Penso que ler seja o
delicioso encontro ente dois universos distintos: a personalidade inserida pelo
autor e o choque com a existência frenética daquele que lê. Cada frase
consumida, cada parágrafo avançado, possui aspectos distintos para cada um de
nós, e a releitura denota a evolução daquilo que, embora seja considerada uma
plataforma fechada em sua estrutura, esta jamais se esgotará.
O
VENTRE é um trabalho estupendo que deve ser degustado devagar,
porque a personagem quer exibir a discrepância de ventres indesejados; quer
relatar a continuidade da solidão irrevelável que somente aqueles que, assim
como ela, também se originaram de ventres equivocados. Uma solidão profunda,
arrasadora, que inevitavelmente nos remete à nossa própria solidão de leitores.
A racionalidade incutida em
José Severo, o protagonista e narrador deste não menos que genial romance do
mestre Carlos Heitor Cony, soa como
sabedoria com requintes de crueldades, porém, sem lugar para autocomiseração.
José Severo reconhece sua natureza deslocada, mas o encara de modo lúcido e
ausente de qualquer percepção de merecimento pelo sofrimento vivido.
O sentimento de inadequação
de Severo é percebido já nas primeiras páginas. Contudo, sem o clamor por
piedade, o narrador apenas segue contando sua mera condição de algo a se
tolerar; sua percepção daquilo que lhe foi fornecido como família parece-nos
algo quase implacável. O bastardo protagonista simplesmente se conforma com sua
condição de despossuído; uma mãe que se esforça por ignorá-lo, um pai que o percebe
como uma ameaça, e o irmão que é notado como se fosse o algoz e que se encaixa
perfeitamente ao outros membros da casa.
E no meio desse descolamento
existencial, ainda há a paixão irrefreável por Helena, o afeto que será sua
noção de impotência condicional, depois o escopo de disputa. Então tornar-se-á
a mulher proibida e, finalmente, outro ventre equivocado.
Carlos
Heitor Cony é um mestre na arte de se fazer suavizar
pela leitura; seus textos inserem-se na mente do leitor e misturam-se à própria
memória. É praticamente impossível não se ver relembrando coisas do nosso
passado. E não existe volta, uma vez invocados os afetos, a leitura se
fragmenta de intervalos necessários. Há aqui uma complacência fundamental pela
personagem, depois o desejo de querer ser este personagem e, por fim,
descobrirmo-nos sendo este personagem.
Em O Ventre predomina no leitor o anseio pelo conhecimento adquirido através
da condição de inadequação; a sabedoria oriunda de um mundo que nos nega tudo. Acredito
que todos nós já nos sentimos desajustado em algum momento. De algum modo,
todos um dia já nos sentimos ventres indesejáveis.
De um ponto de vista
mais pessoal, considerei a voz narrativa tão preenchida de sensibilidade que as
situações se parecem quase lembranças, um tom quase autobiográfico, mas
logicamente, sem sê-lo. E o silêncio necessário que citei há pouco, deve-se ser
invocado em qualquer leitura, mas em especial, nesta deliciosa obra. Pois é
dessa forma que se alcança o verdadeiro seguimento até o imaginado ventre, que
indesejado ou não, é o lugar de silêncio por excelência... Dimensão que
favorece o único ruído permitido quando se está a ler obra tão deliciosa: a
inquietação do próprio ser.
NOTA: 9,1