O nosso gênio Machado de Assis narra em sua obra Ressurreição, que somente a natureza seria capaz de exibir um sarcasmo amplamente benévolo e anódino ao misturar espinhos e rosas. Pois é exatamente disso que se trata este FAZES-ME FALTA, outro livraço da escritora portuguesa Inês Pedrosa, precisamente da sutileza do sarcasmo incutido no amor.
Conheci a literatura de Inês
Pedrosa por acaso; vi um de seus livros na estante de minha ex-mulher. Eu
retirei da prateleira, olhei capa, virei para ver a contracapa, e este me
pareceu desinteressante (O livro era Desamparo, tem resenha sobre esse episódio
aqui no blog). Contudo, a leitura se mostrou um inesperável deleite de poesia
em prosa. Desde então não parei mais de procurar pelos livros de mais essa
exímia representante da belíssima literatura lusitana.
Resumidamente temos aqui a
história de um homem e uma mulher que viveram uma relação de discrepantes
sentimentos e que estão a refletir sobre como isso ocorreu (e ainda ocorre) em
suas existências. O livro é exposto em forma de cartas (no sentido epistolar,
não de cartas propriamente ditas) no qual os dois amantes, um deles já
falecido, sequenciam seus monólogos instigantes e nostálgicos num retrato fidedigno
do luto, da dor e, ao mesmo tempo, da beleza humana. A “falta” que intitula a
obra vai além da mera ausência física de um dos dois, precisamente remete à
noção de perda de nós mesmos, enquanto almas que antes não se reconheciam como
perdidas.
A delicadeza linguística da
autora é o que de mais instigante temos na obra; Inês Pedrosa tece uma
literatura assertivamente ordinária, porque são duas existências em confissões
íntimas, e precisamente ela envolve por sua forma simples. Faz com que nos
apaixonemos pelas personagens, rapidamente, para dentro de uma imersão que
torna inevitável não refletirmos sobre a perda de quem amamos, pois como
mencionei, uma das personagens faz suas reflexões postumamente. Desse modo,
paira constante um sentimento de vazio e de arrependimento, como se algumas
coisas na vida deixaram de ser vividas ou que simplesmente uma vida se perdeu
cedo demais... enfim.
Há momentos belíssimos que se
tornam ainda mais marcantes pela linguagem afável e verossímil da autora,
cheias de atos involuntários e inexplicáveis. Como quando a personagem liga
para o número do ser amado, apenas para escutar sua voz gravada na secretária
eletrônica, uma vez que este morreu e há o receio na outra de esquecer como era
sua voz... Até o dia em que ele liga e não há mais nenhuma voz do outro lado,
fazendo com que a familiaridade finalmente se perca, vencida pelo
distanciamento irredutível da morte.
Um aspecto interessante ocorre
nas diferenças de sentimentos e constatações feitas ao longo da narrativa. Por
exemplo, a personagem masculina transparece um bocado de culpa por tudo aquilo
que supostamente teria se recusado a desfrutar com sua amada por puro capricho,
assim como há momentos em que este deixa nítido alguma insegurança afetiva de
sua parte. Já a personagem feminina, e minha favorita, apesar de jovem, é
astuta, segura e audaz; expressa seu desapego de convenções sociais e expressa
o destemor daquilo que viu como verniz do anseio de um relacionamento onde o
amor romântico despe-se, dando lugar ao amor de amizade.
FAZES-ME FALTA é uma obra relativamente pequena em tamanho, mas profunda em sentimento. Faz um paralelo extremamente eficiente entre um homem e uma mulher que, distanciados pela implacabilidade da finitude, resolvem trazer à tona o que há de mais palpável em suas almas melancólicas e arrependidas.
NOTA: 8,5