quinta-feira, 19 de setembro de 2019

RESENHA DE LIVRO – O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA


Atenção para alguns pequenos spoilers nesta resenha que acredito não cheguem a comprometer na leitura. De qualquer modo, aviso de antemão e peço desculpas, mas foi inevitável.

Achei impressionante como as pessoas descrevem esse livro como sendo uma homenagem definitiva ao amor verdadeiro. E embora eu não tenha a pretensão de contestar opinião de ninguém, penso que minha leitura deste O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA causou-me perspectiva um pouco discrepante, ou no mínimo, uma visão singular e um tanto inconclusiva, é claro.

A literatura é uma construção artística dúbia. Acredito que muitos autores nem chegam a desenvolver seus trabalhos com essa pretensão. Mas a mente do criador rege um ponto de vista que pode ser difícil de ser fidelizado na linguagem escrita, assim como também costuma diferir da compreensão de quem lê. Ou seja, não há veredito definitivo em literatura, mesmo que a fonte desta análise venha do próprio autor. E embora este possa soar como um ponto de vista túrbido, eu acredito ser a maior virtude da arte escrita: a de causar diferentes percepções, justamente porque o analista faz uso de sua bagagem de vida para absorver o universo que o rodeia.

As personagens desenvolvidas nesta obra são demasiadas humanas. As descrições sentimentais dos envolvidos na patologia do amor (e aqui uso o termo patologia no sentido de desequilíbrio), de fato remetem a ações intensas e obstinações quase irracionais. E no lugar de refletirmos melhor sobre o absurdo decorrente do sentimento descrito, nós a elevamos à condição de esplendor; a pureza de se amar o outro. Isso talvez seja fruto da infindável busca de significado existencial que tanto nos acomete.

Gabriel Garcia Marques desenvolve suas três personagens principais sem retirar uma gota de suas contradições. Fermina Daza é uma mulher impetuosa e ao mesmo tempo não ultrapassa o limite imposto pelo patriarcalismo de seu tempo e às vezes até parece endossar essa realidade. Quando o amor lhe é negado ela simplesmente faz o que de fato seria o mais sensato para a maioria de nós: conforma-se a uma estabilidade conjugal, tornando imperativo o sentimento pragmático.

Juvenal Urbino é o arquétipo que melhor nos fará compreender a terceira personagem da trama que ainda não mencionei. Ele é um homem aparentemente impoluto, cuja profissão próspera e sua elevada estatura social fazem dele um partido cobiçado pelas damas da região em que vive. E como costumeiramente acontece com os seres humanos, o desejo de Juvenal se manifesta justamente pela donzela indiferente; a mulher que o ignora e até o menospreza. Desejo escapadiço cuja natureza o torna permanente... Até que sua conquista finalmente se torne manifesta, então está decretado o fim do interesse; o mais notório amor platônico possível.

Finalmente chegamos em Florentino Ariza, que diferente de Juvenal Urbino, não conseguiu ver seu desejo realizado e isso fez com que ele levasse sua obsessão ao limite do absurdo. É na personagem de Florentino que mais se transparece o arquétipo do amor perfeito, simplesmente porque sua impotência perante seu sentimento nos causa comoção. Mas o que notei aqui foi o exemplo do desejo não realizado, fato que fez de Florentino um incansável buscador da utopia daquilo que ele acredita saber do que se trata: o amor em sua mais perfeita manifestação.

Mas se analisarmos sem o viés do romantismo, como me pareceu a condução narrativa, poderemos compreender que Juvenal Urbino e Florentino Ariza simbolizam dois extremos que nos ajudam a identificar a complexidade do amor, que aqui é refletida sob a ironia da cólera, o que faz todo o sentido. A primeira personagem sendo o conquistador que ao ver seu intento realizado, percebe sua existência retornar à condição totalitária do tédio, até que retorne a patologia do amor por outra mulher. Já a segunda personagem é a figura do derrotado, que do alto de sua impotência, torna-se o poeta nostálgico, onde a impossibilidade do amor é justamente o que faz de seu sonho algo tão esplendido e cálido.

Florentino amou várias vezes ao longo de sua vida. Encontrou plenitude em muitas de suas aventuras e isso é retratado de maneira evidente quando ele alcança a velhice, porque somente no ganho de experiência de vida é que ele percebe a riqueza contida nas relações que encontrou pelo caminho; no instante em que chora escondido no banheiro por uma mulher que pensou não amar, chegando inclusive a estranhar o próprio pranto. Aliás, é precisamente sua condição de velho o que valida ainda mais sua percepção de amor imaculado por Fermina, pois exatamente a transformação física do casal, a perda da vaidade e a noção de autonomia o que os remete a pura e simples ternura, que talvez até seja permanente pela pouca vida que lhes restam.

Gabriel Garcia Marques é um autor não muito fácil de ler. Não pela linguagem complexa ou métodos truncados, mas por sua condução narrativa direta e irrefreável. O autor joga tudo de vez, vai contando sem dar trégua para o leitor respirar, algumas vezes precisei voltar alguns parágrafos por achar que havia me perdido. Confesso que essa continuidade sem freio me assustou no começo, mas aos poucos me acostumei ao modo imediato e prolixo da obra.

O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA definitivamente é um livro romântico. Mas trata do amor de um modo orgânico como jamais li antes. E claro que meu ponto de vista sobre a obra é absolutamente meu, o que novamente reforço: é essa condição singular de nossa percepção de leitores imperfeitos o que torna a literatura algo tão especial.

NOTA: 7,5

terça-feira, 10 de setembro de 2019

RESENHA DE LIVRO – DIVA


Algumas vezes é preciso um pouco de perseverança e flexibilidade para se compreender e, por conseguinte, gostar de um autor. Clássicos do século XIX costumam carecer de elevada sensatez, pois é fatal que se entenda que tudo naquela narrativa pressupõe aspectos e valores de um determinado tempo.

DIVA é a primeira obra que li de José de Alencar e, diferente de outros clássicos do XIX, a linguagem empregada aqui me enterneceu de imediato, algo que normalmente não acontece tão depressa comigo, daí a observação no início desta resenha.

A trama aqui é simplória; por meio de uma carta, a personagem Augusto revela para seu amigo Paulo, as mazelas e embates que afligiu sua relação afetiva com Emília; moça de personalidade demasiadamente forte.

Sob a caneta (sob a pena?) de um autor clichê, remeteríamos DIVA a um romance café com leite, banal, de reviravoltas trágicas para causar comoção. Contudo, José de Alencar sabe utilizar uma linguagem elegante e refinada, que privilegia o escopo narrativo, onde autenticidade e esmero textual é o que mais chama atenção.

A Emília do autor é, de fato, uma mulher impossível. Extremamente vaidosa, de um pudor exagerado quase como um TOC e de insensibilidade que beira o cruel, ela é o perfeito arquétipo de ser indomável e algumas vezes parece se deleitar por ser assim. Confesso que a odiei desde o início da leitura, mas percorrendo a algumas opiniões femininas pela internet, alguém sugeriu que este meu desconforto com a personagem é puro orgulho de macho. Enfim, talvez seja mesmo isso e, se realmente se tratar de orgulho, o livro acertou novamente, pois Emília me irritou por diversos momentos da trama...

Já Augusto, o desenganado narrador, soou-me como um verdadeiro banana. Provavelmente por achar que ele devia ter dado à sua amada as devidas lições oriundas do mesmo orgulho que me fez detestar Emília, por vezes eu me peguei esbravejando o comportamento irresoluto de Augusto, algo que sempre acontecia quando ele estava diante da incomparável beleza de sua musa. E ao término da leitura, vi-me envergonhado por julgar Augusto ao vê-lo se submeter aos caprichos de sua amada... Mas qual homem nunca o fez, perante os encantos da beleza de uma mulher?

DIVA é um romance charmoso, cuja linguagem é o que mais me chamou a atenção. Uma trama simples, porém, narrada na medida certa. O livro é curto, o que não permite que se torne cansativo, justamente porque o autor mantém seu foco exclusivamente no romance, exatamente como é uma carta confessional de um homem apaixonado.

E após esta deliciosa incursão, já estou providenciando outros títulos de José de Alencar, pois o que os comentários dizem pela internet é que DIVA é o mais singelo de seus trabalhos. Se os leitores online estiverem certos, essa é uma ótima notícia, afinal, é sempre bom começar a ler um grande autor por seus trabalhos menos expressivos, pois desse modo, a cereja ficará para o final.

NOTA: 7,9