terça-feira, 25 de junho de 2019

RESENHA DE LIVRO – O VENTRE


Penso que ler seja o delicioso encontro ente dois universos distintos: a personalidade inserida pelo autor e o choque com a existência frenética daquele que lê. Cada frase consumida, cada parágrafo avançado, possui aspectos distintos para cada um de nós, e a releitura denota a evolução daquilo que, embora seja considerada uma plataforma fechada em sua estrutura, esta jamais se esgotará.

O VENTRE é um trabalho estupendo que deve ser degustado devagar, porque a personagem quer exibir a discrepância de ventres indesejados; quer relatar a continuidade da solidão irrevelável que somente aqueles que, assim como ela, também se originaram de ventres equivocados. Uma solidão profunda, arrasadora, que inevitavelmente nos remete à nossa própria solidão de leitores.

A racionalidade incutida em José Severo, o protagonista e narrador deste não menos que genial romance do mestre Carlos Heitor Cony, soa como sabedoria com requintes de crueldades, porém, sem lugar para autocomiseração. José Severo reconhece sua natureza deslocada, mas o encara de modo lúcido e ausente de qualquer percepção de merecimento pelo sofrimento vivido.

O sentimento de inadequação de Severo é percebido já nas primeiras páginas. Contudo, sem o clamor por piedade, o narrador apenas segue contando sua mera condição de algo a se tolerar; sua percepção daquilo que lhe foi fornecido como família parece-nos algo quase implacável. O bastardo protagonista simplesmente se conforma com sua condição de despossuído; uma mãe que se esforça por ignorá-lo, um pai que o percebe como uma ameaça, e o irmão que é notado como se fosse o algoz e que se encaixa perfeitamente ao outros membros da casa.

E no meio desse descolamento existencial, ainda há a paixão irrefreável por Helena, o afeto que será sua noção de impotência condicional, depois o escopo de disputa. Então tornar-se-á a mulher proibida e, finalmente, outro ventre equivocado.

Carlos Heitor Cony é um mestre na arte de se fazer suavizar pela leitura; seus textos inserem-se na mente do leitor e misturam-se à própria memória. É praticamente impossível não se ver relembrando coisas do nosso passado. E não existe volta, uma vez invocados os afetos, a leitura se fragmenta de intervalos necessários. Há aqui uma complacência fundamental pela personagem, depois o desejo de querer ser este personagem e, por fim, descobrirmo-nos sendo este personagem.

Em O Ventre predomina no leitor o anseio pelo conhecimento adquirido através da condição de inadequação; a sabedoria oriunda de um mundo que nos nega tudo. Acredito que todos nós já nos sentimos desajustado em algum momento. De algum modo, todos um dia já nos sentimos ventres indesejáveis.

De um ponto de vista mais pessoal, considerei a voz narrativa tão preenchida de sensibilidade que as situações se parecem quase lembranças, um tom quase autobiográfico, mas logicamente, sem sê-lo. E o silêncio necessário que citei há pouco, deve-se ser invocado em qualquer leitura, mas em especial, nesta deliciosa obra. Pois é dessa forma que se alcança o verdadeiro seguimento até o imaginado ventre, que indesejado ou não, é o lugar de silêncio por excelência... Dimensão que favorece o único ruído permitido quando se está a ler obra tão deliciosa: a inquietação do próprio ser.

NOTA: 9,1

quinta-feira, 20 de junho de 2019

RESENHA DE LIVRO – O ÓCIO CRIATIVO


“O homem que trabalha perde um tempo precioso”.
(proverbio espanhol)

Quem trabalha demais quase não tem tempo para ganhar dinheiro
(dito popular)

Estas duas máximas, contraditórias numa sociedade que idolatra o trabalho, resumem a ideia por trás deste atual e decente volume reflexivo. O ÓCIO CRIATIVO propõe analisar de modo provocativo a sociedade pós-industrial que condena e desvaloriza a criatividade e o tempo livre.

Mesmo em pleno avanço sociológico, a quebra de diversos entraves sociais não acontece facilmente. Alguns temas ainda continuam soando-nos como sagrados; sendo o trabalho um destes. O tabu é abordado sob a perspectiva com que o sociólogo italiano, Domenico De Masi, sugere: o desprendimento do período industrial que adestrou o ser humano ao labor de modo irracional e desnecessário.

A obra foi construída em diálogos. Trata-se de um bate-papo, uma entrevista que De Masi concedeu à Maria Serena Palieri. Ou seja, a temática do ócio aqui será analisada de maneira informal e descontraída, o que deixa a leitura bem mais fluida.

A premissa de uma sociedade majoritariamente estabelecida no ócio, livrando-se finalmente das agruras do expediente exacerbado e sem sentido, parece-nos um lugar belo de se viver na teoria, mas que na prática infelizmente ainda não faz parte do pensamento medieval da classe trabalhadora. Ter um emprego de 44 horas semanais ainda é sinônimo de dignidade e definidora de bom cidadão. E embora todos nós trabalhadores possamos ser dignos e éticos, o atestado para tal parece carecer de uma carteira assinada.

O intento do autor neste ótimo diálogo não é o de incitar o trabalho como um adversário do homem pós-moderno, mas estimular a reflexão sobre os males que a obsessão com a labuta vem causando na humanidade; segundo De Masi é uma enorme contradição que empresas ainda contratem pessoas medíocres e fúteis, simplesmente por seu caráter manipulável; que a criatividade não pode ser exercida em espaço despótico, onde a repetição sem sentido prolifera constante; que a burocratização é um mal progressivo que impede a autonomia inventiva e gera desníveis salariais.

É sabido que este tipo de assunto parece-nos paradoxal neste mundo onde o desemprego prolifera mesmo nas grandes e desenvolvidas metrópoles. Contudo, o autor não se comporta como um utópico apaixonado; de fato, suas ideias invocam o tema do desemprego de modo atual, denotando as mazelas oriundas do sistema capitalista que parece investir demais em ferramentas tecnológicas e de menos no material humano, que segundo De Masi, é o único detentor da possibilidade de criatividade na natureza. Esquecer-se do desenvolvimento humano para se concentrar em máquinas é o que tem gerado crises econômicas e desempregos em proporções astronômicas.

Domenico De Masi é um árduo defensor da economia criativa; espaços que possam unir o trabalho, prazer e criatividade. Menos autoritarismo por parte das instituições públicas e privadas é o que pode proporcionar o livre pensar criativo, que segundo o autor, trata-se de um futuro inevitável; ainda distante do pensamento consumista da civilização, mas ainda assim, inevitável.

NOTA: 8,4

quinta-feira, 13 de junho de 2019

RESENHA DE LIVRO – REMÉDIO AMARGO


A temática proposta neste livro é amplamente rica. O universo da indústria farmacêutica é um espaço em que se é possível extrair inúmeros enredos, principalmente por se tratar de uma área científica que oscila entre a necessidade do desenvolvimento de medicamentos eficientes e o enriquecimento ilícito por conta da proliferação dos mesmos.

REMÉDIO AMARGO é engajado dentro dessa premissa: um laboratório renomado está lançando no mercado um novo produto para mulheres grávidas com a promessa de revolucionar a indústria e salvar a companhia da falência. E embora haja entusiasmo por parte dos colaboradores, paira um enorme medo de que se repita o fracasso de um medicamento similar no passado. No meio disso, acompanhamos a escalada da protagonista principal, Célia Jordan, uma mulher determinada que tenta superar o desafio do machismo no mercado de trabalho da década de 60, e usando de sua irrefreável ambição, galgar o topo da cadeia alimentar.

O autor aqui é o aclamado Arthur Hailey, que dispensa apresentações. Neste trabalho, que foi seu último em vida, temos uma trama muito técnica e cheia de intrigas dentro da temática proposta, mas que derrapa em alguns aspectos... Vamos a eles:

Como eu já mencionei, há aqui uma enorme explanação procedimental a cerca dos bastidores da indústria farmacêutica, o que comprova o engajamento do autor em pesquisar o assunto pretendido por sua obra. No entanto, Arthur Hailey parece mais preocupado com especificidades burocráticas e o funcionamento do sistema, do que propriamente em inserir complexidades éticas na conduta de seus personagens, algo que ajudaria a elevar a dúvida de forma constante na cabeça do leitor. A trama até nos mostra a problemática moral do interesse ganancioso na diretoria da indústria, mas o faz de modo superficial, parece algo unilateral que precisa estar ali, mas que não é isso o que deve ser contado.

O autor aparentemente está mais interessado em promover sua personagem principal. Célia é exaltada aqui de um modo insistente que quase fez da moça uma existência improvável; ela é impetuosa, forte, determinada, bela, altiva, perfeita, possui um instinto infalível de antecipar problemas e os coadjuvantes comportam-se de modo a exaltar isso com exagerada reverência e submissão. Arthur Hailey até chega a tentar inserir imperfeições em Célia, mas o faz de modo tímido e logo retoma os louvores inflamados a cerca de sua musa. Célia Jordan é retratada como se fosse uma heroína infalível de desenho animado; uma espécie arquétipo mitológico que o autor entrega de maneira patologicamente apaixonada... Sério, gente, isso cansa demais!

Outra coisa que me incomodou é condução extremamente prolixa. Há cenas aqui que são desnecessárias demais, como reuniões para tratar de assuntos com equipes de publicitários e advogados da companhia; instantes enfadonhos que quase me fizeram desistir da leitura e tornaram o livro assustadoramente extenso.

Os diálogos também não são orgânicos, eles deixam a impressão de que estamos lendo máquinas programadas que conversam entre si, sem a menor naturalidade ou improviso. Há aqui uma escassez enorme de sensibilidade narrativa. Um exemplo disso são as crianças, que quando surgem nos diálogos são artificiais como personagens de uma propaganda de margarina.

REMÉDIO AMARGO é um livro de título instigantes, conduzido por autor renomado e de trama que não soube explorar o extenso universo de seu tema. É um trabalho que passa suas quase quinhentas páginas tentando transformar a protagonista principal numa espécie de bond-girl, esquecendo-se de seus outros personagens que poderiam ter contribuído para elevar a dinâmica da história... Uma pena.

NOTA: 4,1