada massa de manobra incapaz de senso crítico..., e infelizmente a semelhança com nossa realidade atual, por enquanto menos trágica do que no livro, facilmente será notada pelo leitor.

A personagem principal da trama é o bombeiro Guy Montag, cuja função da instituição foi invertida; aqui os bombeiros não mais zelam pela segurança da sociedade, mas fazem o trabalho de invadir e queimar livros que são encontrados nas casas de alguns transgressores, como uma espécie de polícia fiscalizadora. Porém, a rotina do bombeiro é quebrada quando ele conhece sua nova vizinha, Clarisse McClellan, moça completamente distinta do modelo padrão alienado, ambos estabelecem alguns poucos diálogos, mas que são suficientes para atormentar a mente de Guy, tornando-o um crítico de seu próprio labor.

O autor prefere seguir uma linha narrativa totalmente pessoal, passamos toda a leitura vislumbrando apenas aquilo que Guy enxerga do mundo. Não há aqui explanações sobre como aquela constituição social se fez, nem as complexidades ocasionadas por um mundo de gente vivendo feito zumbis. Bradbury opta por uma visão menos didática, faz com que aprendamos sobre seu universo através do que está ocorrendo com suas personagens, quase uma leitura em primeira pessoa.

Conforme interage com a vizinha, Guy percebe a discrepância relacional existente na interação com Clarisse e quando está com sua esposa, por exemplo. O bombeiro vislumbra o modo desprendido, interessado, questionador e autêntico da vizinha, enquanto a esposa é o arquétipo perfeito do resto da sociedade: uma mulher superficial e insossa, cuja existência é inteiramente voltada para o entretenimento tecnológico.

O filósofo Ortega y Gasset escreveu: “vivemos num tempo de chantagem universal, que toma duas formas complementares de escárnio: a chantagem da violência e a chantagem do entretenimento. Uma e outra servem sempre para a mesma coisa: manter o homem simples longe do centro dos acontecimentos”. A chantagem do entretenimento citada pelo pensador é o principal elemento usado na alienação coletiva aqui; por meio das muitas distrações tecnológicas os cidadãos deixaram de ser criaturas reflexivas, não mais notam o ambiente no qual estão inseridos..., perderam as características que lhes eram mais naturais: empatia, gentileza e socialização. Então, quando a chantagem do entretenimento deixa de funcionar, entra a chantagem da violência e a ordem das coisas se restabelece... Eis a maior semelhança com o nosso mundo atual.

Logo ao iniciar a leitura, percebe-se que o universo distópico criado pelo autor já está internalizado na sociedade; a proliferação de uma humanidade alienada se mostra irredutível e o trabalho dos bombeiros como rotina, sendo eles os responsáveis por expurgar os resquícios que ficaram soltos após a massificação da ignorância. As lacunas devem ser fechadas para que o sistema de mediocridade e cegueira se mantenha intacto. Quem são os arquitetos desse sistema? Ray Bradbury não nos conta, embora a ambientação narrativa faça o trabalho de fornecer ao leitor um vislumbre do que aconteceu com a sociedade.

Outros autores também se aventuraram a narrar esse tipo de contenção da humanidade. Saramago com seu Ensaio Sobre a Cegueira nos mostra uma sociedade cuja cegueira vai muito além da ausência da visão, mas aponta os prejuízos causados pela falta de um olhar crítico sobre a sociedade e da necessidade de zelo daqueles que podem ver. George Orwell, com uma trama mais parecida com a de Bradbury, nos entregou 1984 e seu olhar distópico de um mundo tomado pelo totalitarismo nos moldes fascistas. Temos também Aldous Huxley com o aclamado Admirável Mundo Novo e uma sociedade futurista, cujos habitantes são condicionados biológica e psicologicamente a viverem em harmonia com as leis sociais estabelecidas. O que difere a obra de Bradbury de todas as demais citadas é que aqui não há a preocupação em esmiuçar as origens daquela organização social, nem fazer reflexões acerca das problemáticas ocasionada pela mesma. No universo de FAHRENHEIT 451 o leitor é atirado sem nenhuma cerimônia e vamos aprendendo sobre aquela sociedade através das experiências e diálogos de suas personagens. Particularmente, este modo de condução não me incomodou, mas pode desagradar alguns leitores.

Mais me incomodou foi a escassa presença da personagem Clarisse, que encanta logo que aparece, mas é rapidamente retirada da trama. Também achei pouco aproveitado o comandante dos bombeiros Beatty, figura visivelmente estereotipada do vilão casca dura e ao mesmo tempo intelectualizado; ambas as personagens poderiam ter sido melhor aproveitados.

FAHRENHEIT 451 é um livro inteligente, de leitura descomplicada, cuja trama de fácil compreensão nos remete ao universo pessimista de Ray Bradbury para nos fazer compreender, entre muitas lições, sobre a importância dos livros, que mesmo num mundo moderno onde a tecnologia seduz e nos rouba atenção, ainda é a maior fonte de sustentação de conhecimento.

NOTA: 7,4

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

CRÔNICA - DEDO NA GARGANTA

O escritor Caio Fernando Abreu escreveu: “Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é enfiar um dedo na garganta”.

Quando penso nessa ideia, a qual concordo plenamente, trago à tona ponderações sobre todo meu conteúdo nestes quase vinte anos dedicados a escrever. Quais destes textos realmente emergiram de uma erupção interior, tal qual um vômito, pois estavam entalados na garganta e precisavam sair, como numa terapia solitária, somente eu e a tela em branco? E quais foram os textos escritos sem nenhuma ânsia, aqueles que nasceram simplesmente de um amontoado de palavras desalmadas, cujo único intento é elevar o ego deste moroso aprendiz?

Fora do contexto a afirmação do Caio talvez soe confusa; compreender a analogia de se escrever com o ato de introduzir o dedo na goela, parece um pouco abstrato. Na carta composta para um amigo, o escritor ressalta que escrever é o ato de sangrar, machucar por dentro, deixar sair toda loucura interior. E de modo semelhante, para mim, a referência é absolutamente elucidativa e ilumina as sombras, tal como a luz do sol: escrever é botar pra fora toda a angústia presa dentro da gente, e o que sairá talvez seja inominável e muitas vezes pode causar desconforto, desespero, angústia ou mesmo incompreensão. Mas apesar do sentimento ao contemplar o resultado da criação de qualquer coisa, é fatal que ela saiu de dentro! Fragmento estranho, como a gosma escarrada, ao relento, que agora precisa ser trabalhada incessantemente, até se tornar, ao menos, algo plausível..., porém, não necessariamente aceitável.

Concluí que raramente isso acontece comigo. Meus trabalhos quase nada tem de visceral, além do intento honesto de expressar alguma opinião, embora quase sempre inconclusiva. Meus textos são esquecíveis porque sou imensamente racional e ponderado. Raramente permito que a angústia assuma a ponta dos dedos no teclado, porque sou covarde demais para suportar aquilo que sairá após o dedo indicador invadir a boca e tocar a faringe; tenho medo desse conteúdo entalado, então sigo empurrando com goles violentos de cerveja o nó na garganta, para que ele retorne às profundezas nem um pouco seguras de meu ser.

Na carta escrita para José Márcio Penido, Caio revela aquilo que considera como sendo a única motivação justificável para a escrita, num conselho ao amigo sobre como seguir produzindo neste universo pungente de criar. O dedo na garganta não é condição para o alívio, mas o requisito necessário. Sem isso, a construção literária é vazia e desinteressante. Portanto, isso fez com que me perguntasse:

O quão suportável é o vazio desinteressante do que escrevo?

Se é assim como disse o escritor, então porque continuar escrevendo? Por que insistir em algo que compreendo como sendo apenas um monte de parágrafos idiotas que não dizem nada além do óbvio? Talvez eu esteja sendo um pouco severo comigo mesmo, afinal, gosto de escrever e me sinto bem quando o faço, embora confesse que tenho feito cada vez menos, o desprendimento me fazendo crer que estou me distanciando de meu ser, ou numa conclusão, digamos, mais atual: estou me rendendo ao pragmatismo social.

Não é fácil regurgitar o que está entalado na garganta e talvez somente os grandes escritores da nossa história conseguiram realizar tamanha proeza. Contudo, acho que já escrevi o bastante para aceitar que a frivolidade é como a saliva que antecede o grande ato; que talvez a repetição insistente faça com que definitivamente o dedo alcance a profundidade ideal, e então despejarei algo verdadeiramente digno de ser lido.

O sociólogo Zygmunt Bauman resumiu o ato de escrever como algo quase inerente de sua natureza. Ele diz: “parece que sou incapaz de pensar sem escrever. Suponho que antes que escritor, sou leitor: há toda uma série de retalhos, fragmentos e pedaços de ideias que lutam por nascer, cujos fantasmagóricos espectros (aterradores, inclusive) rodopiam, se amontoam, condensam e dissipam uma e outra vez, e que apenas ao serem captados e capturados por nossos olhos, podemos imobilizar, fixar e limitar dentro dos contornos. E devem ser escritos um atrás do outro para que a ideia – arredondada para caber nos mínimos toleráveis – nasça finalmente, ou para que, caso contrário, seja abortada ou – se já chegou morta nesse mundo – enterrada para sempre”.

No filme A Esposa, do diretor Björn Runge, acompanhamos a história de um escritor que, ao ganhar o nobel de literatura, precisa lidar com os ressentimentos do passado, papel belamente interpretado pelo ator Jonathan Pryce, que vive esse instante que deveria ser o ápice da glória literária, mas precisa confrontar com a mediocridade da própria existência ao encarar a verdade de seu sucesso, escondido na figura da esposa do título, interpretada pela maravilhosa Glenn Close. Uma belíssima obra que denota os efeitos do ostracismo, de um homem que foi beneficiado por um mundo essencialmente machista..., esse filme exibe de forma crua, que enquanto ele cuidava da prole e executava as tarefas banais do cotidiano, o dedo na goela estava ocorrendo no seu escritório pela esposa, e os méritos e benefícios ficavam com ele, que assinava todas as obras.

Um filme que mexe, principalmente, mas não somente, com quem se arrisca a mergulhar neste incerto labor de desenvolver a linguagem escrita.

Certa vez, alguém me perguntou como se faz para ganhar dinheiro com a escrita. A primeira coisa que me ocorreu perante tal questionamento, foi a completa hesitação; afinal de contas, eu nunca ganhei dinheiro escrevendo, no máximo recuperei parte do valor investido. Ou seja, como posso ensinar aquilo que não sei como deve ser feito? Além do mais, receio que não seja esse o intuito de quem escreve... Enfim, eu respondi ao meu esperançoso interlocutor, que se a intenção dele era ganhar dinheiro, que existem outras maneiras mais eficazes de se fazer isso; aconselhei que não gastasse seu precioso tempo desenvolvendo uma habilidade que não é garantidora de retorno substancial, tampouco simbólica; que a escrita é quase como uma maldição: é inescapável para alguns, e amplamente opressiva com todos os seus poucos fiéis; que talvez você até aprenda a enganar e encontrar a medida de consumo preferencial dos leitores modernos, o que propriamente seria uma conquista, mas jamais levará o nome de escritor, no máximo, um bom contador de estórias.

E não, isto que acabou de ser relatado aqui, da forma mais tosca possível, não foi o entalo desentalado. Meu dedo continua bem distante da garganta e o nó retornando ao interior, com tragadas incansáveis de álcool, semelhantes aos goles que Edgar Alan Poe ingeriu quando vomitou seu esplêndido O Corvo. Nem de longe quero me comparar a este gênia da literatura, é apenas uma tentativa de desencorajar aqueles que enxergam na escrita, uma alternativa de sucesso nestas incertas trilhas do nosso sistema capitalista.