quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

RESENHA DE LIVRO – COM OS PÉS ATADOS


Quando comecei a compor esta resenha, eu ainda não havia terminado a leitura. Não é uma situação incomum, geralmente anoto observações sobre o que resenhar ao longo da leitura. Além disso, eu já me encontrava nas páginas finais, porém, já sentia que algumas considerações, deste que foi o livro o qual mais esperei para ler em 2019, precisavam ser pontuadas.

Pois eis que a expectativa pode ter sido o maior entrave que ocorreu durante minha leitura deste circunspecto COM OS PÉS ATADOS: o demasiado anseio pelo retorno ao universo da autora Kathryn Harrison. Eu era bem jovem que li O BEIJO (há uma reflexão sobre ele aqui no blog), obra extraordinária que fez com que eu me apaixonasse pelo estilo de sua autora.  Certamente este fato encheu minha análise de emoções, prejudicando a apreciação racional, ainda mais por ter considerado este livro inferior ao que li anteriormente.

No entanto, antecipo que COM OS PÉS ATADOS está longe de ser um livro ruim, embora caibam algumas considerações... Farei uma breve sinopse e depois esmiuçar os problemas:

A trama se passa na China do século XIX e explora, entre os costumes regionais, o asqueroso hábito de esmagar os pés das mulheres para torná-las mais sedutoras aos futuros maridos. Esse ritual maligno de mutilação que visa acentuar a fragilidade feminina é o pano de fundo. May, a personagem principal, viveu esse tempo, mas ela da um jeito de fugir da submissão incutida ao feminino e vai parar em Xangai onde começa vida nova. Como sinopse isso basta para entender o escopo narrativo. Não vou me estender muito para não tornar a resenha extensa demais.

A pouca noção de importância da trama me incomodou desde o início. Várias personagens dividindo as páginas quase que em igualdade com May acabaram por prejudicar a consistência. Achei que esse descuido interferiu numa familiaridade maior entre personagem e leitor.

Veja bem: isso não chega a ser um problema para o ritmo propriamente, mas inevitavelmente retirou de May sua essência. Depois que temos explicada a origem da protagonista, May simplesmente desaparece ou passa a dividir em igualdade o espaço de importância narrativo. Isso prejudicou na empatia, influenciou na compreensão da história e, diante de um texto que não deixa claro qual dos protagonistas é seu centro, todos acabaram descaracterizados.

Há aqui algumas figuras cujos aspectos quase cativam o leitor. Porém, eles são pouco explorados porque a trama muda de foco constantemente. Posso dar dois exemplos disso: o marido de May, que com sua interminável e quase irracional admiração pela esposa, seria um elemento enriquecedor; ou a sobrinha Alice com seu apego inabalável pelos modos impetuosos da tia. Talvez o livro estivesse suficientemente abastecido concentrando seu fio condutor apenas nestas três personagens. Só que Kathryn Harrison não excede o foco em ninguém, quase a ponto de tornar a leitura enfadonha.

A narrativa sensível, minuciosa e irônica que tanto ansiei por encontrar, aconteceu em pouquíssimos momentos. Quando a autora os insere, o texto imediatamente ganha beleza, se torna atrevido, aprimorado, sofisticado... Senti falta dessa característica brilhante da autora:

“Alice não respondera, mas mergulhara a colher no café, transmitindo insulto com o gesto estudado, cuidadoso, silencioso, de mexer a colher, resolutamente evitando – como jamais o fizera – chocar o talher contra a porcelana”.

Outra coisa que incomodou é que há instante em que temos a impressão de que algumas palavras não foram traduzidas devidamente ao contexto, o que não é conclusivo, afinal, eu não sou nenhum perito em tradução. Mas ao longo da leitura percebi algumas palavras inseridas de maneira estranha e incoerente.

Felizmente os capítulos finais retomam o foco na personagem principal, o que proporcionou um ganho imersivo e consolidou May como protagonista. O ato final não chega a surpreender, mas não descamba para a pieguice e termina no momento certo.

COM OS PÉS ATADOS é um livro mediano, cuja criadora parece ter economizado em talento. Mostra uma história de crueldade com as mulheres de um modo íntegro, sem vitimismo e com algum requinte de beleza. E embora minha expectativa elevada tenha influenciado um pouco, vale à pena ser lido.

NOTA: 6,4

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

RESENHA DE LIVRO – O SOPRO DE BELIAL


O ser humano é uma espécie peculiar capaz de perpetrar qualquer ato. Basta apenas que ele dê o primeiro passo.

Essa ideia faz-se verídica quando a personagem Karl Mcquorn chega até uma ordinária casa de repouso para idosos, disposto a oferecer seus trabalhos como pintor, no que parece se tratar de uma despretensiosa ação altruísta. Ele rapidamente faz amizade com um dos internos que, vez ou outra, até o ajuda nos afazeres. Durante a jornada de trabalho, ambos aproveitam para conversar e, aos poucos, o novo amigo descobre que o simpático pintor traz consigo um passado trágico e que talvez ele não tenha viajado tão longe apenas para pintar paredes.

O SOPRO DE BELIAL é um thriller em que os acontecimentos fluem rápido. A cada página virada, a cada capítulo avançado, novas revelações vão sendo feitas, personagens fundamentais nos são apresentados e todos se encaixam na relevante pertinência do axioma que inicia esta resenha: o homem é capaz de assumir qualquer atitude, tudo depende daquilo que o move.

Aqui nada e nem ninguém está inserido por acaso. Tudo terá um propósito, uma explicação. A condução narrativa nos mantém acompanhando as conversas entre Karl e o Sr. Morris – o interno do asilo. E conforme Karl conta sua história, o leitor é transportado ao passado do personagem, no tempo em que precisou ir morar numa cidadezinha do interior, na casa de sua avó, após a mãe ter sido brutalmente assassinada. E como num macabro quebra-cabeça, tudo vai desembocar em causas que fundamentam as atuais ações do presente.

O enredo é engenhoso, constante e convincente. Não é linear, hora ele está fixo no presente e nos revela os dias de trabalho no asilo onde acontecem as conversas entre Karl e o Sr. Morris. Em outro momento, intercala capítulos que narram o passado difícil vivido na casa de sua ascendente. Por falar na avó, Miranda é uma mulher áspera e enigmática; parece viver alheia à realidade ao mesmo tempo em que aparenta ser o escopo do universo lúgubre que acomete seu misterioso lar. Tal problemática é o que torna complicada a convivência com o neto, assim como o deixa obcecado em querer descobrir os mistérios por trás dos aparentes rituais ocultistas que podem estar acontecendo dentro do quarto da avó.

O enredo deixa propositalmente pontos em aberto para que a cada capítulo avançado um novo mistério ou dúvida preencha a mente do leitor. Até que se chegue ao ponto de já não poder separar o que é alucinação do plano real... E tudo se encaixa precisamente nos capítulos finais, os quais nos revelarão desde os intentos que movem o atormentado protagonista, até o obscuro título da obra.

Um ponto negativo talvez esteja dentro da própria trama. A história explicita de forma clara que existem razões escusas movendo as atitudes do personagem principal, mas não existe a preocupação em pontuar os porquês de o protagonista ter demorado tantos anos para finalmente colocar seus intentos em prática. O livro da um salto cronológico e nos deixa com a sensação de desencaixa entre personagens de gerações distintas. O posfácio até consegue dar alguns esclarecimentos de forma eficiente, mas se calcularmos as idades dos envolvidos na trama, isso acaba gerando uma pequena interrogação em nossas mentes.

O SOPRO DE BELIAL é um suspense peculiar onde tudo e todos possuem uma importância. É conciso em sua narrativa e não deixa o fôlego se perder. Trata-se de um sutil rastro de sangue, mortes e rituais obscuros, ladeando todos os envolvidos, permeando cada parágrafo, até desembocar no angustiante e aterrador ato final.

NOTA: 7,9

INTERESSADOS EM ADQUIRIR A OBRA:
https://www.editoraviseu.com.br/o-sopro-de-belial-prod.html