O escritor Caio Fernando Abreu escreveu: “Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é enfiar um dedo na garganta”.
Quando penso nessa ideia, a
qual concordo plenamente, trago à tona ponderações sobre todo meu conteúdo
nestes quase vinte anos dedicados a escrever. Quais destes textos realmente emergiram
de uma erupção interior, tal qual um vômito, pois estavam entalados na garganta
e precisavam sair, como numa terapia solitária, somente eu e a tela em branco? E
quais foram os textos escritos sem nenhuma ânsia, aqueles que nasceram
simplesmente de um amontoado de palavras desalmadas, cujo único intento é
elevar o ego deste moroso aprendiz?
Fora do contexto a afirmação
do Caio talvez soe confusa; compreender a analogia de se escrever com o ato de
introduzir o dedo na goela, parece um pouco abstrato. Na carta composta para um
amigo, o escritor ressalta que escrever é o ato de sangrar, machucar por
dentro, deixar sair toda loucura interior. E de modo semelhante, para mim, a
referência é absolutamente elucidativa e ilumina as sombras, tal como a luz do
sol: escrever é botar pra fora toda a angústia presa dentro da gente, e o que
sairá talvez seja inominável e muitas vezes pode causar desconforto, desespero,
angústia ou mesmo incompreensão. Mas apesar do sentimento ao contemplar o
resultado da criação de qualquer coisa, é fatal que ela saiu de dentro!
Fragmento estranho, como a gosma escarrada, ao relento, que agora precisa ser
trabalhada incessantemente, até se tornar, ao menos, algo plausível..., porém,
não necessariamente aceitável.
Concluí que raramente isso
acontece comigo. Meus trabalhos quase nada tem de visceral, além do intento
honesto de expressar alguma opinião, embora quase sempre inconclusiva. Meus
textos são esquecíveis porque sou imensamente racional e ponderado. Raramente
permito que a angústia assuma a ponta dos dedos no teclado, porque sou covarde
demais para suportar aquilo que sairá após o dedo indicador invadir a boca e
tocar a faringe; tenho medo desse conteúdo entalado, então sigo empurrando com
goles violentos de cerveja o nó na garganta, para que ele retorne às profundezas
nem um pouco seguras de meu ser.
Na carta escrita para José
Márcio Penido, Caio revela aquilo que considera como sendo a única motivação
justificável para a escrita, num conselho ao amigo sobre como seguir produzindo
neste universo pungente de criar. O dedo na garganta não é condição para o
alívio, mas o requisito necessário. Sem isso, a construção literária é vazia e desinteressante.
Portanto, isso fez com que me perguntasse:
O quão suportável é o vazio
desinteressante do que escrevo?
Se é assim como disse o
escritor, então porque continuar escrevendo? Por que insistir em algo que
compreendo como sendo apenas um monte de parágrafos idiotas que não dizem nada
além do óbvio? Talvez eu esteja sendo um pouco severo comigo mesmo, afinal,
gosto de escrever e me sinto bem quando o faço, embora confesse que tenho feito
cada vez menos, o desprendimento me fazendo crer que estou me distanciando de
meu ser, ou numa conclusão, digamos, mais atual: estou me rendendo ao pragmatismo
social.
Não é fácil regurgitar o que
está entalado na garganta e talvez somente os grandes escritores da nossa
história conseguiram realizar tamanha proeza. Contudo, acho que já escrevi o
bastante para aceitar que a frivolidade é como a saliva que antecede o grande
ato; que talvez a repetição insistente faça com que definitivamente o dedo
alcance a profundidade ideal, e então despejarei algo verdadeiramente digno de
ser lido.
O sociólogo Zygmunt Bauman resumiu
o ato de escrever como algo quase inerente de sua natureza. Ele diz: “parece
que sou incapaz de pensar sem escrever. Suponho que antes que escritor, sou
leitor: há toda uma série de retalhos, fragmentos e pedaços de ideias
que lutam por nascer, cujos fantasmagóricos espectros (aterradores, inclusive)
rodopiam, se amontoam, condensam e dissipam uma e outra vez, e que apenas ao
serem captados e capturados por nossos olhos, podemos imobilizar, fixar e
limitar dentro dos contornos. E devem ser escritos um atrás do outro para que a
ideia – arredondada para caber nos mínimos toleráveis – nasça finalmente, ou
para que, caso contrário, seja abortada ou – se já chegou morta nesse mundo – enterrada
para sempre”.
No filme A Esposa, do diretor
Björn Runge, acompanhamos a história de um escritor que, ao ganhar o nobel de
literatura, precisa lidar com os ressentimentos do passado, papel belamente
interpretado pelo ator Jonathan Pryce, que vive esse instante que deveria ser o
ápice da glória literária, mas precisa confrontar com a mediocridade da própria
existência ao encarar a verdade de seu sucesso, escondido na figura da esposa
do título, interpretada pela maravilhosa Glenn Close. Uma belíssima obra que
denota os efeitos do ostracismo, de um homem que foi beneficiado por um mundo
essencialmente machista..., esse filme exibe de forma crua, que enquanto ele
cuidava da prole e executava as tarefas banais do cotidiano, o dedo na goela
estava ocorrendo no seu escritório pela esposa, e os méritos e benefícios
ficavam com ele, que assinava todas as obras.
Um filme que mexe,
principalmente, mas não somente, com quem se arrisca a mergulhar neste incerto
labor de desenvolver a linguagem escrita.
Certa vez, alguém me perguntou como se faz para ganhar dinheiro com a escrita. A primeira coisa que me ocorreu perante tal questionamento, foi a completa hesitação; afinal de contas, eu nunca ganhei dinheiro escrevendo, no máximo recuperei parte do valor investido. Ou seja, como posso ensinar aquilo que não sei como deve ser feito? Além do mais, receio que não seja esse o intuito de quem escreve... Enfim, eu respondi ao meu esperançoso interlocutor, que se a intenção dele era ganhar dinheiro, que existem outras maneiras mais eficazes de se fazer isso; aconselhei que não gastasse seu precioso tempo desenvolvendo uma habilidade que não é garantidora de retorno substancial, tampouco simbólica; que a escrita é quase como uma maldição: é inescapável para alguns, e amplamente opressiva com todos os seus poucos fiéis; que talvez você até aprenda a enganar e encontrar a medida de consumo preferencial dos leitores modernos, o que propriamente seria uma conquista, mas jamais levará o nome de escritor, no máximo, um bom contador de estórias.
E não, isto que acabou de ser relatado aqui, da forma mais tosca possível, não foi o entalo desentalado. Meu dedo continua bem distante da garganta e o nó retornando ao interior, com tragadas incansáveis de álcool, semelhantes aos goles que Edgar Alan Poe ingeriu quando vomitou seu esplêndido O Corvo. Nem de longe quero me comparar a este gênia da literatura, é apenas uma tentativa de desencorajar aqueles que enxergam na escrita, uma alternativa de sucesso nestas incertas trilhas do nosso sistema capitalista.
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