Pois quando uma pandemia mortífera se espalha pelo mundo, logo os comportamentos mais absurdos se fazem presentes, porque o homem, em toda sua impotência perante a morte, professa hipóteses, sustenta crenças infundadas e há até os que fazem uso da catástrofe para tirar proveito próprio. Desse modo, espalham-se falácias das mais distintas: a doença é um castigo de Deus pela desobediência da humanidade; bruxarias estariam por trás de toda enfermidade; curandeiros utilizando métodos sem nenhuma comprovação científica, a xenofobia se encarregando de atribuir culpa a outros povos e outras culturas.
Engana-se quem pensa que estou
me referindo a esta atual pandemia da Covid a qual ainda estamos mergulhados
(por falar nisso, você tomou todas as suas vacinas?). O cenário descrito acima
é pano de fundo deste romance histórico FLOR DA PELE, do aclamado
escritor Javier Moro: no final do século XVIII, a varíola era a doença
que estava a apavorar a humanidade por conta de seu alto índice de infecção e letalidade.
Para fazer um dado comparativo, o novo coronavírus tem uma taxa de mortalidade
global em torno de 6,5%, enquanto que a varíola sustentava taxas de mais de
30%, segundo dados da assessoria da OMS.
A trama nos leva a conhecer
uma jovem corajosa, Isabel Zendal, considerada posteriormente como sendo a
primeira enfermeira da história a embarcar numa missão internacional.
Coordenando um grupo de crianças que eram usadas como instrumento essencial do
plano de vacinação, Isabel parte rumo aos territórios espanhóis no além-mar
para levar a recém-descoberta imunização contra a varíola às populações pobres.
Uma expedição ousada e perigosa, liderada pelo médico Francisco Balmis.
Um dos efeitos mais comuns da
varíola eram marcas deixadas na pele daqueles que eram infectados, que se assemelhava
com uma flor, o que explica o título da obra. Eram pústulas provocadas no corpo
que impressionavam muito, bolhas com pus que surgiam na pele. A doença seguia
como uma tragédia devastadora e aparentemente insolúvel, até que um médico inglês
chamado Edward Jenner descobriu um método de imunizar seres humanos. Usando o
vírus de uma doença que atingiam vacas, cujas lesões provocadas nos animais se
assemelhava muito com as chagas da varíola. Jenner reparou que mulheres que
trabalhavam ordenhando vacas não apresentavam marcas da varíola, algo que era
muito recorrente em grande parte da população. Acreditando que essas mulheres
haviam adquirido a mesma enfermidade que as vacas, porém de modo mais brando e,
portanto, elas estariam protegidas contra a varíola, o médico resolveu retirar
a substância da lesão de uma dessas mulheres e inoculou uma criança de 8 anos.
Seis semanas depois, inseriu nessa mesma criança o vírus da varíola e o garoto
não contraiu a doença.
Estava descoberta a primeira
forma de vacinação da história (o termo vacina foi criado por conta dessa
derivação da substância extraída das vacas), a expedição liderada por Isabel e
Balmis partiu com a missão de salvar a humanidade da pandemia fatal. O cenário
exibido no parágrafo inicial dessa resenha é parte dos problemas que os
protagonistas precisarão enfrentar, mais a oposição do clero e a corrupção de
autoridades locais.
Acompanhar estes entraves
vividos pelo grupo filantrópico é um dos pontos altos do livro. Principalmente
porque nós vivenciamos uma pandemia, que embora seja muito menos letal, algumas
raízes sociais apresentam comportamentos semelhantes. Mesmo nos dias atuais, em
que poderíamos supor que conhecimento estivesse muito mais difundido na
sociedade, ainda vemos corrupção, negacionismo, charlatanismos e métodos
ineficazes em lidar com a enfermidade global.
Outro ponto alto é o
riquíssimo conteúdo de pesquisa do autor. Javier Moro é preciso em
datas, lugares e pessoas. Faz uma narrativa fictícia dentro de um cenário
factual e usando personagens reais. Ressuscita injustiçados cuja importância
foi deixada de lado pela história, como é o caso de Isabel Zendal, e insere
aspectos críveis tornando a leitura quase como uma viagem através de um diário
fidedigno.
FLOR DA PELE é um romance importante pela semelhança do momento em qual se passa sua trama com nossos dias, o que me faz pensar que a sociedade, de um modo geral, sempre sustentou a ignorância como seu mais notório atributo (a manutenção da irracionalidade talvez seja o modus operandi do Estado, desde os primórdios de nossa convivência em comunidade). Seu criador sabe mesclar cenários reais com personagens importantes do nosso passado e dar-lhes personalidades dentro de uma trama envolvente. Replica a mesma dose aplicada anteriormente ao livro O SÁRI VERMELHO (resenha aqui no acervo do blog) que, embora seja o meu favorito do autor, aqui a continuidade de entretenimento e conteúdo histórico se fazem presentes.
NOTA: 8
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