Quando comecei a compor esta
resenha, eu ainda não havia terminado a leitura. Não é uma situação incomum,
geralmente anoto observações sobre o que resenhar ao longo da leitura. Além
disso, eu já me encontrava nas páginas finais, porém, já sentia que algumas considerações,
deste que foi o livro o qual mais esperei para ler em 2019, precisavam ser pontuadas.
Pois eis que a expectativa
pode ter sido o maior entrave que ocorreu durante minha leitura deste
circunspecto COM OS PÉS ATADOS: o
demasiado anseio pelo retorno ao universo da autora Kathryn Harrison. Eu era bem jovem que li O BEIJO (há uma reflexão sobre ele aqui no blog), obra
extraordinária que fez com que eu me apaixonasse pelo estilo de sua autora. Certamente este fato encheu minha análise de
emoções, prejudicando a apreciação racional, ainda mais por ter considerado
este livro inferior ao que li anteriormente.
No entanto, antecipo que COM OS PÉS ATADOS está longe de ser um
livro ruim, embora caibam algumas considerações... Farei uma breve sinopse e
depois esmiuçar os problemas:
A trama se passa na China do
século XIX e explora, entre os costumes regionais, o asqueroso hábito de esmagar
os pés das mulheres para torná-las mais sedutoras aos futuros maridos. Esse
ritual maligno de mutilação que visa acentuar a fragilidade feminina é o pano
de fundo. May, a personagem principal, viveu esse tempo, mas ela da um jeito de
fugir da submissão incutida ao feminino e vai parar em Xangai onde começa vida
nova. Como sinopse isso basta para entender o escopo narrativo. Não vou me estender
muito para não tornar a resenha extensa demais.
A pouca noção de importância
da trama me incomodou desde o início. Várias personagens dividindo as páginas
quase que em igualdade com May acabaram por prejudicar a consistência. Achei
que esse descuido interferiu numa familiaridade maior entre personagem e
leitor.
Veja bem: isso não chega a
ser um problema para o ritmo propriamente, mas inevitavelmente retirou de May
sua essência. Depois que temos explicada a origem da protagonista, May
simplesmente desaparece ou passa a dividir em igualdade o espaço de importância
narrativo. Isso prejudicou na empatia, influenciou na compreensão da história e,
diante de um texto que não deixa claro qual dos protagonistas é seu centro,
todos acabaram descaracterizados.
Há aqui algumas figuras cujos
aspectos quase cativam o leitor. Porém, eles são pouco explorados porque a
trama muda de foco constantemente. Posso dar dois exemplos disso: o marido de
May, que com sua interminável e quase irracional admiração pela esposa, seria
um elemento enriquecedor; ou a sobrinha Alice com seu apego inabalável pelos
modos impetuosos da tia. Talvez o livro estivesse suficientemente abastecido concentrando
seu fio condutor apenas nestas três personagens. Só que Kathryn Harrison não excede o foco em ninguém, quase a ponto de tornar
a leitura enfadonha.
A narrativa sensível, minuciosa
e irônica que tanto ansiei por encontrar, aconteceu em pouquíssimos momentos.
Quando a autora os insere, o texto imediatamente ganha beleza, se torna
atrevido, aprimorado, sofisticado... Senti falta dessa característica brilhante
da autora:
“Alice
não respondera, mas mergulhara a colher no café, transmitindo insulto com o
gesto estudado, cuidadoso, silencioso, de mexer a colher, resolutamente
evitando – como jamais o fizera – chocar o talher contra a porcelana”.
Outra coisa que incomodou é
que há instante em que temos a impressão de que algumas palavras não foram
traduzidas devidamente ao contexto, o que não é conclusivo, afinal, eu não sou
nenhum perito em tradução. Mas ao longo da leitura percebi algumas palavras
inseridas de maneira estranha e incoerente.
Felizmente os capítulos
finais retomam o foco na personagem principal, o que proporcionou um ganho
imersivo e consolidou May como protagonista. O ato final não chega a
surpreender, mas não descamba para a pieguice e termina no momento certo.
COM OS PÉS ATADOS é um livro mediano, cuja
criadora parece ter economizado em talento. Mostra uma história de crueldade
com as mulheres de um modo íntegro, sem vitimismo e com algum requinte de
beleza. E embora minha expectativa elevada tenha influenciado um pouco, vale à
pena ser lido.