Atenção para alguns pequenos
spoilers nesta resenha que acredito não cheguem a comprometer na leitura. De
qualquer modo, aviso de antemão e peço desculpas, mas foi inevitável.
Achei impressionante como as
pessoas descrevem esse livro como sendo uma homenagem definitiva ao amor
verdadeiro. E embora eu não tenha a pretensão de contestar opinião de ninguém,
penso que minha leitura deste O AMOR NOS
TEMPOS DO CÓLERA causou-me perspectiva um pouco discrepante, ou no mínimo, uma
visão singular e um tanto inconclusiva, é claro.
A literatura é uma
construção artística dúbia. Acredito que muitos autores nem chegam a
desenvolver seus trabalhos com essa pretensão. Mas a mente do criador rege um
ponto de vista que pode ser difícil de ser fidelizado na linguagem escrita,
assim como também costuma diferir da compreensão de quem lê. Ou seja, não há veredito
definitivo em literatura, mesmo que a fonte desta análise venha do próprio
autor. E embora este possa soar como um ponto de vista túrbido, eu acredito ser
a maior virtude da arte escrita: a de causar diferentes percepções, justamente
porque o analista faz uso de sua bagagem de vida para absorver o universo que o
rodeia.
As personagens desenvolvidas
nesta obra são demasiadas humanas. As descrições sentimentais dos envolvidos na
patologia do amor (e aqui uso o termo patologia no sentido de desequilíbrio),
de fato remetem a ações intensas e obstinações quase irracionais. E no lugar de
refletirmos melhor sobre o absurdo decorrente do sentimento descrito, nós a
elevamos à condição de esplendor; a pureza de se amar o outro. Isso talvez seja
fruto da infindável busca de significado existencial que tanto nos acomete.
Gabriel
Garcia Marques desenvolve suas três personagens principais
sem retirar uma gota de suas contradições. Fermina Daza é uma mulher impetuosa
e ao mesmo tempo não ultrapassa o limite imposto pelo patriarcalismo de seu
tempo e às vezes até parece endossar essa realidade. Quando o amor lhe é negado
ela simplesmente faz o que de fato seria o mais sensato para a maioria de nós:
conforma-se a uma estabilidade conjugal, tornando imperativo o sentimento
pragmático.
Juvenal Urbino é o arquétipo
que melhor nos fará compreender a terceira personagem da trama que ainda não
mencionei. Ele é um homem aparentemente impoluto, cuja profissão próspera e sua
elevada estatura social fazem dele um partido cobiçado pelas damas da região em
que vive. E como costumeiramente acontece com os seres humanos, o desejo de
Juvenal se manifesta justamente pela donzela indiferente; a mulher que o ignora
e até o menospreza. Desejo escapadiço cuja natureza o torna permanente... Até que
sua conquista finalmente se torne manifesta, então está decretado o fim do
interesse; o mais notório amor platônico possível.
Finalmente chegamos em
Florentino Ariza, que diferente de Juvenal Urbino, não conseguiu ver seu desejo
realizado e isso fez com que ele levasse sua obsessão ao limite do absurdo. É
na personagem de Florentino que mais se transparece o arquétipo do amor perfeito,
simplesmente porque sua impotência perante seu sentimento nos causa comoção.
Mas o que notei aqui foi o exemplo do desejo não realizado, fato que fez de
Florentino um incansável buscador da utopia daquilo que ele acredita saber do
que se trata: o amor em sua mais perfeita manifestação.
Mas se analisarmos sem o
viés do romantismo, como me pareceu a condução narrativa, poderemos compreender
que Juvenal Urbino e Florentino Ariza simbolizam dois extremos que nos ajudam a
identificar a complexidade do amor, que aqui é refletida sob a ironia da cólera,
o que faz todo o sentido. A primeira personagem sendo o conquistador que ao ver
seu intento realizado, percebe sua existência retornar à condição totalitária
do tédio, até que retorne a patologia do amor por outra mulher. Já a segunda
personagem é a figura do derrotado, que do alto de sua impotência, torna-se o
poeta nostálgico, onde a impossibilidade do amor é justamente o que faz de seu sonho
algo tão esplendido e cálido.
Florentino amou várias vezes
ao longo de sua vida. Encontrou plenitude em muitas de suas aventuras e isso é
retratado de maneira evidente quando ele alcança a velhice, porque somente no
ganho de experiência de vida é que ele percebe a riqueza contida nas relações
que encontrou pelo caminho; no instante em que chora escondido no banheiro por
uma mulher que pensou não amar, chegando inclusive a estranhar o próprio
pranto. Aliás, é precisamente sua condição de velho o que valida ainda mais sua
percepção de amor imaculado por Fermina, pois exatamente a transformação física
do casal, a perda da vaidade e a noção de autonomia o que os remete a pura e
simples ternura, que talvez até seja permanente pela pouca vida que lhes restam.
Gabriel
Garcia Marques é um autor não muito fácil de ler. Não pela
linguagem complexa ou métodos truncados, mas por sua condução narrativa direta
e irrefreável. O autor joga tudo de vez, vai contando sem dar trégua para o
leitor respirar, algumas vezes precisei voltar alguns parágrafos por achar que
havia me perdido. Confesso que essa continuidade sem freio me assustou no
começo, mas aos poucos me acostumei ao modo imediato e prolixo da obra.
O
AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA definitivamente é um livro romântico.
Mas trata do amor de um modo orgânico como jamais li antes. E claro que meu
ponto de vista sobre a obra é absolutamente meu, o que novamente reforço: é
essa condição singular de nossa percepção de leitores imperfeitos o que torna a
literatura algo tão especial.
NOTA: 7,5