sábado, 23 de abril de 2022

RESENHA DE LIVRO – A CAMAREIRA

A solidão é a máxima condição humana, talvez aquilo que nos seja essencial e, portanto, o maior de nossos temores. Há quem diga que tudo o que fazemos na vida, visa o intuito de escapar desse monstro assustador. E dependendo do quanto se mergulha neste vácuo existencial, perdemo-nos, muitas vezes, de forma irreversível.

A CAMAREIRA, romance impressionante de Markus Orths, aproxima-nos de um exemplo de existência que não sabe como lidar com o próprio isolamento e, portanto, deixa-se seguir seus dias entre fetiches, manias e aleatoriedades. A protagonista se perde em seus nadas. Exercendo a profissão que dá nome ao título, a camareira se tornou uma expectadora da vida dos outros, talvez como método de fuga de seu próprio vazio.

Remete-se a isso quando consegue este novo emprego, como camareira de hotel. Lynn Zapatek agora faz de seu novo labor, um modo de alimentar os espaços vazios de sua existência. Condição que se pode perceber no afinco com que desempenha sua função, no zelo excessivo pela limpeza, na neurose de continuar limpando o que já se encontra limpo, no desânimo em ter que retornar ao apartamento onde mora, pois sabe que o monstro que a consome a espera lá..., a solidão reina em todo lugar, mesmo onde há aglomerados de gente.

Quando não está no trabalho, Lynn apenas observa o mundo ao redor, seu olhar sempre voltado para as frivolidades do cotidiano, causa deleite no leitor, tamanha é a inserção que se tem aos detalhes da narrativa. Contudo, devo acrescentar que é uma constatação triste, o testemunho da implacabilidade da solidão dói, principalmente para o leitor que já se viu em condição semelhante e, portanto, compadece da personagem em toda essa incomunicabilidade que atravessa almas. Sei exatamente como Lynn se sente a ponto de compreender algumas de suas ações impulsivas, como procurar um documento na busca de identificar à si mesma, após passar horas na frente do espelho; seguir alguém na rua; colocar um filme para assistir e dar mais atenção a detalhes triviais do que o enfoque da trama; entrar debaixo da cama de um hóspede e ficar lá, como ouvinte oculta da intimidade alheia.

Este último, a mais nova fuga de Lynn. Então, todas as terças-feiras ela se esconde debaixo da cama do apartamento 304, onde um homem está hospedado. Naquele lugar velado, ela ouve sons, o bater na porta, pernas passeando pelo recinto, resmungos, gemidos, a tv ligada, conversas, o ronco cansado do homem, o urro de um orgasmo..., Lynn faz da vida de outras pessoas sua válvula de escape.

A dicotomia da solidão consiste por um lado, na consciência de si mesmo; por outro, no desejo incessante de sair de si. Ambos são extremamente assustadores e isso nos é apresentado através do cotidiano da personagem, confusa e insegura quanto ao que fazer com o reconhecimento de aspectos seus, e os espaços vazios de sua vida. Há um instante na trama em que um personagem surge e começa uma breve relação com Lynn. E o desfecho dessa relação me foi amplamente comovente, apesar de banal, quase fui às lágrimas, tamanha identificação que tive com a situação.

O livro é curto e de linguagem ágil, fluida e simples. Desses que se pode ler numa única tarde fria, na companhia de uma xícara de chá. Markus Orths se mostrou um eficiente narrador da vida cotidiana através das impressões de seus personagens. Uma deliciosa, porém, curta viagem..., senti falta de um pouco de fluxo de consciência narrativa. Mas essa ausência em nada diminuiu o prazer da leitura.

A CAMAREIRA é uma belíssima obra. Possui uma linguagem fácil que ajuda o leitor a acompanhar as ações da personagem, faz-nos enxergar com seus olhos. Markus Orths realiza uma profunda radiografia dessa nosso método contemporâneo de vida, pautado na solidão absoluta e na busca ininterrupta por se livrar dela.

NOTA: 9,1

sábado, 16 de abril de 2022

RESENHA DE LIVRO – MARIO PRATA ENTREVISTA UNS BRASILEIROS

Mídias que enfocam seu conteúdo em entrevistar celebridades atuais costumam ser bem sucedidas, porque todos nós gostamos de saber um pouquinho sobre a vida alheia. Melhor ainda quando o entrevistado é alguém dos holofotes, a sensação predominante é de identificação (como quando o entrevistado se mostra um sujeito simples), ou também orgulho (quando o entrevistado nos revela sua luta dura para alcançar fama e prestígio). Mas e quando o entrevistado é uma celebridade do passado? Como seria se pudéssemos conjurar a alma dos famosos de outro tempo, para que pudessem contar o lado oculto de suas vidas? Reconhecermo-nos nos grandes nomes do passado, ou nos orgulhar de suas trajetórias aguerridas.

Foi essa a premissa que motivou o escritor e dramaturgo Mario Prata, a mergulhar profundamente nos registros históricos para exorcizar nestas páginas, as mais importantes personalidades do nosso passado. Mario deu voz aos emudecidos pela finitude, e os fez contar o indizível, fazendo-se valer de sua condição de seres que não mais pertencem a esfera terrestre e, portanto, poderem dizer o que jamais diriam se estivem ainda sob o foco alheio. E claro: tudo só poderia ser feito de modo cômico, marca registrada de Mario Prata.

Os entrevistados aqui variam entre nomes altamente conhecidos como Pedro Álvares Cabral, Dom João VI, Tiradentes, Castro Alves, Rui Barbosa, passando por outros de menor destaque histórico: Içá-Mirim, Bispo Sardinha, Dona Beja... E é aqui que surge um pequeno problema no livro.

A obra começa sua maratona de 22 entrevistas com o navegador Cabral. Ok, isso pode ter sido proposital, afinal, o escopo era entrevistar personagens que estiveram envolvidos na história do Brasil, e Cabral foi o primeiro “star” que pintou por aqui. E o bate papo não foi lá essas coisas, sucedido então por alguns ilustres desconhecidos: Içá-Mirim, Padre Anchieta, Bispo Sardinha, Arariboia e Calabar. Nomes que fazem pouco sentido na compreensão do senso comum; e como a maior parte dos brasileiros não reconhece essas figuras, as referências e indiretas que dariam a tonalidade jocosa, acaba não funcionando. Portanto, essas entrevistas soam meio enfadonhas, pois as piadas fazem pouco sentido para leitores mais leigos. Obviamente a premissa do livro não é apresentar a biografia dos personagens, contudo a desconexão com algumas figuras quase nos faz abandonar o livro.

Por outro lado, a leitura ganha em vitalidade quando nos deparamos com personalidades que nos são mais familiares: Dona Maria I, Tiradentes, Dom João VI, Marquesa de Santos, Charles Miller. Sim, pois agora sabemos, mesmos que minimamente, quem são essas pessoas que nomeiam ruas, avenidas e praças Brasil afora. Desse modo, as piadas inseridas no texto passam a fazer sentido, o livro enriquece enormemente.

É claro que isso é um problema social e não da obra, propriamente. Afinal, desconhecer aspectos da nossa história é uma chaga difícil de ser vencida, mesmo para um brasileiro que tem certa familiaridade com a literatura, como no meu caso. O que dizer então do brasileiro médio, que lê muito pouco e foi ensinado a desdenhar a história do nosso povo?

De qualquer forma MARIO PRATA ENTREVISTA UNS BRASILEIROS é um livro delicioso, que evolui ao longo da leitura, dotado de uma mescla de referências históricas e a genialidade burlesca de seu autor, é um livro que serve como válvula de escape, entretenimento de primeira..., e esta edição da editora Record ainda traz uma estética bem legal.

Recomendadíssimo!

NOTA: 8,9

sexta-feira, 1 de abril de 2022

RESENHA DE LIVRO – FLOR DA PELE

Pois quando uma pandemia mortífera se espalha pelo mundo, logo os comportamentos mais absurdos se fazem presentes, porque o homem, em toda sua impotência perante a morte, professa hipóteses, sustenta crenças infundadas e há até os que fazem uso da catástrofe para tirar proveito próprio. Desse modo, espalham-se falácias das mais distintas: a doença é um castigo de Deus pela desobediência da humanidade; bruxarias estariam por trás de toda enfermidade; curandeiros utilizando métodos sem nenhuma comprovação científica, a xenofobia se encarregando de atribuir culpa a outros povos e outras culturas.

Engana-se quem pensa que estou me referindo a esta atual pandemia da Covid a qual ainda estamos mergulhados (por falar nisso, você tomou todas as suas vacinas?). O cenário descrito acima é pano de fundo deste romance histórico FLOR DA PELE, do aclamado escritor Javier Moro: no final do século XVIII, a varíola era a doença que estava a apavorar a humanidade por conta de seu alto índice de infecção e letalidade. Para fazer um dado comparativo, o novo coronavírus tem uma taxa de mortalidade global em torno de 6,5%, enquanto que a varíola sustentava taxas de mais de 30%, segundo dados da assessoria da OMS.

A trama nos leva a conhecer uma jovem corajosa, Isabel Zendal, considerada posteriormente como sendo a primeira enfermeira da história a embarcar numa missão internacional. Coordenando um grupo de crianças que eram usadas como instrumento essencial do plano de vacinação, Isabel parte rumo aos territórios espanhóis no além-mar para levar a recém-descoberta imunização contra a varíola às populações pobres. Uma expedição ousada e perigosa, liderada pelo médico Francisco Balmis.

Um dos efeitos mais comuns da varíola eram marcas deixadas na pele daqueles que eram infectados, que se assemelhava com uma flor, o que explica o título da obra. Eram pústulas provocadas no corpo que impressionavam muito, bolhas com pus que surgiam na pele. A doença seguia como uma tragédia devastadora e aparentemente insolúvel, até que um médico inglês chamado Edward Jenner descobriu um método de imunizar seres humanos. Usando o vírus de uma doença que atingiam vacas, cujas lesões provocadas nos animais se assemelhava muito com as chagas da varíola. Jenner reparou que mulheres que trabalhavam ordenhando vacas não apresentavam marcas da varíola, algo que era muito recorrente em grande parte da população. Acreditando que essas mulheres haviam adquirido a mesma enfermidade que as vacas, porém de modo mais brando e, portanto, elas estariam protegidas contra a varíola, o médico resolveu retirar a substância da lesão de uma dessas mulheres e inoculou uma criança de 8 anos. Seis semanas depois, inseriu nessa mesma criança o vírus da varíola e o garoto não contraiu a doença.

Estava descoberta a primeira forma de vacinação da história (o termo vacina foi criado por conta dessa derivação da substância extraída das vacas), a expedição liderada por Isabel e Balmis partiu com a missão de salvar a humanidade da pandemia fatal. O cenário exibido no parágrafo inicial dessa resenha é parte dos problemas que os protagonistas precisarão enfrentar, mais a oposição do clero e a corrupção de autoridades locais.

Acompanhar estes entraves vividos pelo grupo filantrópico é um dos pontos altos do livro. Principalmente porque nós vivenciamos uma pandemia, que embora seja muito menos letal, algumas raízes sociais apresentam comportamentos semelhantes. Mesmo nos dias atuais, em que poderíamos supor que conhecimento estivesse muito mais difundido na sociedade, ainda vemos corrupção, negacionismo, charlatanismos e métodos ineficazes em lidar com a enfermidade global.

Outro ponto alto é o riquíssimo conteúdo de pesquisa do autor. Javier Moro é preciso em datas, lugares e pessoas. Faz uma narrativa fictícia dentro de um cenário factual e usando personagens reais. Ressuscita injustiçados cuja importância foi deixada de lado pela história, como é o caso de Isabel Zendal, e insere aspectos críveis tornando a leitura quase como uma viagem através de um diário fidedigno.

FLOR DA PELE é um romance importante pela semelhança do momento em qual se passa sua trama com nossos dias, o que me faz pensar que a sociedade, de um modo geral, sempre sustentou a ignorância como seu mais notório atributo (a manutenção da irracionalidade talvez seja o modus operandi do Estado, desde os primórdios de nossa convivência em comunidade). Seu criador sabe mesclar cenários reais com personagens importantes do nosso passado e dar-lhes personalidades dentro de uma trama envolvente. Replica a mesma dose aplicada anteriormente ao livro O SÁRI VERMELHO (resenha aqui no acervo do blog) que, embora seja o meu favorito do autor, aqui a continuidade de entretenimento e conteúdo histórico se fazem presentes.

NOTA: 8