quinta-feira, 16 de junho de 2022

RESENHA DE LIVRO – O HOMEM DUPLICADO

Penso que a genialidade na literatura do igualmente extraordinário escritor José Saramago, é a de inserir e depois analisar o absurdo na vida cotidiana. O enfado e a melancolia são elementos básicos de seus personagens principais, quando algo excepcionalmente improvável lhes ocorre. O paradoxo narrado aqui é o da reprodução sistemática da individualidade, ou da descoberta alarmante da mesma, que nesta obra remete ao extremo, por isso o absurdo.

O protagonista desta cativante narrativa encontra distração de seu cotidiano maçante quando, ao acatar as insistentes recomendações de um colega para que assista a um filme, descobre que há no elenco cinematográfico, sujeito espantosamente idêntico a si mesmo. Começa-se, então, um jogo crescente de descobrir tudo sobre seu suposto clone. Temos enredado o absurdo dentro do cenário banal.

Tertuliano Máximo Afonso, nossa personagem, percebe o óbvio: que o filme lhe fora indicado justamente porque ele, entre aspas, literalmente atuava no elenco. Afinal, alguém que jamais trocara conhecimento sobre filmes, quando resolve fazer, deve ser por algo incomum visto no mesmo. Seu duplicado está na tela, se parece tanto fisicamente quanto na voz, algo como se olhar diante do espelho E Tertuliano, inevitavelmente, se converte num homem obcecado por compreender e descobrir a respeito de sua cópia viva.

O elemento extraordinário é permanente, sempre sob o ponto de vista do narrador, que parece ganhar entusiasmo conforme aprende que a vida reserva mistérios surpreendentes, como a existência de iguais. A questão da singularidade se perde, porém, nada nos é entregue diretamente, apenas estamos a acompanhar um homem que faz do inusitado tormento, seu novo escopo de vida.

O livro não traz como desembaraço a descoberta do clone. Tertuliano vai ao seu encontro (nenhum spoiler, isso é amplamente secundário), os dois interagem, ocorre a inevitável estupefação bilateral, então pensamentos lhes invadem as mentes; a interação neste momento da obra deixa lacunas soltas, Saramago nos faz acompanhar instantes do suposto clone, o ator do filme. Acompanhamos o que ele pensa sobre o caso, sua mulher intrigada (ela faz uma das melhores análises de toda a narrativa), tanto que reencontros se mostram inevitáveis.

A trama volta para Tertuliano, que relativamente aceitou o fato inusitado de sua cópia idêntica, logo se vê provocado pela mesma, que o procura, agora tão instigado pela inusitada situação, quanto antes Tertuliano se encontrava.

É aqui que se encontra algumas sutis diferenças; o professor de história Tertuliano, apesar de se mostrar intrigado, logo retrocede ao seu lugar comum: o enfado da vida. Contudo, seu clone, que é um ator pouco expressivo de cinema, imbui-se de semelhante desassossego, e passar a procurar seu duplicado, pela igual justificação.

No entanto, Saramago vai nos mostrar que a mesma motivação inicial em ambos os semelhantes, não se sustentam e diferentes aspectos exercem as motivações posteriores de cada protagonista.

Tertuliano quer aprender sobre seu igual, mas parece meramente um ato de genuína curiosidade. Enquanto seu clone, profissional do cinema, casado e aparentemente se tratar de alguém que subsiste sem conflitos existenciais, em determinado ponto da trama, apresenta-se ainda mais estupefato com a descoberta de outro seu, ou na pior das hipóteses, resolve desfrutar de algum benefício desse fato.

Com seu outro isso não ocorre.

Tertuliano Máximo Afonso tem seu nome reproduzido à exaustão, talvez porque seria a única singularidade existencial que lhe restara, ou simplesmente por odiar a única coisa no mundo que constatou não ser duplicada, mas que não teria sido por sua inadequação e repugnância. Aquilo que mais odeia é justamente o que jamais se reproduz no mundo. 

O HOMEM DUPLICADO é uma obra densa e imprevisível, de tema já explorado pela literatura, mas com uma condução um tanto moderna. José Saramago é um eficiente contador de história, que sabe fazer a mente do leitor reproduzir as mesmas questões que certamente pairavam em sua própria, quando resolveu nos contar sobre sua visão da perda da individualidade em seu estado mais extremo.

NOTA: 8,7